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2 DISCURSO, HEGEMONIA E POLÍTICA CURRICULAR

2.3 POLÍTICA CURRICULAR NUMA ABORDAGEM DISCURSIVA:

Uma crítica bastante contundente de análise de políticas centrada no estado é assumida pelo sociólogo da educação inglês Stephen Ball (1994); Ball e colaboradores (1992) em trabalhos que investigam as políticas educacionais na Inglaterra em um contexto de reestruturação neoliberal do Estado e de avanço das teses sobre os efeitos homogeneizadores da globalização econômica sobre as políticas educacionais em contextos nacionais e locais. Ball questiona as abordagens teórico-metodológicas de análise de políticas centradas no Estado, em que os processos políticos são analisados como determinação dos processos econômicos e dos interesses que o Estado representa na estrutura da sociedade capitalista. Pois, como assevera o autor, qualquer política educacional que se preze não pode se limitar à perspectiva do controle estatal. As críticas de Ball se direcionam às conexões diretas e unidimensionais que as teorias centradas no Estado estabelecem entre concepção e implementação de políticas, o que alimenta uma concepção de Estado onipotente que não deixa espaço para a ação humana de contestação desempoderando os sujeitos da prática educacional.

Na relação complexa entre educação e os processos de globalização, o autor problematiza a globalização dos discursos ideológicos que determinam as políticas educacionais ao nível nacional e seus efeitos resultantes em termos de produção hibridizadas. Ball rejeita determinados tipos de análise que colocam a globalização como produtora de políticas homogeneizantes definidas por países centrais do capitalismo e transportadas para países em desenvolvimento como forma de exportação das soluções “mágicas” fabricadas em contexto global para os problemas educacionais de sociedades locais. Em sua análise, a globalização “não é apenas um fenômeno que existe “lá fora”. Ela se refere não apenas à emergência de sistemas mundiais de larga escala, mas à transformações na própria textura da vida cotidiana”. Dessa forma, o autor afirma que a globalização “invade os contextos locais, mas não os destrói”, ao contrário impacta na produção de novas formas de identidade cultural e auto-expressão local (BALL, 2000, p. 121-122).

Stephen Ball tem contribuído para a construção de um referencial teórico- metodológico de análise de política educacional e de política curricular que supere as perspectivas macro estruturais de análise de políticas. Com isso, busca romper com as perspectivas deterministas e unidimensionais de análise, em que se confere ao Estado a primazia na formulação da política educacional a ser implementada pelas escolas e

professores no contexto da prática. O autor rejeita os modelos de política educacional que separam as fases de formulação e implementação porque tais modelos ignoram as disputas e os embates que permeiam a produção e a interpretação das políticas e reforçam a racionalidade do processo de gestão. Ball entende a política como processo complexo, não linear, e multifacetado que envolve:

confusão, necessidades (legais e institucionais), crenças e valores discordantes, incoerentes e contraditórios, pragmatismo, empréstimos, criatividade e experimentações, relações de poder assimétricas (de vários tipos), sedimentação lacunas e espaços, dissensos e constrangimentos materiais e contextuais. (BALL; MAINARDES, 2011, p. 13)

Desta forma, a importância da análise do Estado não é desprezada, pois Ball a considerada incluída na sua proposição analítica do Ciclo Contínuo de Políticas11. No entanto, ao criticar os modelos estadocêntricos de análise de políticas ressalta que estes tendem a interpretar diferentes textos e discursos circulantes sem uma interlocução com o discurso pedagógico, com as demandas educacionais da sociedade mais ampla e as tradições curriculares das escolas e do meio educacional (BALL apud LOPES, 2011). Assim os conflitos, disputas e embates que envolvem outros sujeitos e grupos na complexa trajetória das políticas não são evidenciados, levando a uma compreensão parcial que privilegia o Estado em detrimento de outros sujeitos e grupos sem que as tensões existentes no processo de produção da política sejam evidenciadas e/ou problematizadas.

Baseado em aportes teóricos que deslizam ente teorias críticas e pós- estruturalistas, Ball (1994) Ball e colaboradores (1992) propõe um tipo de análise em que a política é concebida como texto e como discurso, simultaneamente. A conceituação de política como texto baseia-se na teoria literária, que entende as políticas como representações codificadas e decodificadas de maneira complexa, sofrendo múltiplas influências, mais ou menos legítimas. Como afirmam Lopes (2011) e Mainardes (2007), os textos são produtos de

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O Ciclo Contínuo de Políticas é uma estrutura conceitual para o método das trajetórias das políticas que engloba três contextos políticos primários inter-relacionados. Cada um desses contextos apresenta arenas, lugares e grupos de interesse e cada um deles envolve disputas e embates. Esses contextos estão inter- relacionados, não têm uma dimensão temporal ou sequencial e não são etapas lineares. O primeiro contexto é o contexto de influência, compreendido como aquele em que as definições políticas são iniciadas e os discursos políticos são construídos. O segundo que é contexto de produção do texto político. É no contexto de produção que os textos que representam a política são elaborados. O terceiro contexto é contexto da prática. Nesse contexto, os textos políticos do contexto de produção e os discursos do contexto de influência são submetidos a reinterpretações e recontextualizações, modificando os sentidos e significados da política de acordo com as demandas dos sujeitos no contexto da prática. Posteriormente ao estabelecimento dos três contextos, Ball acrescenta dois outros: o de resultados e o de estratégias políticas, por meio dos quais procura dar visibilidade aos efeitos e ao alcance da política no enfrentamento das injustiças e das desigualdades.

múltiplas influências e agendas, sua formulação envolve intenções e negociações dentro do Estado e dos processos de formulação da política. Nesse processo apenas algumas agendas e demandas são reconhecidas como legitimas e algumas vozes são ouvidas. Dentre as demandas legitimadas há disputas, compromissos, interpretações e reinterpretações na negociação pelo controle dos sentidos e significados nas leituras a serem realizadas. Textos podem ser mais ou menos legíveis em função da história, dos compromissos, dos recursos e do contexto de leitura (LOPES, 2011; MAINARDES, 2007).

Ancorado na concepção de prática discursiva de Foucault, Ball formula a sua concepção de política como discurso. Assim, afirma que os discursos são práticas que produzem os objetos dos quais falam. Desta forma:

Discursos são sobre o que pode ser dito e pensado, mas também sobre quem pode falar, quando, onde e com que autoridade. Discursos incorporam o significado e o uso de proposições e palavras. Dessa forma, certas possibilidades de pensamento são construídas. Palavras são ordenadas e combinadas em formas particulares e outras combinações são deslocadas ou excluídas. (MAGUIRE; BALL, 2007, p. 98)

Como discurso, a política não pode ser compreendida fora das relações materiais que as constituem “ainda que tais relações materiais transcendam à análise das circunstâncias externas ao discurso” (LOPES, 2006, p. 38). Investigar os discursos implica investigar as regras que norteiam as práticas. A política como discurso “estabelece limites do que é permitido pensar” e determina as “vozes” que serão ouvidas como legitimas e investidas de autoridade. Referenciado em Foucault, Ball explica que as políticas podem se converter em regimes de verdade em que discursos serão mais dominantes que outros. Ao pensar a política como discurso, Ball salienta que os discursos subjugados não são completamente excluídos da arena política, mas certos discursos nos fazem pensar e agir de forma diferente, limitando nossas respostas a mudanças (BALL apud LOPES, 2006). Com isso Ball afirma que:

Os efeitos das políticas como textos e como discursos são contextuais e estabelecem constrangimentos para as políticas. Na medida em que são múltiplos os produtores de textos e discursos – governos, meio acadêmico, práticas escolares, mercado editorial, grupos sociais os mais diversos e suas interpenetrações –, com poderes assimétricos, são múltiplos os sentidos e significados em disputa. (apud LOPES, 2006, p. 38)

Políticas como texto e como discurso são conceituações complementares na teorização de Ball. Enquanto a política como discurso enfatiza os limites impostos pelo próprio discurso, a política como texto enfatiza o controle que está nas mãos dos próprios leitores. Os textos não são apenas o que parece ser em sua superfície, mas são portadores de

significados contextuais, dependentes de história, de relações de poder e de interesses em jogo.

Defendo que a perspectiva teórica de Ball é bastante instigante para pensar o processo de produção da política de currículo em contextos atuais, pois, os textos curriculares não sendo portadores de sentidos fixos articulam e negociam diferentes sentidos sobre a política a partir da influência de uma multiplicidade de grupos e sujeitos que disputam o poder de significar o currículo. Se consideramos a dinâmica de produção da política de currículo para o ensino médio no Brasil e, mais precisamente, a produção dos discursos sobre integração curricular no contexto de tal política, podemos perceber o quão complexas são as articulações entre as diferentes demandas curriculares que participam da disputa pela fixação de sentidos nos textos políticos. Não existe um único centro de emanação dos discursos e nem mesmo se pode ler em tais discursos sentidos consensuais. A presença de sentidos diversos e às vezes até divergentes nos textos políticos é demonstrativo de que há grupos e sujeitos que influenciam e participam da produção da política, sem que necessariamente façam parte das estruturas governamentais e legislativas. Pesquisadores, professores, universidades, entidades científicas e sindicais são exemplos de outros sujeitos que têm disputado significados e sentidos para o currículo no espaço de produção dos textos políticos. Esses discursos também têm ampla circulação entre professores nos espaços das escolas por meio de produções científicas, eventos, dentre outros instrumentos utilizados para disseminar tais discursos e angariar a adesão aos sentidos que articulam. Não há por parte de professores alunos e comunidade uma mera adesão aos discursos oficiais, mas recontexualizações hibridizadas que também produzem sentidos para a política.

O Ciclo Contínuo de Políticas é uma das bases teóricas que tem orientado as investigações sobre políticas e práticas curriculares desenvolvidas por autores como Alice Casemiro Lopes, Elizabeth Macedo e Maria de Lourdes Rangel Tura, da Linha de Pesquisa Currículo: sujeitos, conhecimento e cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tais pesquisadoras defendem que a proposta de articular estrutura e ação é uma das maiores contribuições de Stephen Ball para os estudos das políticas de currículo. (LOPES; MACEDO, 2011a, 2011b; LOPES, 2011; MACEDO, 2006). Além disso, enfatizam a produtividade do Ciclo Contínuo de Políticas por sua capacidade de questionar a centralidade do Estado na produção das políticas e o privilégio conferido às interpretações verticalizadas de proposta curriculares, assim como por buscar analisar de forma mais complexa os deslizamentos contextuais de sentidos das políticas, relativizando os enfoques que se orientam pela determinação do global sobre o local (LOPES, 2011; LOPES, 2014). Entretanto, as

apropriações que as autoras fazem das ideias de Ball não são isentas de críticas. Dentre os limites percebidos no modelo analítico do autor está ausência de uma teorização sobre hegemonia e sobre o processo de negociação que produz tal hegemonia, de forma a explicar como os sujeitos sociais agem na busca de hegemonizar suas posições na luta pela significação da política (LOPES; MACEDO, 2011a, 2011b). Na perspectiva de tentar preencher essa lacuna é que as autoras têm procurado articular o referencial do Ciclo Contínuo de Políticas com aportes teóricos pós-estruturalista e pós-fundacionalistas da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau na construção de um referencial de análise mais próprio de política curricular capaz de auxiliar na compreensão do processo articulatório que possibilita a hegemonização contingente de certos discursos em uma determina política. Pela potencialidade que este referencial apresenta para pensar a política numa perspectiva mais complexa é que o concebo como adequado ao meu propósito de investigar as negociações e articulações entre as demandas curriculares que constituem a cadeia de equivalências dos discursos de integração, hegemonizado nos atuais textos políticos para o ensino médio no Brasil.

Nesse sentido, assumo currículo, tal como definido por Lopes; Macedo (2011b) como prática de significação e de enunciação cultural e a política curricular como luta política pela significação do currículo. Tais concepções estão ancoradas em pressupostos pós- estruturalistas e pós-fundacionais e tem como horizonte redefinir o currículo e a política numa perspectiva discursiva abandonando pressupostos como verdade, projeto, classe social, realidade e sujeito e os projetos sociais e políticos como determinações de ordem econômica ou cultural. Concordo com Lopes quando defende que a perspectiva pós-fundacional leva a pensar nas decisões políticas como contingentes e contribui “para bloquear a possibilidade de um fundamento como razão correta e definitiva para organizarmos o currículo de uma determinada maneira” (LOPES, 2014, p. 48-49).

Na mesma direção, assumo, em concordância com Tura e Pereira (2013), currículo como um sistema simbólico e linguístico contingente, ou seja, “como espaço/tempo em que sentidos são permanentemente produzidos, disputados e negociados”. Nesse sentido, compreendo a política curricular como um sistema de produção cultural de significados, ou seja, como “discursos que articulam sentidos entendidos como significados teóricos e práticos que disputamos para operar no mundo”. Significados, no entanto, que “só podem ser fixados de forma contingente e provisória e, nesse processo, proliferam, sofrendo transformações próprias da dinâmica discursiva” (TURA; PEREIRA, 2013, p. 112).

A concepção de política curricular como um sistema discursivo de luta pela hegemonização de significados é uma perspectiva que vem sendo desenvolvida pela Linha de Pesquisa Currículo: sujeitos, conhecimento e cultura (já antes mencionado). Esta concepção articula o Ciclo Contínuo de Políticas de Stephen Ball à Teoria do Discurso de Ernesto Laclau, em aproximação com o campo do currículo. A Teoria do Discurso, embora não seja uma teorização propriamente educacional ou curricular, mas uma teorização sobre os sentidos que a luta política assume no processo de significação do social, oferece uma grande potencialidade para analisar os processos políticos de construção do currículo. Pois, se consideramos que a política curricular é uma luta contingente pela hegemonização de significados e que os discursos são produzidos a partir da articulação entre diferentes demandas que participam do processo de disputa e negociação hegemônica, não havendo centros fixos capazes determinar a produção da política, então, a Teoria do Discurso mostra a sua pertinência na análise do objeto e das questões de investigação anunciadas por esta pesquisa.

3 INTEGRAÇÃO NO ENSINO MÉDIO: emergência, trajetória e sentidos privilegiados