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Políticas públicas e ações de combate ao racismo e de educação das relações étnico-raciais no século

1. A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL: LONGA HISTÓRIA DE EXCLUSÕES E LUTA PELA

1.2. D IVERSIDADE CULTURAL E EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA A PARTIR DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX

1.2.3 Políticas públicas e ações de combate ao racismo e de educação das relações étnico-raciais no século

Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na Conferência Mundial de Combate ao racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminação Correlatas (Durban, 2001), ao lado de mudanças no cenário político nacional nos primeiros anos deste novo século – e milênio – constituem um contexto favorável ao surgimento de um novo conjunto de legislações e normatizações, acompanhadas de políticas públicas e outras iniciativas visando o enfrentamento das desigualdades raciais. Podemos destacar, em âmbito federal: o Decreto nº 3.551, de 2.000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, dentre os quais se enquadram os registros de patrimônio afro- brasileiro; o Decreto 4.228, de 2002, que institui, no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas; a Lei 10.639/03, seguida das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004); a criação, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR – juntamente com a instituição da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886/2003)36; o surgimento, em 2004, no âmbito do

Ministério da Educação, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD.

Esta Secretaria apresenta como meta o “enfrentamento das injustiças existentes nos sistemas de educação do País, valorizando a diversidade da população brasileira, trabalhando para garantir a formulação de políticas públicas e sociais como instrumento de cidadania”37. A SECAD se subdivide em quatro departamentos, entre os quais o Departamento de Educação para a Diversidade e Cidadania, no interior do qual se encontra a Coordenação-geral de Diversidade e Inclusão Educacional, “responsável por elaborar e implementar políticas educacionais que favoreçam o acesso e a permanência de afro-descendentes em todos os níveis da educação escolar e por fortalecer e valorizar a diversidade étnico- racial brasileira.”38. Entre as ações dessa Coordenação podemos citar a realização, em 2004 e 2005, de 21 fóruns estaduais, com intuito de discutir a desigualdade no cotidiano escolar e formular estratégias de implementação da lei 10.639/03, além de mapear experiências bem sucedidas de ingresso e permanência de alunos e alunas negros nas escolas. Tais encontros resultaram na constituição de Fóruns Permanentes de Educação e Diversidade Étnico-Racial, que pretendem ser espaço de articulação de uma rede de profissionais de educação comprometidos com a valorização da diversidade étnico-racial, “a partir da elaboração de uma carta de compromisso com a educação e a diversidade étnico-racial, assinada pelas Secretarias Estaduais de Educação, MEC/SECAD, ONG’s, IES (Instituições de Ensino Superior), Conselhos de Educação, associações e entidades do movimento negro organizado, dentre outras instituições”. Minas Gerais é um dos 17 estados que

36 Na Lei 10.639/03 há citação explícita das disciplinas de história, educação artística e literatura como campos

disciplinares que deverão privilegiar a abordagem da história e cultura africana e afro-brasileira na educação escolar. Tanto na Lei 10.639/03 quanto no Decreto 4.886/03 há destaque efetivo para abordagem das relações étnico-raciais brasileiras no processo educativo e priorização centrada especialmente na população negra do país. Também se determina o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar.

37 Disponível no portal www.mec.gov.br/secad . 38 Idem

constituíram seus Fóruns Permanentes39. A SECAD também tem atuado no

processo de formação continuada de professores e na publicação de obras direcionadas a professores da Educação Básica40.

Uma das mais recentes iniciativas dessa Secretaria, juntamente com a SEPPIR e outras entidades governamentais e não governamentais, foi o lançamento, em maio de 2009, do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei 10639/2003. Visando institucionalizar o processo de implementação, zelar pelo seu cumprimento e orientar gestores e diferentes atores envolvidos neste processo, o documento se propõe a focalizar “competências e responsabilidades dos sistemas de ensino, instituições educacionais, níveis e modalidades” e apresenta como objetivo central “colaborar para que todo o sistema de ensino e as instituições educacionais cumpram as determinações legais”.

Outro exemplo de política pública federal instituída nos últimos anos pode ser encontrado na Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica, criada em 2004, através da Secretaria de Educação Básica, do MEC, com intuito de institucionalizar o atendimento da demanda de formação continuada e garantir maior qualidade e abrangência dos programas. Embora não seja um programa voltado especialmente para o tratamento das questões da diversidade e da temática racial, a Rede possibilitou o surgimento de projetos nesta direção, como por exemplo, o que foi desenvolvido pelo CEFOR PUC Minas, um dos

39 O Fórum Permanente Educação e Diversidade Étnico-Racial de Minas Gerais reúne organizações

governamentais e não-governamentais e tem sido responsável pela promoção de eventos e ações diversas, como por exemplo, o evento de lançamento do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, ocorrido nas dependências da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte – SMED, em 28/10/2009. O evento reuniu representantes das secretarias municipais de educação de Belo Horizonte,

Contagem e Ribeirão das Neves; representante do Ministério Público de Minas Gerais; a Coordenadora Geral de Diversidade da SECAD, Leonor Franco de Araújo; o representante da SEPPIR, Marcos Antonio Carvalho das Chagas; a representante da UNESCO, Regina Couto Melo; a Coordenadora da COMACON - Coordenadoria dos Assuntos da Comunidade Negra, da Prefeitura de Belo Horizonte; e inúmeros outros representantes de IES – Instituições de Ensino Superior e entidades diversas da sociedade civil.

40 Entre as publicações, podemos citar as coletâneas “Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal

nº 10.639/2003”; “Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas”; “História da Educação do Negro e outras histórias” e “Acesso e Permanência da População Negra no Ensino Superior”, “O Programa Diversidade na Universidade e a Construção de uma Política Educacional Anti-Racista”, todos da Coleção Educação para

Todos (MEC/UNESCO). Além disso, a SECAD reeditou, em 2005, a obra “Superando o racismo na escola”, cuja primeira edição é de 1999.

Centros que compôs a Rede, na área das Ciências Humanas e Sociais41. Entre os

programas de formação desenvolvidos pelo CEFOR, destaca-se o Curso de Aperfeiçoamento Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira42,

direcionado a professores da Educação Básica e ofertado na modalidade Educação à Distância - EaD. A implementação desse curso junto a professores que atuam no sistema público municipal de Contagem, Minas Gerais, durante os anos de 2006 e 2007, possibilitou conhecer experiências aí desenvolvidas e levou à escolha desse município como lócus privilegiado desta pesquisa.

O Curso ministrado pelo CEFOR é apenas um exemplo entre os inúmeros programas de formação inicial e continuada de professores que têm como foco a temática africana e afro-brasileira. No âmbito da formação inicial, temos notícia, nos últimos anos, de alguns processos de reformulação curricular que vêm resultando na introdução de disciplinas relacionadas à História da África e dos afro-descendentes, sobretudo nos Cursos de Graduação em História43. Além disso, tem-se multiplicado a oferta de Cursos de Pós-Graduação44 e de programas de formação continuada, promovidos por Instituições de Ensino Superior45, por secretarias de educação e outras entidades formadoras. A participação de instituições de ensino superior tem se dado, ainda, através de uma crescente produção científica, tanto a partir de programas de pós-graduação stricto senso quanto através de centros de estudo e

41 Mudanças recentes nas diretrizes do MEC levaram a uma reconfiguração da Rede Nacional de Formação Continuada de Professores, que passou a ser composta apenas por universidades públicas.

42 Exercendo a função de Assessora de História do CEFOR PUC Minas, atuei durante quatro anos como

coordenadora e professora deste curso.

43 Em rápida pesquisa exploratória na web foi possível identificar a oferta de disciplinas relacionadas ao tema em

diferentes universidades e faculdades do Brasil, tais como a Universidade Federal de Minas Gerais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Universidade Católica de Salvador, Universidade de Brasília, Universidade Estadual de Campinas, Universidade de São Paulo – USP, Universidade Cândido Mendes (RJ), Faculdade de Pedro Leopoldo (MG), Fundação Monsenhor Messias (Sete Lagoas, MG). Uma lista mais abrangente das IES que introduziram disciplinas relacionadas ao tema em seus currículos demandaria uma pesquisa mais aprofundada, o que extrapola o âmbito deste trabalho.

44 Em Minas Gerias, poderíamos citar, a título de exemplos, os cursos de especialização: “África: história e

cultura” e “História e Cultura Afro-brasileira”, ambos ofertados pelo PREPES/PUC-Minas; “Estudos Africanos e Afro-brasileiros”, ofertado pelo IEC/PUC-Minas; História da África e Cultura Afro brasileira: uma introdução à Lei 10.639/03, ofertado pela FaE/UFMG. Além disso, identificamos diversas universidades e outras instituições de ensino superior, em diferentes partes do Brasil, que ofertam/ofertaram cursos de especialização centrados nesta temática.

45 Também em Minas Gerais, podemos destacar, além do curso do CEFOR, o Curso de Aperfeiçoamento

“História da África e Culturas Afro-brasileiras” (UNIAFRO/MEC/SESU/SECAD), ministrado pela FAE/UFMG, em duas ofertas distintas. Além disso, inúmeros professores mineiros participaram do Programa de Educação

Continuada em Ensino de História e Culturas Afro-brasileiras e Africanas: Lei 10.639/2003 (Educação – Africanidades – Brasil), ofertado em 2006, na modalidade EaD, para professores dos sistemas públicos de ensino, em diferentes partes do Brasil, através de Convênio entre a SECAD e a Universidade de Brasília.

pesquisa focados na temática africana e afro-brasileira, como discutiremos no capítulo 4.

Vale lembrar que, desde os anos 1990, Constituições Estaduais, Leis Orgânicas e leis ordinárias municipais passaram a tratar da inclusão de conteúdos curriculares relacionados ao “estudo da Raça Negra” e contra a discriminação46. Particularmente nos últimos anos, tem crescido, em âmbito estadual e municipal, os investimento de secretarias de educação e cultura, visando à introdução das temáticas africana e afro-brasileiras nos currículos escolares, em ações variadas, que incluem programas de formação continuada de professores, oficinas e palestras direcionadas a pais, alunos e comunidade em geral, distribuição de kits de materiais didáticos e paradidáticos47, entre outras iniciativas.

Devemos considerar, também, a participação do mercado editorial na divulgação de obras sobre a temática africana e afro-brasileira. Ainda que os interesses aí envolvidos extrapolem ou sejam distintos daqueles que movem órgãos públicos e entidades da sociedade civil, não podemos negar que a multiplicação de obras paradidáticas ou de literatura destinadas ao público infantil e infanto-juvenil se apresenta como um dos importantes recursos para que a temática seja efetivamente incorporada aos currículos da educação básica. Além disso, a produção de livros didáticos no Brasil vem sofrendo mudanças significativas desde a instauração do Programa de Avaliação do Livro Didático, em meados dos anos 1990, e que tem contribuído para a revisão de preconceitos e imagens estereotipadas tradicionalmente veiculados pelos livros didáticos, ao longo de sua história. Atento às novas exigências do MEC, o mercado editorial tem investido tanto na reescrita de antigos manuais quanto na produção de novos, tendo como referência, entre outros aspectos, a orientação de se trabalhar com a diversidade cultural. Mesmo que os conteúdos sobre história da África e da população afro-descendente ainda ocupem pouco espaço no conjunto de conteúdos abordados, não se pode desconhecer que eles começam a comparecer nos sumários dos livros didáticos.

Pode-se dizer, então, que vivemos um contexto marcado por grande número de iniciativas e de sujeitos empenhados na efetivação da Lei 10.639/2003. A

46 A esse respeito, ver texto das Diretrizes Curriculares nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, MEC, 2004, p. 9.

47 Sobre distribuição de kits de materiais didáticos para as escolas, podemos citar as iniciativas da Secretaria de

Educação da Prefeitura de Belo Horizonte – SMED-BH, que já distribuiu três kits de livros de literatura Afro- brasileira, e da Secretaria de Educação de Contagem, que também já distribuiu dois kits de literatura afro- brasileira para suas escolas.

introdução da temática africana e afro-brasileira como conteúdo curricular obrigatório nas escolas de educação básica depende, no entanto, da conjugação de inúmeros fatores, grande parte deles relacionados ao contexto específico de cada instituição escolar e de cada sala de aula, em particular. Investigar o que está acontecendo efetivamente no interior das escolas e salas de aula, a partir do depoimento de seus professores, procurando compreender como o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira – seus saberes e práticas – tem comparecido nesses espaços, é o principal objetivo desta pesquisa. Tal empreendimento exige um estreito diálogo entre as evidências empíricas e referenciais teóricos de diferentes campos do conhecimento. O próximo capítulo volta-se à sistematização de conceitos, categorias analíticas e estudos desenvolvidos no campo dos currículos e da formação de professores, parte importante de nosso aporte teórico-conceitual.

2. Saberes e práticas no contexto de reconfigurações