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3. A UPP e o Rio de Janeiro: retratos de uma cidade à venda

3.2 Polícia Pacificadora ou Polícia Repressora?

Retomando um pouco a discussão feita no capitulo anterior, sabe-se que um dos elementos centrais do policiamento comunitário (que norteou a criação da UPP) é o estabelecimento de uma relação de parceria com a comunidade atendida, de forma que a atuação policial deva ser “orientada para a proteção de todas as pessoas da comunidade, buscando servi-las e ajudando na construção de uma vida social harmoniosa” (CERQUEIRA, 2001, p.106). Assim, entende-se que a UPP deve se constituir como agente fundamental no processo de estabelecimento de um funcionamento harmônico dentro da comunidade, atuando ativamente em prol desta. A polícia deveria então, abandonar o seu caráter tradicional de corporação truculenta e assumir uma postura de cultivadora da paz e do desenvolvimento comunitário, ou seja, deveria atuar verdadeiramente como polícia pacificadora. Mas, de acordo com a análise das entrevistas realizadas, percebe-se que existem diferenças entre o discurso legitimador do programa e sua concreta aplicação na realidade cotidiana.

Ao se falar em comunidade pacificada, imagina-se um local em que todos vivam tranquilamente, onde não haja conflitos significativos e onde os direitos elementares estariam garantidos, pois a UPP, ali instalada, seria a garantidora da paz local, e devido a ela, aquela antiga repressão advinda do comércio de drogas não possuiria mais espaço, nem ela, nem qualquer outra, já que a paz, a tranqüilidade e o respeito aos direitos individuais dos moradores estariam altamente asseguradas. Perfeito! Mas como explicar então, o receio, e por que não medo, dos moradores da Providência (pacificada desde 2010) em falar a respeito dos seus supostos salvadores? Tal fato trata-se de uma evidência de que algo não esta funcionando como deveria, e que as reais implicações desse programa vão além do explicitado nos grandes telejornais burgueses.

Voltemos ao Borel. Analisando as respostas dos entrevistados, percebe-se que ao serem questionados a respeito da UPP, as afirmações são quase unânimes na mesma linha. Ou seja, é quase consensual que em nível de segurança, a UPP trouxe melhorias para a vida cotidiana. Somente M2 afirma que a segurança piorou após a UPP, e M1 diz que continua a mesma coisa, os demais entrevistados concordam que houve sim melhoras na segurança local, “uma parte foi bom, as crianças ficam tranqüilas, sobem e descem, soltam pipa, não me preocupo mais com bala perdida” (M9), as falas indicam que a mudança factual trazida pela UPP é o fim

dos constantes tiroteios, da exibição de armas de fogo pelos vendedores de drogas e a diminuição (e não fim) da venda de drogas.

No entanto, estranhamente, isto não implica numa boa aceitação dos moradores à corporação pacificadora. Dos entrevistados, apenas dois (M6 e M10) afirmam que a relação entre polícia e moradores ocorre de forma harmônica, sendo as falas “escuto relatos de abuso, mas para mim é bom” (M6) e “a relação é excelente, quando preciso de ajuda eles vem” (M10). Em contrapartida, dez entrevistados (M2, M3, M4, M5, M7, M8, M9, M11, M12 e M13) afirmam não ser boa a relação e um optou por não responder (M1). E ainda, dois entrevistados apontam ser a UPP o maior problema da comunidade, “o maior problema da minha comunidade é o tratamento oferecido pelos policiais da UPP, eles se acham donos do morro, (...), o diálogo é totalmente truculento” (M11), “eles não sabem lidar com o morador, (...), se eles cismam com minha cara, eles me chamam de marginal e me esculacham” (M12). M2, por sua vez, diz:

“A segurança piorou, (...), eles (em menção a UPP) que pioram tudo, em vez de procurar o que fazer, eles ficam mexendo com morador. Eles abusam do poder. Se eu estiver dando uma festa, na minha casa, e eles acharem que isso não ta certo, eles vem e mandam parar com a festa. (...). Eles mandam aqui. Só trocou a cor, era vermelho agora é azul”

Já M3 afirma “a UPP abusa do poder, (...), dez por cento respeita a população e noventa por cento não”. M4 diz que “dependendo do plantão eles são bem abusados, outro dia mexeram com o meu filho, que é do exército, mas eles não sabiam, o tratamento mudou completamente depois que ele mostrou o distintivo”. M7 fala “eles tentam ter uma comunicação boa, mas devia ser melhor...”. M8 diz “a segurança ta melhor, parte social fica a desejar, preciso de ajuda e eles falam que não podem se meter”, e, por fim, M13 diz

“se eu disser que é bom, estou mentindo, (...), não existe polícia pacificadora, o que existe é polícia repressora, não existe essa pacificação, (...), a única coisa que diferenciou é a troca de tiros que não tem mais, o tráfico continua.”

Assim, nota-se o quão a atuação policial noticiada na grande mídia difere do que realmente ocorre nas favelas ditas pacificadas. De acordo com a fala de M13, “o que existe é polícia repressora”, desse modo, todo discurso midiático de paz cai por terra diante da denúncia desse morador, o qual se posiciona (não isoladamente) contrário a este programa governamental. A partir da análise das entrevistas constata-se que, muito embora a UPP tenha trazido algumas parcas melhorias para

a comunidade, tal fato não contribui para uma boa aceitação da comunidade em relação a esta, pelo contrário, a corporação chega a ser apontada como o grande problema comunitário. E esta realidade não é uma característica única e exclusiva do Borel, periodicamente, são divulgadas reportagens (as quais são disponibilizadas em meios alternativos de comunicação) que denunciam ações arbitrárias dos policiais da UPP para com os moradores. É comum ouvirmos falar de conflitos entre UPP e moradores, assim, ao contrário de pacificar, a realidade diz que a relação entre ambos permanece tensa, como nos mostra um fragmento de uma reportagem:

em Manguinhos, policiais da UPP foram acionados para conter uma briga de familiares na localidade conhecida como CHP2, no início da noite de quinta-feira. Segundo os policiais, para cessar o tumulto e a aglomeração de moradores foi necessário o uso do spray de pimenta. Um dos envolvidos na briga jogou uma garrafa contra um policial, que chegava de moto em apoio à ocorrência. O policial caiu e sofreu ferimentos leves. (R7, 22/02/13)

Tal fato demonstra que, a relação entre corporação e comunidade não é estabelecida através dos princípios teóricos do policiamento comunitário citados anteriormente, ou seja, não existe entre estes, uma relação baseada na parceria e confiança mútua. Evidencia-se que, a instauração pura e simples de um novo modo de patrulhar (baseado na aproximação entre polícia e comunidade), não é garantidora do fim da hierarquização do atendimento. Mesmo dentro de um programa, cujas bases foram extraídas do policiamento comunitário norte- americano, a relação entre corporação e comunidade permanece embasada em diferenciações entre mandado e mandante, e continua tendo o caráter truculento de sempre. Não existe esta preconizada noção do morador de favela como parceiro no processo de desenvolvimento comunitário, este continua sendo alvo (pelos policiais que o atendem) de uma suspeição generalizada, de um constante desrespeito á seus direitos humanos e civis, ou seja, estes permanecem recebendo tratamento desumano.

No capítulo anterior, mostramos que o programa apresenta, como seu principal objetivo, o enfraquecimento do poderio dos vendedores de drogas, assim como acabar com o exibicionismo bélico característico deste. De acordo com resposta de alguns dos entrevistados, percebe-se que tal objetivo foi alcançado. Em geral, os entrevistados defendem que houve sim uma diminuição considerável do poder exercido pelos ditos “traficantes”, e que não faz mais parte do cotidiano local a presença de “bandidos” armados.

No entanto, contraditoriamente a noção de local pacificado, ainda é comum ouvirmos falar de trocas de tiros entre polícia e “bandido”, de comércio fechado por ordem dos “traficantes” e da contínua venda de drogas nas comunidades. Tais argumentações nos fazem pensar que a mudança efetiva, nesse esfera, foi uma perda considerável de poder dos vendedores de drogas, mas não o fim deste comércio. Retomemos a fala de M13, “a única coisa que diferenciou é a troca de tiros que não tem mais, o tráfico continua”, tal argumentação resume as demais informações dos entrevistados acerca deste assunto. Lembremos então de M2, que ao ser perguntado sobre quem manda na comunidade, nos diz “(...) só trocou a cor, era vermelho agora é azul”, no entanto, ao ser perguntado sobre vinculação da UPP com a venda de drogas responde: “UPP não faz tráfico, mas o tráfico ainda existe”. Tais elementos nos fazem pensar que, embora não esteja entre os objetivos fundamentais da UPP o fim imediato do comércio de drogas, é, no mínimo, intrigante que uma corporação criada com a finalidade de diminuir o poderio destes, esteja convivendo com os mesmos. E mais, de tempos em tempos somos “surpreendidos” com notícias que dão conta do envolvimento de policiais militares com o mercado ilícito de drogas, ou deixando-os passar desapercebidos ou sendo garantidores de um espécie de proteção a este comércio. Tais fatos podem nos levar a pensar que exista, nas entrelinhas, uma tendência a regularizar, mesmo que informalmente, esse comércio, igualando-o a lógica de funcionamento do restante da cidade.

Mas então que pacificação é esta? Como explicar que uma corporação criada, a priori, com o objetivo de pacificar uma localidade, seja motivo de medo (como no caso da Providência) e/ou de reprovação (no caso do Borel)? A resposta é simples, e já foi até apontada acima, a UPP não foi criada verdadeiramente para os moradores da comunidade, para trazer benefícios a estes, e sim para quem está fora dela. Conforme reflexão iniciada no capítulo anterior, a UPP está inserida em um projeto de organização da cidade para a realização dos mega eventos, ou seja, a aproximação de tais eventos faz com que uma nova prática de organização da cidade seja posta em ação. Dessa forma, a escolha do Rio de Janeiro como sede de eventos tão importantes internacionalmente, faz com que interesses de organizar a cidade carioca, de acordo com as necessidades burguesas, possua o respaldo tão necessário a sua efetivação.

A própria escolha das comunidades parte deste princípio, esta não acontece de forma aleatória, e muito menos devido a vulnerabilidade social desses espaços, mas sim através de interesses burgueses, de cunho econômico, em determinados territórios urbanos. A partir de tais interesses, elege-se quais são os pontos da cidade que necessitam mais urgentemente de um “choque de ordem”, de uma higienização... Enfim, de uma adaptação de seus espaços para a entrada do capital privado. Assim, ao fazermos uma análise mais aprofundada da função das UPPs dentro do novo modelo de organização da cidade, nota-se que esta funciona como uma atualização contemporânea da prática de higienização social, que iniciou-se com a já analisada Era das Demolições. Agora, a higienização acontece através de uma gestão militar dos lugares pobres, ou seja, as comunidades passam a funcionar como verdadeiros “condomínios de pobres”, onde as forças policiais seriam os síndicos, assim, existem regras a serem seguidas e retaliações para quem descumpri-las.

3.3 - UPP: programa de segurança pública ou reorganização das comunidades em

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