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2. SABERES E PRÁTICAS NO CONTEXTO DE RECONFIGURAÇÕES CURRICULARES:

2.2 O S PROFESSORES E SEUS SABERES

2.2.2 Professor reflexivo, Prática reflexiva

A perspectiva de trabalhar com as “histórias de vida de professores” se associa diretamente a uma aposta de que tais narrativas podem se transformar em importantes estratégias de reflexão sobre a prática profissional.

Uma categoria que se tornou bastante conhecida e se integrou ao vocabulário educacional, nestas últimas décadas, foi a de “professor reflexivo”, desenvolvida por Donald Schön, que identificou duas modalidades ou momentos da reflexão docente: a reflexão-na-ação e a reflexão-sobre-a-ação. A primeira, como o próprio nome diz, refere-se aos processos reflexivos que se põe em marcha durante o ato pedagógico, no “calor do acontecimento”. A segunda exige certo distanciamento dessa prática e, segundo Shön, possibilita:

[...] olhar retrospectivamente e refletir sobre a reflexão-na-acção. Após a aula, o professor pode pensar no que aconteceu, no que observou, no significado que lhe deu e na eventual adopção de outros sentidos. Refletir sobre a reflexão-na-acção é uma acção, uma observação e uma descrição, que exige o uso de palavras. (SCHÖN, 1992, p. 83)

Philippe Perrenoud é outro autor que enfoca os saberes docentes, mas centra suas análises na questão das competências, que englobam os saberes, mas não se limitam a eles. Para o autor, conhecimentos são mobilizados nas competências, mas o processo não é automático. Apostando em uma progressiva “profissionalização do ofício de professor”, relacionada à crescente conquista de autonomia e responsabilidade por seus atos e decisões, Perrenoud reforça a ideia do profissional reflexivo, desenvolvida por Schön: “A autonomia e a responsabilidade de um profissional dependem de uma grande capacidade de refletir em e sobre sua ação” (PERRENOUD, 2002, p. 13). No entanto, procura distinguir entre uma reflexão episódica - comum em qualquer profissional, mas não suficiente para caracterizá-lo

como profissional reflexivo – e uma postura reflexiva, que o leva a estabelecer uma “prática reflexiva”.

Visando chegar a uma verdadeira prática reflexiva, essa postura deve se tornar quase permanente, inserir-se em uma relação analítica com a ação, a qual se torna relativamente independente dos obstáculos encontrados ou das decepções. Uma prática reflexiva pressupõe uma postura, uma forma de identidade, um habitus. (PERRENOUD, 2002, p. 13).

O autor procura não apenas compreender como isso ocorre – e pode ser impulsionado – em processos de formação inicial e continuada de professores, mas se dedica a elencar diferentes elementos que podem contribuir para a constituição de uma “prática reflexiva”, e nos diz:

Para formar um profissional reflexivo deve-se, acima de tudo, formar um profissional capaz de dominar sua própria evolução, construindo competências e saberes novos ou mais profundos a partir de suas aquisições e de sua experiência. O saber-analisar (Altet, 1996) é uma condição necessária, mas não suficiente, da prática reflexiva, a qual exige uma postura, uma identidade e um habitus específico (PERRENOUD, 2002, p. 24).

A ênfase na prática docente e sua associação com os conceitos de “professor reflexivo” ou ainda de “professor pesquisador”, que alcançaram grande repercussão nos meios educacionais, nestas duas últimas décadas, representou um importante contraponto aos esquemas de análise baseados na ideia de “racionalidade técnica”, que influenciaram profundamente os estudos e propostas de formação de professores em boa parte do século XX, e que supõem uma relação linear e mecânica entre o conhecimento técnico-científico (seja ele do campo disciplinar, seja do campo pedagógico) e a prática na sala de aula.

Reconhecendo que o professor enfrenta problemas de natureza eminentemente prática, muitos estudos atuais têm se pautado pelo investimento em uma “epistemologia da prática”, que busca reconhecer a complexidade e especificidade de saberes que se constituem na prática docente e que são, portanto, saberes do trabalho e no trabalho. Nesta concepção, a prática profissional não pode ser vista como local de mera aplicação de saberes oriundos de outros espaços de

produção (como as universidades), mas de filtro e recriação desses saberes em função das exigências do trabalho, em operações complexas e situacionais.

No entanto, a ampla disseminação e até mesmo uma certa “banalização” dos conceitos de “professor reflexivo” e “professor pesquisador” tem suscitado críticas e questionamentos. Na obra “Professor Reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito”, Selma Garrido Pimenta analisa as apropriações em torno desses conceitos no contexto das reformas educativas recentes, identificando certo esvaziamento de suas bases, sobretudo quando se tornam parâmetro de “competência profissional” em processos de avaliação das atividades docentes, e acabam contribuindo para uma crescente culpabilização dos professores e sua consequente desvalorização social. Ou ainda, quando apropriadas em programas de formação de professores que acreditam poder “treinar” os professores para que se tornem reflexivos. Questionando especialmente a noção de “competências”, que tem balizado muitos dos sistemas de avaliação atualmente em vigor, Pimenta (2002, p. 42) nos diz que:

[...] o discurso das competências poderia estar anunciando um novo (neo)tecnicismo, entendido como um aperfeiçoamento do positivismo (controle/avaliação) e, portanto, do capitalismo. [...] ter competência é diferente de ter conhecimento e informação sobre o trabalho, sobre aquilo que se faz (visão de totalidade; consciência ampla das raízes, dos desdobramentos e implicações do que se faz para além da situação; das origens; dos porquês e dos para quê). Portanto, competência pode significar ação imediata, refinamento do individual e ausência do político, diferentemente da valorização do conhecimento em situação, a partir do qual o professor constrói conhecimento. [...] Os saberes são mais amplos, permitindo que se critique, avalie e supere as competências.

Ainda que reconheça a fertilidade das análises desenvolvidas em torno dos conceitos de “professor reflexivo” e “professor pesquisador”, sobretudo a partir das contribuições de Donald Schön, Pimenta levanta algumas preocupações quanto a: risco de se perder de vista a dimensão coletiva da prática reflexiva, encerrando-a no indivíduo e numa reflexão em torno de si própria; ênfase demasiada na prática e até um certo “praticismo” que despreza o papel da teoria na formação docente; perda de critérios externos, institucionais e sociais, de balizamento das reflexões, pautadas pelo significado político da ação docente; necessidade de se pensar na alteração das condições de trabalho dos professores com vistas ao desenvolvimento de uma

prática reflexiva. A autora propõe a expressão “intelectual crítico reflexivo”, ao invés de “professor reflexivo”, o que permitiria ultrapassar a dimensão individual da reflexão e ressaltar seu caráter público e ético, com vistas a desenvolver “um projeto emancipatório, compromissado com a responsabilidade de tornar a escola parceira na democratização social, econômica, política, tecnológica e cultural, que seja mais justa e igualitária”. (PIMENTA, 2002, p. 45).

As ponderações apresentadas pela autora nos ajudam a pensar que ao abordar os saberes docentes estamos transitando por um terreno movediço, escorregadio e carregado de significação política e social. Por trás das discussões e tentativas de melhor compreender os saberes docentes, se colocam diferentes concepções de docência e diferentes projetos de escolarização e de sociedade. Por isso, para além das questões de ordem epistemológica que sustentam uma análise da especificidade, natureza e diversidade dos saberes mobilizados pelos professores, nos deparamos com a dimensão eminentemente política que a noção de saberes docentes suscita. Mais uma vez, vale lembrar, essa dimensão é potencializada quando abordamos saberes relacionados à temática africana e afro- brasileira, com todos os seus desdobramentos relativos à problemática racial brasileira e à necessidade de combate às desigualdades raciais a partir da escola.

Quando acompanhamos grupos de professores relatando suas experiências pedagógicas e debatendo as dificuldades e potencialidades de seu trabalho, nos deparamos com um rico processo de reflexões, individuais e coletivas. Por diversos momentos, ouvimos alguns deles dizerem que aquela situação – de relatar ou ouvir relatos de outros colegas – estava lhes proporcionando a oportunidade de pensar algo novo, que não havia sido notado ou pensado antes. Por diversas vezes, os professores reafirmaram a importância daqueles encontros, daquelas trocas, para sua formação. Em quase todos os encontros, esteve em pauta o significado social e político do trabalho em torno da temática racial, explicitamente assumido, por quase todos, como estratégia para enfrentar as desigualdades raciais presentes na sociedade e, muitas vezes, tragicamente expostas em suas salas de aula. Ao mesmo tempo, muitos deles ressaltaram a importância dos saberes acadêmicos sobre o tema, ressentindo-se das lacunas em sua formação inicial, no que se refere à história e cultura africana e afro-brasileira. Tudo isso nos leva a pensar que várias das ideias em torno das categorias “professor reflexivo” e “prática reflexiva”, assim

como os questionamentos a elas dirigidos, constituem importantes referências para a análise dos dados aqui apresentados. Compreender os processos de reflexão que se põe em marcha a partir do desenvolvimento de trabalhos pedagógicos com a temática, antes e durante o momento de relatá-los a outros colegas; identificar elementos presentes nas histórias de vida e profissional dos professores envolvidos e buscar perceber as relações entre tais experiências e os processos reflexivos impulsionados ao longo do trabalho; inventariar algumas das práticas pedagógicas que têm sido desenvolvidas e o quanto estas favorecem - ou dificultam - reflexões sobre o lugar dos negros na sociedade brasileira e sobre o próprio papel da educação na vida desses sujeitos; perceber como os professores vão atribuindo significados ao trabalho que desenvolvem e o quanto isso é atravessado pelas interações que estabelecem tanto com seus alunos, quanto com seus pares e com outros sujeitos, na escola e no convívio social mais amplo; compreender a dinâmica dos processos formativos vivenciados pelos professores pesquisados, processos esses que se desenvolvem tanto a partir da própria prática pedagógica, quanto na relação com diferentes instâncias, desde a própria escola aos diferentes agentes formadores, tais como órgãos públicos, universidades, mercado editorial, etc.; enfim, pensar os saberes docentes a partir do que dizem os próprios professores acerca do que pensam, fazem e sentem, acerca de suas expectativas e sonhos, de seus projetos de vida e profissionais, de suas concepções de mundo e de sociedade. Nesse aspecto, nos identificamos e nos sentimos instigados com as análises de Pimenta sobre as tendências atuais da pesquisa, quando diz:

A centralidade colocada nos professores traduziu-se na valorização do seu pensar, do seu sentir, de suas crenças e seus valores como aspectos importantes para se compreender o seu fazer, não apenas de sala de aula, pois os professores não se limitam a executar currículos, senão que também os elaboram, os definem, os re- interpretam. Daí a prioridade de se realizar pesquisas para se compreender o exercício da docência, os processos de construção da identidade docente, de sua profissionalidade, o desenvolvimento da profissionalização, as condições em que trabalham, de status e de liderança (PIMENTA, 2002, p. 36).

O desafio proposto e a própria complexidade que encerra nos convida a ampliar o instrumental teórico, buscando outros referenciais em torno dos saberes e práticas docentes.