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Saberes e práticas em uma “profissão de interações humanas”

2. SABERES E PRÁTICAS NO CONTEXTO DE RECONFIGURAÇÕES CURRICULARES:

2.2 O S PROFESSORES E SEUS SABERES

2.2.3 Saberes e práticas em uma “profissão de interações humanas”

O interesse pelos saberes dos professores vem, há algum tempo, ganhando espaço nos estudos e produções teóricas do campo da educação, como vimos até aqui. Mas a incorporação da expressão “saberes docentes” como uma categoria de análise, acompanhada pela construção de tipologias que buscam explicar, categorizar, esquadrinhar os saberes construídos e mobilizados pelos professores ao longo de sua trajetória de vida, profissional e de formação, é um empreendimento ainda incipiente, no campo educacional (BORGES, 2001; NUNES, 2001). Tal processo se associa diretamente às discussões sobre profissionalização docente que, por sua vez, balizam parte do grande movimento de reformas educacionais, em curso sobretudo a partir dos anos 1990, em diferentes partes do mundo, incluindo o Brasil. Tais reformas têm evidenciado grande preocupação e investimentos na formação docente, propondo

[...] uma verdadeira e profunda mutação do modelo de formação até então em vigor nas universidades: mais que os conteúdos, disciplinas e pesquisa universitária, doravante são os saberes da ação, os docentes experientes e eficazes, e as práticas profissionais que constituem o quadro de referência da nova formação dos professores. (BORGES e TARDIF, 2001, p. 16)

No Brasil, um importante marco na introdução desta categoria de análise foi representado pela publicação, em 1991, do artigo “Os professores face ao saber: esboço de uma problemática do saber docente”, de Tardif, Lessard e Lahaye, que teria contribuído para a “demarcação de um novo idioma pedagógico” (LELLIS, 2001).

Desde então, esses autores têm se tornado importante referência em vários trabalhos que têm como objeto de estudo os saberes dos professores. As questões apresentadas por Maurice Tardif, em “Saberes docentes & Formação Profissional” (2002), nos dão um panorama de suas preocupações e nos ajudam a balizar algumas das problemáticas com as quais temos nos deparado em nossa investigação:

Quais são os saberes que servem de base ao ofício de professor? Noutras palavras, quais são os conhecimentos, o saber-fazer, as

competências e as habilidades que os professores mobilizam diariamente, nas salas de aula e nas escolas, a fim de realizar concretamente as suas diversas tarefas? Qual é a natureza desses saberes? (...) Como esses saberes são adquiridos? (...) Qual é o papel e o peso dos saberes dos professores em relação aos outros conhecimentos que marcam a atividade educativa e o mundo escolar, como os conhecimentos científicos e universitários que servem de base às matérias escolares, os conhecimentos culturais, os conhecimentos incorporados nos programas escolares, etc.? Como a formação dos professores, seja na universidade ou noutras instituições, pode levar em consideração e até integrar os saberes dos professores de profissão na formação de seus futuros pares? (TARDIF, 2002, p. 9).

Postulando que o saber docente é plural, estratégico e desvalorizado socialmente, constituindo-se em um amálgama de saberes que têm origens e naturezas diversas e que comparecem de forma também diferenciada no ofício de professor, Tardif insiste na necessidade de relacionar os saberes docentes com os condicionantes e com o contexto do trabalho, procurando compreender como o saber dos professores se relaciona com a pessoa e a identidade deles, com sua experiência de vida e com sua história profissional, com suas relações com os alunos e com outros sujeitos que atuam ou interferem, de alguma forma, na escola.

Tardif parte do pressuposto de que o saber dos professores é um saber social, uma vez que: é partilhado por todo um grupo de professores, que possuem uma formação comum (embora diferenciada conforme os níveis, ciclos e graus de ensino) e vivenciam uma situação coletiva de trabalho marcada por condicionantes similares; a posse e utilização desse saber se assenta em um sistema que legitima e orienta sua definição, através de instituições credenciadas e socialmente reconhecidas, como universidades, administração escolar e associações profissionais, entre outros; os próprios objetos com os quais o professor lida são objetos sociais, uma vez que trabalha com sujeitos e em função de um projeto, que é o de transformar os alunos, educá-los e instruí-los, sendo, portanto, a relação com o outro – os alunos – parte essencial desses saberes; o que os professores ensinam (os “saberes a serem ensinados”) e sua maneira de ensinar (o “saber-ensinar”) modificam-se ao longo do tempo, condicionados por fatores diversos e fruto de um “arbitrário cultural” marcado por relações hierárquicas de poder; esse saber é construído no contexto de uma socialização profissional, sendo incorporado, modificado, adaptado em função dos momentos e das fases de uma carreira,

constituindo, assim, um processo em construção ao longo de uma carreira profissional (TARDIF, 2002).

A ênfase no caráter social do saber docente não pode significar, adverte Tardif, uma desconsideração dos atores individuais, sua personalidade e experiências pessoais e profissionais, que se concretizam na realização de seu trabalho cotidiano, assentando-se em “transações constantes entre o que eles são (incluindo as emoções, a cognição, as expectativas, a história pessoal deles, etc.) e o que fazem”, entre o ser e o agir (TARDIF, 2002, p. 16).

Nesse aspecto, torna-se fundamental considerar diferentes dimensões da identidade dos sujeitos para melhor compreender a dinâmica, evolução e características da atividade docente. Nos últimos anos, as categorias “gênero” e “identidade étnico-racial” têm se tornado importantes referências de análise. Em nosso estudo, a questão étnico-racial apresenta-se não apenas como tema em torno do qual procuramos mapear “saberes escolares” e “saberes docentes”, mas como uma das dimensões da identidade dos sujeitos pesquisados que precisa ser considerada, buscando-se apreender alguns dos processos de construção de identidade étnico-racial que emergem nos relatos dos professores e procurando compreender de que formas tais experiências identitárias moldam o trabalho realizado, conformam práticas e saberes.

Essa análise, entretanto, não pode ser feita numa abordagem de exterioridade, mas a partir das próprias situações de trabalho relatadas. Sobre isso, compactuamos com Tardif (2002) quando nos alerta para o fato de que o saber dos professores só pode “ser compreendido em íntima relação com o trabalho deles na escola e na sala de aula” (p. 16), posto que “o saber está a serviço do trabalho”, é mediado pelo trabalho, produzido e modelado no e pelo trabalho.

As análises de Tardif também apontam para a necessidade de se considerar a diversidade do saber docente, que “é plural, compósito, heterogêneo, porque envolve, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e um saber-fazer bastante diversos, provenientes de fontes variadas e, provavelmente, de natureza diferente” (TARDIF, 2002, p. 18). O autor propõe um modelo de análise baseado na origem social dos saberes dos professores, lembrando que as relações que os professores estabelecem com esses saberes implicam em relações sociais com os grupos, organizações e atores que os produzem, sendo necessário, então, levar em

consideração o que dizem os professores a respeito de suas relações sociais com esses grupos, instâncias, organizações. Partindo desses pressupostos, classifica os saberes docentes em: saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica), saberes disciplinares, saberes curriculares e saberes experenciais. Além desses, também enfatiza a necessidade de se considerar os saberes pessoais dos professores (aqueles adquiridos na família e na sua trajetória de vida, em geral) e os saberes provenientes da formação escolar anterior (a escola básica). Todos esses saberes se constituem ao longo de uma história de vida e de uma carreira profissional, sendo fundamental, então, considerar a dimensão da temporalidade para se compreender como se dá o aprendizado de diferentes saberes. A tipologia apresentada por Tardif traz contribuições para a análise que vimos desenvolvendo em torno dos saberes relativos à temática africana e afro- brasileira. Ao justificarem a opção em trabalhar com o tema ou apontarem potencialidades e/ou dilemas relativos ao mesmo, os professores pesquisados recorreram, com frequência, a suas experiências de vida e de formação escolar básica, à sua trajetória profissional e de formação, explicitando saberes aprendidos em diferentes instâncias e espaços formativos, e também expondo suas dificuldades e lacunas de formação, sobretudo no que se refere aos saberes disciplinares e, mais especificamente, em relação aos conhecimentos históricos escolares, como veremos no capítulo quatro.

Em outra obra, escrita por Tardif e Lessard, intitulada “O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas” (2005), os autores aprofundam alguns dos conceitos e ideias anteriormente trabalhados e defendem a tese primordial de que a docência é, antes de tudo, uma

profissão das interações humanas e, portanto, profundamente marcada pela

complexidade e multiplicidade de aspectos relacionados ao seu objeto de trabalho: os seres humanos. A obra apresenta um cuidadoso trabalho de esquadrinhamento do trabalho docente, com seus inúmeros componentes e suas várias interfaces, dentro do pressuposto de que o trabalho de ensinar é um trabalho heterogêneo, marcado por grande diversidade de tarefas a cumprir, e que comporta dimensões muitas vezes contraditórias e ambíguas.

Considerada uma das profissões interativas mais importantes da atualidade, a docência, enquanto tal, requer de seus profissionais “competências reflexivas de alto

nível”. Em função disso, também, defendem não ser possível pensar a profissionalização docente sem se considerar as questões de poder, de afetividade e de ética, posto que esse “trabalho sobre o outro” implica, sempre, em negociação, controle, persuasão, sedução, promessas, nele intervindo a linguagem, a afetividade e a personalidade dos trabalhadores.

Os autores identificam três grandes dimensões do trabalho docente: o trabalho como atividade (ensinar implica ações concretas realizadas em sala de aula com vistas a promover aprendizagens e a socialização dos alunos); o trabalho como status (a questão da identidade do trabalhador); e o trabalho como

experiência (entendida tanto como fruto daquilo que vai sendo aprendido ao longo

dos anos, pela repetição, quanto fruto de situações marcantes, que mudam o rumo das coisas). Em nossa investigação, temos podido identificar claramente tais dimensões, sendo que a forma mais comum dos professores relatarem suas experiências consiste em uma descrição de suas práticas, das atividades desenvolvidas, muitas vezes minuciosamente descritas. A dimensão da experiência também comparece sistematicamente nos relatos apresentados, tanto como um conjunto de certezas construídas ao longo dos anos de experiência no magistério, quanto pela descrição de experiências de forte significação – e emoção - vivenciadas em sala de aula e outros espaços, e que interferem diretamente na forma de abordagem e na própria decisão de trabalhar determinados conteúdos.

De acordo com os autores, embora o trabalho docente esteja condicionado por uma organização sociofísica baseada na estrutura celular das classes, os professores lidam com coletividades, em um espaço que, embora fechado, é público. Assim, o professor está o tempo todo em interação com uma coletividade que está, ao mesmo tempo, em interações entre si. Sendo formada por indivíduos, a coletividade não é homogênea, exigindo a coordenação das ações coletivas de indivíduos diferentes, autônomos e capazes mesmo de interditar a realização dos objetivos do trabalho docente. A necessidade de lidar com questões que os alunos vivenciam enquanto indivíduos que participam de diferentes grupos sociais, ao mesmo tempo em que é preciso manter a equidade no tratamento, faz com que a docência seja permanentemente atravessada por questões de natureza ética. Tal característica do trabalho docente é fundamental para compreendermos o que se passa hoje, dentro de algumas salas de aula, quando está em pauta a questão

étnico-racial. O objetivo de promover uma educação das relações étnico-raciais a partir do trabalho com a temática africana e afro-brasileira se mostra extremamente complexo quando analisamos o contexto da sala de aula sob essa perspectiva: um local onde se manifestam diferentes conflitos em torno da representação social sobre a população negra, conflitos estes que precisam ser constantemente mediados pelo professor, ele próprio em constante confrontação com suas próprias representações e conflitos em torno da questão racial.

Tais questões nos remetem à dimensão simbólica e interpretativa que caracteriza a interatividade em sala de aula, e que traz grande complexidade para a tarefa docente, marcada, segundo Tardif e Lessard (2005), pela multiplicidade, simultaneidade, imediatez, rapidez, imprevisibilidade, visibilidade, historicidade, interatividade e significação.

Os autores enfatizam, ainda, que a carga de trabalho dos professores comporta uma grande diversidade - em alguns casos imensurável - de tarefas e responsabilidades. O envolvimento pessoal com o trabalho, a história de vida, a experiência profissional e a própria personalidade do docente tornam-se elementos centrais na determinação dessa carga de trabalho, que é repleta de “tarefas invisíveis”, que demandam a afetividade e o pensamento dos professores, configurando aquilo que os autores chamam de “carga mental” de trabalho. A integração ou mesmo absorção da personalidade do trabalhador no processo de trabalho, longe de ser um concorrente do processo de profissionalização, é um dos elementos definidores da profissão, classificada pelos autores como um trabalho

investido. Essa dimensão do envolvimento pessoal com o trabalho e de uma forte

“carga mental” em sua configuração também emergiu em diversos momentos dos encontros entre professores que acompanhamos. Para além de tensões e dilemas envolvidos com o trato da temática em questão, os professores trouxeram inúmeros exemplos, envolvendo situações diversas que os preocupam, os angustiam e interferem na forma como conduzem seu trabalho, sejam esses elementos impulsionadores de novas práticas ou situações que os paralisam, fazendo-os sentir- se num verdadeiro “beco sem saída”.

Essa dimensão emocional do trabalho docente, em que a relação de inúmeros professores com os alunos e com a profissão é, antes de tudo, uma relação afetiva, é cuidadosamente analisada por Tardif e Lessard (2005), enquanto elemento constituinte da própria profissão, e não como algo que interdite ou se

contraponha ao processo de profissionalização docente, como muitas vezes já se discutiu. Obrigados a se desdobrar em uma multiplicidade de papéis e responsabilidades, os professores se veem muitas vezes interditados em seu mandato principal: ensinar e fazer aprender.

Outro aspecto abordado pelos autores e que nos interessa de perto diz respeito à dimensão do trabalho coletivo entre os professores. Embora o central da atuação docente seja no “espaço privado da classe”, não se pode desprezar a importância de outros espaços de atuação - no interior da escola e fora dela -, que envolvem colaboração e trocas diversas, mas também disputas, conflitos, negociações. De acordo com os autores, as colaborações são mais desejadas do que efetivadas e, quando ocorrem, não implicam em quebra da estrutura celular do ensino (presença em sala de aula continua sendo individualizada), limitando-se, quase sempre, a planejamentos conjuntos entre professores de um mesmo grau e/ou matéria e à divisão de tarefas pedagógicas (sem partilhar a atividade em si). De toda forma, os autores ressaltam as dificuldades em estabelecer uma cultura de colaboração mais ampla na escola, onde parece sempre faltar tempo para a elaboração de projetos coletivos.

Em nossa pesquisa, a dimensão do trabalho coletivo foi recorrentemente abordada, seja pela descrição de projetos envolvendo grupos de professores, seja pelo ressentimento quanto às dificuldades em operacionalizar tais trocas dentro das escolas. As chamadas “aulas compartilhadas”, que fazem parte do espectro de possibilidades de organização dos tempos pedagógicos na estrutura da política educacional do município de Contagem6, foram mencionadas por vários professores,

enquanto uma das formas em que se dá o trabalho com a temática. No entanto, não se detectou descrições de situações em que efetivamente dois ou mais professores partilhassem o mesmo espaço-tempo de aula. Pelo que observamos, os tempos de “aulas compartilhadas” são organizados de forma que não se quebre a “estrutura celular e individualizada das aulas”, com estratégias que envolvem a divisão de turmas (cada professor assume uma parte do grupo), revezamento de professores (enquanto um ministra a aula, o outro usa o tempo para planejamentos e outras atividades fora da sala de aula), etc. Enfim, embora a dimensão do trabalho coletivo tenha emergido com muita força e tenha se apresentado, em algumas situações,

como importante suporte para o trabalho com uma temática de grande complexidade e tantos conflitos, parece-nos pertinente a ponderação de Tardif e Lessard (2005) quanto às dificuldades em estabelecer uma cultura de colaboração mais ampla na escola.