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C Realmente, se você falar em historicidade da poesia, ela se dá através desse processo dialógico, ele é intrínseco

No documento Para alem do "cisco do sol no olho" (páginas 171-178)

FOLHETIM: 30 anos de poesia concreta São Paulo, Folha de São Paulo, 05/12/1986.

REALIZADA EM 28-06-90, SÃO PAULO.

H. C Realmente, se você falar em historicidade da poesia, ela se dá através desse processo dialógico, ele é intrínseco

à poesia. A poesia é rica em sensibilidade, ela não é apenas testemunho da história, na medida em que ela educa a

sensibilidade. Por isso que a tradução é um grande trabalho pedagógico, e ele é engajado no sentido lato, como eu traduzo um poema como é o caso de M a i a k ó v s k i . A tradução que nós fizemos, Augusto, eu e o Boris, da poesia russa moderna, criou em português um tipo de tradução que não existia. De repente, a poesia russa virou um bem comum. Eu vejo muitas vezes citado o Maiakóvski sem mencionar a tradução, como se ele estivesse escrito em português o poema que eu traduzi com o maior cuidado, como é o caso da tradução do poema dedicado a Serguei Ie3ienen. Não é verdade? Eu vejo lã, "difícil a vida e seu ofício", Maiakóvski dizia isto, dizia isto na minha tradução. No original ele diz isso, mas com outras palavras. E nem sequer se fala em quem traduziu, por quê? Porque já entrou no sangue, irrigou a sensibilidade, passou a ser uma aquisição. Eu acho ótimo, porque quando uma coisa vira bem comum, linguagem comum, realmente significa que a sensibilidade foi enriquecida. Um jovem poeta b ra silei­

ro hoje, já tem Maiakóvski no sangue, ele não pode deixar de fazer alguma coisa, fazer ura feed-back de ura Maiakóvski que foi transformado em educação dos seus sentidos. Isso é que é educação dos sentidos, isso é que é ura processo histórico, acha que é a isso a que se referia Marx. Porque ele diz quanto mais uma pessoa ouve música, mais a pessoa entende de música. NÓ3 temos que ouvir mais música e, é claro, se coloca a idéia da c o l e t i v i d a d e , lutar para que numa socieda­ de mais justa, mais pessoas p ossam ouvir mais música. E, na medida em que mais pessoas possam ouvir mais música, nunca

deixar de colocar esse problema básico, não para ser adquiri­ do depois, mas para ser adquirido c o nc o mi t a n te m e n te . A coisa que eu formulo é: com pão e Mallarmé. Pão para todo mundo e Mallarmé para quem quer ler Mallarmé. Quem não quiser ler Mallarmé, leia outra coisa, leia tudo, desde sei lá, uma revista de televisão, até um J. G. de Araújo Jorge, em poe­ sia. Agora, quem quiser que não vá para o paredão. Isso é que é um socialismo com democracia, e é neste sentido que Marx colocava o problema da educação dos cinco sentidos, uma tarefa histórica, uma tarefa que é feita pela coletividade, que ura se beneficia do trabalho do outro. Eu tenho a possibi­

lidade por vocação natural, por ter tido certas condições que me foram de luta, porque eu sou uma pessoa que desde os 19 anos trabalhava. Não comecei como professor universitário. Eu trabalhava como escriturário. Enquanto eu estudava direito, eu batia à máquina e era um serviço bem mesquinho. Eu nunca tive biblioteca, eu e meu irmão formávamos a nossa bibliote­ ca. Minha família era uma família que vinha de uma origem rural empobrecida, porque do meu lado materno minha família era A lmeida Prado. Eu nasci em 1929, no momento da crise da bolsa de Nova Yorque, no m o mento em que meu avô materno perdeu a fazenda e ficou uma família empobrecida de funcioná­ rios públicos. Meu pai, um pequeno comerciante, e mais tarde ficou sendo gerente de comércio. Ele era uma pessoa muito dotada, uma pessoa que tinha talento musical, talento pictó­ rico, talento para escrever, mas tem outra coisa, ele somente fez o curso secundário, nunca fez universidade. Era um homem que tocava muito bem piano, de ouvido, tem muita3 composições

de música popular, pintava uns quadros muito bonitos, eu vou mostrar a você. E tudo isso aos setenta anos de idade. Ele sempre pintou, sempre desenhou, mas nunca teve uma formação. Eu e o A ug us to não encontrávamos uma biblioteca em casa, tínhamos uns poucos livros, nós dois formávamos a nossa biblioteca. Até quando nos casamos foi uma dificuldade para separarmos os livros, nós tivemos que fazer quase um sorteio.

E enfim, ao longo de muito trabalho e seguindo uma vocação, acabou que um país como o nosso, um país de analfabetos e de tantas reivindicações, de repente alguém pode fazer, por uma espécie de divisão do trabalho estranha para a qual você concorre com seu esforço próprio, de repente pode traduzir poesia russa, hebraica, alemã, japonesa. Mas isso é basicamente uma questão de dedicação. Porque enquanto eu ia fazer o curso de japonês (eu saía do trabalho, eu e minha mulher íamos fazer o curso de j a p o n ê s ) , quantos poetas participantes estavam em mesa de bar, fazendo outro tipo de discurso vazio, alguma vez com maior consequência. Com re­ lação a minha v ocação poética e para o estudo de línguas, e esse meu interesse pelo problema da tradução, tanto no meu caso, como no caso do-Augusto e do Décio, aconteceu que nós acabávamos pondo-nos à serviço do enriquecimento do p a ­ trimônio cultural do português. De repente, através do nosso trabalho sobretudo do Joyce, o Finnegans Wake, muito antes de muitas línguas e culturas como o francês, ou mesmo o italiano, que t.em uma tradução mais extensa do Joyce, nós tínhamos em português desde os anos 60, a mais larga c o­

letânea de traduções do Finnegans W a k e . Durante alguns anos a nossa coletânea era a mais larga que existia: em outras línguas, eram pequenos fragmentos. Agora já existe uma tradu­ ção integral, feita na França. Não é feita a tradução com critérios criativos, ela é mais explicativa, e a nossa é uma tradução criativa. Mas enfim, acho que essa forma é uma das formas mais importantes de participação. A participação não é apenas ao nível ideológico, essa existe, e engaja a pessoa como cidadão. A go ra existe a participação em muitos campos, um deles é o pedagógico, todo esse trabalho de tradução é profundamente educativo, tem a ver com a idéia da A educação dos cinco sentidos. Tudo tem a ver, como tem a ver a crítica, como tem a ver o exercício da teoria, a reflexão. Essa coisa de sermos p oetas críticos, isso não nasceu porque a gente quis teorizar sobre a gente mesmo, foi pela carência, pois à medida que a gente acrescentava idéias que não tinham inter­

locutores, a gente tinha que desenvolver essas idéias, em termos de reflexão. E algumas vezes desenvolver contra a crítica que era reacionária, que fechava os caminhos. Isso até hoje em alguns ambientes no mundo universitário, s ob r et u ­ do aqui em São Paulo. Hoje eu vejo que no Brasil é diferente, eu vou a Minas Gerais, Pelotas, sou recebido em toda parte com entusiasmo. O mundo de convites que eu recebo não tem tamanho. Agora, aqui existem dois redutos que são irredentos, que é a U NICAMP na parte de letras e a USP, se bem que na USP exista uma p essoa do talento do João Alexandre Barbosa, que é professor titular de teoria, e é uma pessoa que eu quero bem. Mas o grupo que infelizmente veio da herança do Antônio

Cândido (...). Sem dizer que Antônio Cândido é um grande crítico, é uma pessoa que tem duas metades, uma metade v ol ta ­ da para a sociologia, e outra voltada para o lado mais esté­ tico. Ele consegue conciliar as duas coisas, ou pelo menos c onseguiu em muitos momentos, como na "Dialética da M al andra­ gem", nos trabalhos que escreveu sobre Oswald, sobre a Cla- risse Lispector, em que enfoca muito o problema da linguagem. Agora, a alma sociológica, infelizmente, gerou discípulos que não estão à altura dele, ainda os mais talentosos. São muito estreitos mentalmente e não têm nenhum interesse em poesia. Poesia é uma coisa que a pessoa ama, ou não ama, é como samba, não se aprende na escola. Caetano não é uma pessoa que queria 3er Caetano, ele é, isso é uma coisa que o Marx pensa­ va que haveria um momento ideal no futuro, em que qualquer pessoa p o deria ser ao mesmo tempo Miguelângelo e Pelé. Mas isso é uma utopia, porque na realidade o Pelé é um Pelé. Está cheio de jogador de futebol por aí, mas quem joga como o Pelé é o Pelé. Quem joga como o Garrincha é o Garrincha, isso, isso aí é uma diferença qualitativa que a pessoa tem como um dote genético, uma habilidade que traz. Um Caetano é um Caetano. Há dezenas de cantores populares, às vezes de bom nível, ma3 Caetano é Caetano. A poesia tem disso, a poesia é uma questão de amar, por isso é que tem aquele paradoxo de que o Borges fala, é até um pouco cruel, mas é verdade: "tem pessoas que não gostam de poesia, geralmente dedicam-se a ensiná-la". l3so é uma coisa que a gente constata muitas vezes, é triste, mas é verdade. A universidade não tem neces-

sidade de ser uma conservadora de museu. Ela pode partindo da raiz "musa", se interessar musicalmente pelo novo. Não há pessoa que se interesse mais pelas coisas antigas do que eu. Apenas para mim as coisas antigas não são objetos de museu, são coisas vivas. Eu traduzo Homero e Homero me diz a mesma coisa que me diz o mais moderno dos poetas, às vezes até mais, pois tem coisas nele que são de uma futuridade extraor­ dinária. Na poesia bíblica é a mesma coisa: fala-se em paro- nomásia, a poesia bíblica é um m a n a n c i a l , você não pode ler um minuto o hebraico sem ter o jogo sonoro pela língua extre­ mamente musical, onde os apoios rítmicos e sonoros estão por toda a parte. No entanto, que a bíblia inteira, mesmo as suas partes mais prosaicas, na realidade, são pensados em ritmo, mesmo os sistemas de rotação sonora musical, que é o chamado sistema de notação massoreti, que é uma espécie de canto gregoriano. Isso se aplica à bíblia para ser lida na sinago­ ga, não só ao C â ntico dos Cânticos, mas à bíblia toda, ao livro de J<5, que são considerados livros poéticos pela tradi­ ção, ao Qohélet, mas na realidade não existe diferença entre poesia e prosa, o que existe é gradação. Existem livro3 em que a prosa é mais larga, e a poesia se esgarça, mas esses livros são ritmados. Existe uma prosódia, que é marcada pelos mesmos neumas. E existem os momentos de super poesia, por exemplo, a primeira estrofe da criação é super poesia. 0 Qohélet é super poesia, é uma prosa poesia, é difícil se estabelecer os limites. Essas categorias de poesia e de prosa não se a p licam ao texto bíblico, que tem categorias não propriamente retóricas, mas prosódicas. É uma mas3a prosódica

que tem m a io re s momentos de concentração e momentos de maior e s g a r ç a m e n t o . Agora, isso é de uma modernidade extraordi­ nária, a poesia moderna caminhou para o verso livre, cami­ nhou para encontrar, através de Mallarmé, tipos de notação visual, que no hebraico já existia desde a longa tradição dos massoretas, que desenvolveram um sistema de notação para você m ar ca r a maneira como aquilo era cantado, cantilado. A gente vai a um texto pensando que vai encontrar o passado e encontra o presente e até o futuro. Tudo isso sob a égide da musa música, não necessariamente a musa museu, ou mesmo no museu, p orque não pensar o museu como música? Você entra num museu histórico, ou arqueológico, você visita um museu de Atenas, ou um museu antropológico do México, e de repente você vê aquelas maravilhas daquela3 civilizações, aquilo é música. Claro que tem o conservador que tem que limpar o pó, mas não é bem isso que você vai procurar no museu.

S.S. - Haroldo o que significa o novo para você, e a questão

No documento Para alem do &quot;cisco do sol no olho&quot; (páginas 171-178)