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Políticas educacionais e ações afirmativas no ensino superior: o caso da

2 O PONTO DE VISTA HISTÓRICO: PROFISSIONALIDADE DO

2.2 As ações afirmativas no ensino superior: cotas raciais e sociais

2.2.1 Políticas educacionais e ações afirmativas no ensino superior: o caso da

No cenário político nacional em 2004, tramitava na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, o projeto de Lei n°.3.627 de 2004 em favor da reserva de vagas na universidade para estudantes negros e índios provenientes da escola pública.

No ano seguinte, enquanto esse projeto ainda tramitava, a Universidade Federal do Ceará recebeu do Ministério Público Federal a Recomendação n°.1517, que tratava como o

próprio nome diz de uma recomendação à universidade para realizar um programa de ações afirmativas. Atendendo tal instrução, o então reitor René Barreira publicou a Portaria n°. 706 para constituição do Grupo de Trabalho de Política de Ações Afirmativas da UFC, o GTPAA. Esse GT tinha por incumbência fomentar as discussões sobre as ações afirmativas na UFC e, para isso, realizaria o I Ciclo de Debates sobre Políticas de Ações Afirmativas, para a partir dos debates e das reflexões dele decorrentes, e em parceria com as pró-reitorias (Graduação e Extensão) e o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CEPE, elaborar um documento propositivo sobre as ações afirmativas na universidade.

O GTPAA era composto por docentes18 que tinham envolvimento com pesquisas e ações de extensão relacionadas às questões das desigualdades no que se refere aos negros, aos indígenas e aos deficientes. A conclusão da tarefa desse grupo foi dada com a elaboração das Diretrizes para uma Política de Ações Afirmativas na UFC.

17Recomendação n°.15 à universidade: pode ser realizado “um possível empreendimento, por parte da UFC, de um programa de ações afirmativas de inclusão social para ingresso de candidatos de grupos étnicos minoritários desfavorecidos” (In: Diretrizes para uma Política de Ação Afirmativa na UFC, documento de acesso restrito do GTPAA/ UFC).

18Sandra Haydé Petit, Henrique Cunha Júnior, Eliane Dayse Pontes Furtado, Maria de Fátima Vasconcelos, Eurípedes Antônio Funnes, Vanda Magalhães Leitão, Isabelle Braz Peixoto da Silva, Flávio José Moreira Gonçalves; Célia Chaves Gurgel do Amaral e Heveline Ribeiro.

A adoção de uma política de cotas na universidade justificada no documento de Diretrizes do GTPAA em 2006, deu-se pela situação de desigualdade social vivenciada por negros, índios e deficientes motores e sensoriais em nossa sociedade e que afeta diretamente a entrada desses grupos no ensino superior.

Quando o GTPAA foi instituído, o percentual da população branca nas universidades era de 72,9%, segundo dados do IBGE de 2003. Com a implantação da política de ações afirmativas, através do sistema de cotas, podemos perceber que esse número diminuiu para 65,7% de brancos e os negros (pretos e pardos) passaram a 35,8%.

Diante desse dado, é importante compreender que os negros são minoria nas universidades brasileiras, considerando que eles compõem 51% da população brasileira conforme os dados do IBGE, através do censo de 2010 (PORTAL BRASIL, 2015). Outro fato importante a se considerar é que grande parte da população negra é pobre. Raça e pobreza estão interseccionadas. Segundo Henriques (2002, p.27), “a pobreza no Brasil tem cor. A pobreza no Brasil é negra”.

Um ponto necessário a esclarecer aqui neste trabalho é que o documento do GTPAA se baseou na Constituição Federal, fundamentando-se no conceito de igualdade (formal e efetiva) para justificar a necessidade de políticas de cotas nas instituições de ensino superior para estudantes egressos de escolas públicas. Conforme podemos ver no texto das Diretrizes para uma Política de Ações Afirmativas na UFC (2006, p.8),

A própria Constituição Federal, ao instituir o princípio da isonomia, sugere que se transcenda a igualdade formal (tratar todos igualmente) para garantir um mínimo de igualdade material (aquinhoar igualmente os que estejam em igual situação e desigualmente os que estejam em situação desigual). As ações afirmativas destinam- se, exatamente, a equilibrar as oportunidades dos diversos grupos sociais enquanto persistirem as diferenças que possam configurar desigualdade real de oportunidades, tudo para que se garanta a efetiva construção de uma sociedade “justa, livre e solidária”, um dos objetivos centrais da República Federativa do Brasil. (Art. 3º, I, CF).

Desse modo, partindo da Constituição Federal, o GTPAA defendeu uma política de reserva de vagas raciais e sociais para os estudantes, compreendendo que essa poderia ser uma das formas de se reparar danos causados aos povos historicamente discriminados, na medida em que lhes propicia uma condição de crescimento social, uma forma efetiva de combate à desigualdade social.

A proposta das cotas na UFC era de que os estudantes tivessem acesso à universidade, mas também de que lhes seriam promovidas condições de permanência. Além da reserva de vagas, o documento das Diretrizes sinaliza que deveriam ser desenvolvidas

ações na universidade que, dentre outras, visassem: apoio psicopedagógico para os alunos cotistas que necessitassem, provimento das necessidades de moradia e alimentação, bem como, de bolsas para esses estudantes e reestruturação arquitetônica para o acesso de estudantes deficientes.

Basicamente, o percentual das cotas destinado aos estudantes se enquadraria na reserva de 50% das vagas, conforme podemos ver no documento das Diretrizes (UFC, 2006, p.26):

Para esta implementação, a UFC deve considerar os direitos de Acesso a estudantes orientando-se pelo seguinte:

1. Reservar 50% das vagas existentes em cada Curso de Graduação para estudantes oriundos de escolas públicas, segundo o PL 3.627/2004 tramitando no Congresso Nacional, para se submeterem ao exame vestibular. Dentre estas, 40% devem ser destinadas a negros e pardos e 2% para indígenas de etnias reconhecidas.

2. Reservar 5% do total de vagas em cada curso para pessoas com deficiência motora e/ou sensorial.

Os estudantes se inscreveriam para o exame vestibular e aqueles que optassem pelo sistema de cotas, deveriam apresentar autodeclaração em relação à raça/etnia constante no formulário de inscrição. Assim, respaldando-se na lei, o GTPAA preparou a universidade para a implantação do sistema de cotas.

A primeira universidade brasileira a adotar o sistema de cotas foi a UERJ em 2002, posteriormente a UNB, a UFF, a UFC, dentre outras instituições, adotaram o referido sistema. O sistema de cotas na UFC, após discussões e reflexões sobre cotas promovidas pelo GTPAA, só foi aprovado pelo CONSUNI em 2012, em função da aprovação da lei federal nº.12.711/ 2012, sendo implantado a partir do processo seletivo de 2013.

A UFC inicialmente implantou o sistema com o percentual mínimo de 12,5% das vagas para estudantes cotistas em 2013. No ano seguinte, a universidade seguiu a recomendação da Lei de cotas nº. 12.711/ 2012, sancionada em agosto de 2012 e que garante:

A reserva de 50% das matrículas por curso e por turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos que cursaram integralmente o Ensino Médio na rede pública. Os demais 50% das vagas permanecem em ampla concorrência (MEC, [20--?]).

Na UFC, bem como em outras universidades brasileiras, o sistema de cotas compreende o recorte social e racial. As cotas sociais são destinadas aos alunos de baixa renda e aos estudantes de escola pública. As raciais são destinas aos alunos pretos, pardos e indígenas. O percentual destinado à ampla concorrência é de 50%, assim como para as cotas. Sendo que dentro dos 50% do percentual destinado aos estudantes cotistas, metade desse

percentual deve ter renda de até 1,5 salário mínimo per capita e os outros 50% pode ter qualquer renda.

Como o percentual das cotas em cada estado deve ser baseado nos dados do IBGE, dentro dessas fatias de percentual de 50%, a universidade considerou o percentual de 67% em cada uma fatia, a partir do somatório de pretos (4,8%), pardos (62%) e indígenas (0,2%) que se declararam ao IBGE no estado do Ceará em 2010. Os 33% restantes em cada fatia correspondem às demais vagas, ou seja, aos alunos brancos de escolas públicas que também podem entrar pelas cotas, valendo-se do critério social.

Dentro dessa perspectiva, o sistema de cotas visa, sobretudo, oportunizar aos alunos de escolas públicas o acesso ao ensino superior. No entanto, tal sistema deixa a desejar no que se refere a um dos principais fatores de desigualdade social, claramente presente na universidade, que é o acesso dos estudantes negros. Sabemos que a maioria dos estudantes negros são oriundos de escolas públicas, mas com o percentual adotado, ou seja, da forma como foi estabelecida a distribuição das vagas dentro dos 50% destinados aos cotistas, podemos ver que não há como corrigir essa sub-representação. Por isso, o enegrecimento da universidade não é perceptível, especialmente, nos cursos considerados de elite como os das áreas de Saúde, Tecnologia e Direito.

Na Figura 1 podemos ver a distribuição das cotas na UFC com os respectivos percentuais:

Figura 1 – Sistema de cotas da UFC

Fonte: Portal da UFC – www.sisu.ufc.br.∗

Resultado da soma dos índices do IBGE de 62% de pardos, 4,8% de pretos e 0,2% de indígenas na população

Professor Jesualdo Pereira Farias, que em 2013 ocupava o cargo de reitor, ao tratar da possibilidade de aumentar as vagas para estudantes cotistas, explicitamente declara:

Em 2014 nós queremos chegar aos 50% das nossas vagas para cotistas, se tudo o que nós prepararmos em termos de orçamento para assistência estudantil for atendido para o orçamento de 2014. Desses 50% nós vamos insistir que 80% sejam para alunos pobres porque não podemos pensar diferente. Se é cota, então que seja

para estudantes pobres. Outra confusão que a imprensa fez é que em nenhum

momento a adoção dos 80% prejudica o critério de raças, da mesma forma nós vamos respeitar o percentual de índios, negros e pardos. Os percentuais estabelecidos pelo último censo do IBGE serão respeitados para os 80% em 2014 e também para os 20% dos estudantes de escola pública que têm renda superior a 1,5 salário mínimo per capita, então não há nenhum prejuízo. Nós estamos rigorosamente dentro do que estabelece a lei. (Entrevista à ADUFC em 04/01/2013, grifo nosso).

Mesmo explicando que o percentual para raças será respeitado, o aumento do percentual para estudantes cotistas não corrige a subrepresentação dos cotistas raciais, pois o percentual destinado a eles não é plenamente aproveitado. Isso acontece porque o total dos 50% das vagas ofertadas não é destinado exclusivamente aos cotistas com critério racial, como pudemos ver no sistema de cotas da UFC apresentado anteriormente (Figura 1).

Além disso, a preocupação pertinente da universidade com o futuro dos novos alunos em termos de assistência estudantil (bolsa, moradia, alimentação, material didático etc.), não garantia a efetiva adoção de políticas afirmativas relacionadas ao acompanhamento do desempenho acadêmico dos alunos. Isso é necessário, considerando que em muitos cursos os estudantes sofrem discriminação por serem cotistas. O próprio reitor, nessa entrevista, considera essa ação importante, mas não esclarece que medidas pretende tomar para atender esse alunado.

É importante salientar que as cotas sociais e raciais têm possibilitado condições de ingresso dos estudantes aos cursos da universidade, porém eles têm se concentrado principalmente nos cursos da área de Ciências Humanas. A meta da universidade é que haja uma maior distribuição dos alunos pobres entre os demais cursos, atingindo um percentual mínimo de representatividade. Dentro dessa perspectiva, ocorre que, na política de ações afirmativas adotada pela UFC, as cotas raciais ficaram diluídas nas cotas sociais, e isso invisibiliza a questão racial. Como a questão de raça está interseccionada a de classe e gênero, a universidade assegura seu padrão (homem, branco, classe média) na distribuição dos estudantes nos cursos mais elitizados.