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2. DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE

2.1. Polícia Judiciária

O Estado tem o dever de manter a paz social e de conferir segurança à sociedade. É imperativo o mandamento constitucional neste sentido, ao preconizar no art. 144 da CF/88 que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Para cumprir o ditame constitucional, à Administração Pública é conferida uma prerrogativa denominada poder de polícia, que, segundo José dos Santos Carvalho Filho, consiste na “prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade40”.

Costuma-se dividir o poder de polícia em dois segmentos: a Polícia Administrativa e a Polícia Judiciária. Analisando esta bipartição estritamente, cotejando-se apenas o referente à segurança pública, tem-se que a primeira reveste-se de caráter preventivo, ou seja, sua finalidade é evitar a prática de crimes. A segunda, entretanto, tem a função precípua de agir após o cometimento da infração, de forma repressiva, com o fito de colher todas as provas pertinentes ao delito, constatando a materialidade e individualizando sua autoria. Em seguida, deve remeter as investigações compiladas no Inquérito Policial ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, titular da ação penal.

A Polícia Judiciária é formada pela polícia federal e pelas polícias civis estaduais. Urge transcrever os parágrafos do art. 144 da CF/88 que tratam destas instituições, verbatim:

40 FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Manual de Direito Administrativo. 23. ed. Rio

Art. 144. (...)

§ 1º. A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina- se a:

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

(...)

§ 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares.

Verifica-se, portanto, que o escopo primordial da Polícia Judiciária é a apuração de crimes através de investigações, as quais são presididas pelo delegado e documentadas no Inquérito Policial. Ao final deste, deverá constar um relatório minucioso dirigido ao juízo competente, onde serão expostos os resultados mais importantes dos atos investigatórios, restando esclarecido se houve crime e, em caso positivo, quem o praticou.

O inquérito policial é o procedimento administrativo de natureza inquisitiva, de competência da Polícia Judiciária, presidido pelo delegado, que tem o fito de angariar subsídios que instruam uma possível ação penal a ser intentada pelo Ministério Público, fornecendo ao Parquet os elementos colhidos acerca do crime e de sua autoria.

O inquérito policial pode ser instaurado de diversas maneiras: através de portaria, de auto de prisão em flagrante, de requisição do Poder Judiciário ou do Ministério Público e de requerimento do ofendido, conforme prescreve o art. 5º do CPP.

Vê-se, então, que a lavratura do auto de prisão em flagrante enseja a instauração de inquérito policial, culminando com o possível indiciamento do acusado. Este é um dos motivos pelo qual se exige que o delegado aplique o princípio da insignificância em vez de ratificar a voz de

prisão proferida pelo condutor quando o fato, claramente, enquadrar-se dentre aqueles considerados de nímia ofensividade.

2.2. DA PRISÃO EM FLAGRANTE

A expressão “flagrante” traduz a ideia daquilo que está em chamas, que está crepitando, que arde, e tem sua raiz etimológica no latim, mais especificamente no verbo flagrare. No direito processual penal, diz-se em “flagrante delito” a infração no momento de sua execução, ou seja, no instante em que está sendo cometida. Nas palavras de Tourinho Filho, “prisão em flagrante delito é, assim, a prisão daquele que é surpreendido no instante mesmo da consumação da infração penal41”.

Entretanto, vale registrar que, na processualística penal em vigor, o flagrante não se caracteriza apenas no momento em que a infração está sendo praticada. Com efeito, também restará configurado o estado de flagrância em outras situações, tais como a perseguição após a prática do delito, o fato de encontrar o sujeito, logo depois da execução, com objetos que façam presumir ser ele o autor do crime, dentre outras.

A prisão em flagrante tem previsão constitucional (art. 5º, LXI, CF/88) e prescinde de mandado subscrito pela autoridade judiciária, sendo um ato administrativo de responsabilidade do delegado, formalizada em um instrumento denominado auto de prisão em flagrante. Entretanto, após a ratificação pelo juiz, passa a ter índole jurisdicional, motivo pelo qual, em hipótese de impetração de habeas corpus, este é quem deve figurar como autoridade coatora. A contrario sensu, havendo prisão em flagrante, mas inexistente a lavratura do respectivo auto, a impetração do remédio heróico se dará em desfavor da autoridade policial42.

41 FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, vol. 3. 31ª Edição. São Paulo:

Saraiva, 2009, pág. 458.

42 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 6. ed. São

A prisão em flagrante é uma das espécies do gênero prisão cautelar, tendo a natureza jurídica de ato administrativo perpetrado pela Polícia Judiciária quando o preso é surpreendido em alguma das situações previstas no art. 302 do Código de Processo Penal. Sobre a natureza administrativa do referido ato, veja-se os ensinamentos de Tourinho Filho, litteris:

“Não obstante se trate de medida cautelar, o ato de prender em flagrante não passa de simples ato administrativo levado a efeito, a grosso modo, pela Polícia Judiciária, incumbida que é de zelar pela ordem pública. Pouco importa a qualidade do sujeito que efetive a prisão. É sempre um ato de natureza administrativa43”.

Todavia, empós a efetivação da prisão e a lavratura do competente auto, a prisão em flagrante, outrora ato de cunho administrativo, convola-se em ato de natureza eminentemente cautelar. Nesse sentido, é o magistério de Nucci:

“Tem essa modalidade de prisão, inicialmente, o caráter administrativo, pois o auto de prisão em flagrante, formalizador da detenção, é realizado pela Polícia Judiciária, mas torna-se jurisdicional, quando o juiz, tomando conhecimento dela, ao invés de relaxá-la, prefere mantê-la, pois considerada legal44”.

Com isto, frente ao caráter cautelar da prisão em flagrante, deve- se perquirir o preenchimento dos requisitos necessários a qualquer providência acautelatória: o fumus boni juris e o periculum in mora.

O primeiro é de fácil constatação devido ao fato de a flagrância ser “a mais eloquente prova da autoria de um crime45”. Este pressuposto restará preenchido se houver alguma possibilidade de o encarcerado em flagrante ser condenado, hipótese de facílima verificação, pois, repita-se, a prisão-captura é uma das mais contundentes provas da autoria de um delito.

O segundo pressuposto diz respeito à relevância da manutenção do encarceramento, já que a liberdade é garantia assegurada constitucionalmente, somente podendo ser mitigada em última hipótese. O

43 Op. cit. pág. 464. 44 Op. cit. pág. 585. 45 Op. cit. pág. 464.

parágrafo único do art. 310 da Lei Adjetiva Penal trata justamente do periculum in mora ao estatuir que será concedida liberdade provisória aos casos em que os requisitos para a manutenção da prisão preventiva não estiverem presentes, quais sejam, garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e asseguramento da aplicação da lei penal.

Destarte, realizada a prisão em flagrante, a permanência do indiciado no cárcere só é justificável se presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva, de modo que, uma vez ausentes, impõe-se a soltura do preso.

A prisão em flagrante encontra guarida no fato de fornecer extremo auxílio à instrução probatória, na medida em que o condutor e as testemunhas provavelmente presenciaram o fato. Além disto, seus depoimentos serão colhidos pela autoridade poucos instantes após o ocorrido, de modo que as imagens apreendidas pelos depoentes ainda estão bem definidas. A opinião de Nucci é consentânea com a que aqui se expôs, ao aduzir que, com a flagrância, “assegura-se, prontamente, a colheita de provas da materialidade e da autoria, o que também é salutar para a verdade real, almejada pelo processo penal46”.

A importância da referida espécie de prisão cautelar não se exaure com a colheita probatória. É que a prisão em flagrante acaba por prevenir a consumação do crime, quebrantando o iter criminis. De fato, a prisão em flagrante impede a consumação do delito, no caso em que a infração está sendo praticada, ou de seu exaurimento, nas demais situações consignadas no art. 302 do CPP.

É por este motivo que o Código de Processo Penal permite que qualquer pessoa do povo encete a prisão em flagrante. Ainda por esta razão é que a Carta da República abranda a garantia da inviolabilidade do domicílio quando presente a situação de flagrante.

Conclui-se, então, que esta modalidade de prisão cautelar tem sua utilidade, na medida em que evita a consumação do crime e enriquece o conjunto probatório do inquérito policial. Contudo, por se tratar de prisão

empreendida em momento anterior ao trânsito em julgado da sentença, sua manutenção deve ser motivada, segundo exige o parágrafo único do art. 310 do CPP.

2.3. ESPÉCIES DE FLAGRANTE

Conforme anotado acima, o termo flagrante traduz a idéia daquilo que está ardendo, ou seja, de um fato no momento em que está acontecendo. Na seara processual penal, entretanto, o estado de flagrância não se limita ao momento em que o crime está sendo praticado.

Com efeito, de acordo com o art. 302 do Codex Processual Penal, considera-se em flagrante delito aquele que está cometendo a infração penal; acaba de cometê-la; é perseguido, logo após a prática da infração penal, em situação que faça presumir ser o autor do delito; é encontrado, logo depois, com instrumentos ou documentos que façam presumir ser o autor do crime.

A doutrina, com arrimo no art. 302 do CPP, enumera algumas espécies de flagrante. No presente trabalho, serão elencadas apenas as principais modalidades de flagrante, demonstrando-se que o mesmo não se encerra à situação em que o delito está sendo praticado.

a) Flagrante próprio

É aquele em que o agente é surpreendido no instante em que está cometendo a infração penal ou quando acaba de cometê-la. São as hipóteses previstas nos incisos I e II do art. 302 do CPP.

Tem-se que, para configurar a situação prevista no inciso II do dito artigo, exige-se uma quase imediatidade. É o que entende Tourinho Filho ao dizer que “quando o inc. II do art. 302 do CPP fala em „acaba de cometê-la, quer significa, com tal dizer, a infração que ainda está crepitando, havendo entre a sua prática e a prisão uma relação de quase absoluta imediatidade”.

b) Flagrante Impróprio

Diz-se que o flagrante é impróprio quando o agente é perseguido logo após a prática do fato previsto no tipo penal, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser ele o autor da infração.

A perseguição deve ser iniciada imediatamente após a prática delituosa, não havendo um limite temporal estipulado acerca de sua duração. Nas palavras de Pacceli, “não há um critério legal objetivo para definir o que seja o logo após mencionado no art. 302, devendo a questão ser examinada sempre a partir do caso concreto47”.

A perseguição não tem um termo que, se atingido, irá descaracterizar a flagrância. Em outras palavras, não se pode argüir que, após 24 horas, mesmo que o acusado esteja sendo perseguido, não poderá mais prendê-lo em flagrante. Na verdade, a perseguição só se extingue quando os policiais cessam a procura do autor da infração, ou seja, para caracterizar o estado de flagrante basta que a perseguição seja ininterrupta, podendo perdurar por vários dias. É o entendimento do STJ:

“PENAL PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. 1. PRISÃO EM FLAGRANTE. RELAXAMENTO. AUSÊNCIA DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA. PERSEGUIÇÃO ININTERRUPTA. FLAGRANTE CARACTERIZADO. DECISÃO DE PRONÚNCIA. SUPERVENIÊNCIA. QUESTÃO SUPERADA. PRISÃO SOB NOVO FUNDAMENTO. 2. LIBERDADE PROVISÓRIA. INDEFERIMENTO. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. DECISÃO DE PRONÚNCIA, SUPERVENIÊNCIA. INOVAÇÃO NA FUNDAMENTAÇÃO. NOVO TÍTULO. 4. ORDEM DENEGADA.

1. Tendo ocorrido perseguição ininterrupta desde o cometimento do crime até a prisão do paciente, caracterizado está o flagrante. Ademais, eventuais nulidades do auto de prisão em flagrante ficam superadas com a decisão de pronúncia, que altera o fundamento da prisão”. (HC 76.545/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 27/03/2008, DJe 05/05/2008)

47 OLIVEIRA, Eugênio Pacceli. Curso de Processo Penal. 13ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen

Por outro lado, exige-se que a perseguição se inicie logo após o cometimento da infração, ou seja, não importa o tempo que a perseguição dure, o necessário é que ela comece pouco tempo após a prática do delito.

A presunção acerca de ser o perseguido o autor do fato exige muita prudência, pois o que se tem por presente não é a visibilidade do fato, mas apenas a da fuga. Somente a experiência do que ordinariamente ocorre relativamente às infrações penais da natureza do caso concreto é que poderão fornecer material hermenêutico para a aplicação da norma48.

c) Flagrante Presumido

Presumido é o flagrante em que o indivíduo é encontrado logo depois da infração com instrumentos, objetos, armas ou papéis que façam presumir ser ele o autor do delito. Está previsto no inciso IV do art. 302 do CPP.

Nesta modalidade, a expressão logo depois significa que o autor deve ser encontrado dentro de um tempo bem próximo da infração, não sendo necessária uma imediatidade absoluta, pois senão estaria configurada a hipótese do inciso II do art. 302 CPP.

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