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CAPÍTULO 1 POLÍTICAS SOCIAIS E O TERRITÓRIO

1.2. Políticas sociais e questão da focalização

Nas últimas quatro décadas aconteceram significativas transformações nas economias capitalistas. Especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, os Estados Nacionais assumiram funções na organização da economia e incrementaram, sobremaneira, a oferta de serviços sociais e bens públicos por meio de políticas públicas.

Este modelo ficou conhecido como Welfare state ou Estado de Bem Estar Social, cuja marca essencial pode ser demonstrada pelo crescimento do gasto público médio em 17 países que compõe a OCDE (Organização para Cooperação e

Desenvolvimento Econômico), que saltou de 22,4% do Produto Interno Bruto em 1937 para 45,8% em 19969.

Na década 1970 teve início uma crise fiscal que corroeu o Welfare state asseverada por um descompasso entre receitas e despesas nos orçamentos dos Estados Nacionais, tendo como principais fatores à queda da lucratividade da economia mundial (queda da receita), o endividamento exponencial do setor público e a expansão da oferta de serviços sociais de caráter universal (elevação da despesa). O crescimento do déficit público desaguou numa crise fiscal na maior parte dos países de economia capitalista, o que implicou numa crise no financiamento do Estado de Bem Estar Social, cuja solução, via de regra, esteve na redução de custos por meio da diminuição da ação estatal e da restrição da oferta serviços públicos (BOLZAN, 2000, p. 83). Essas políticas ficaram conhecidas como neoliberais, tendo reflexos e influências nos âmbitos econômicos, políticos e sociais.

Neste contexto de constrição drástica do financiamento estatal das políticas sociais surgiram tentativas conceituais de revisão do caráter universal dos serviços públicos oferecidos até então, com vistas a (re)dimensionar o acesso somente à públicos específicos, ou seja, com foco restritivo, em geral, para as camadas da população sob condições de extrema pobreza ou renda insuficiente.

As políticas sociais focalizadas emergem, portanto, como uma estratégia de racionalização da ação do Estado para definir a alocação mais eficiente dos recursos públicos e maximizar os resultados num ambiente de escassez do financiamento.

Para Oliveira (1998), o declínio do Estado de Bem Estar Social pode ser visto por outro prisma. Oliveira (1998) defende que o Estado de Providência, Welfare

State, criou um fundo público que se caracteriza pelo financiamento paralelo da acumulação do capital (gastos públicos do setor produtivo público e privado e a valorização financeira do capital por meio do endividamento do Estado) e pelo financiamento da reprodução da força de trabalho, alcançando toda a população por meio dos gastos sociais (educação gratuita, medicina socializada, previdência social, subsídios para transporte, alimentação e habitação). Este processo trouxe a socialização dos custos da produção e a manutenção da apropriação privada dos lucros ou da renda.

O Estado de Bem-Estar transformou as democracias numa arena de disputa pela gestão e alocação dos fundos públicos, os quais se tornam pré-condição para a acumulação (e da formação da taxa de lucro) e para a reprodução da força de trabalho por meio das despesas sociais.

Sob essa perspectiva, o neoliberalismo não seria a crença na racionalidade do mercado e na redução dos gastos sociais do Estado, mas a posição ideológica que optou por cortar o fundo público no pólo de financiamento dos bens e serviços públicos (políticas sociais) e maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital, cujos lucros não são suficientes para cobrir todas as possibilidades tecnológicas que ele mesmo abriu.10

A racionalização das políticas sociais, neste ambiente de indisponibilidade de recursos públicos, deu-se por duas vertentes de focalização distintas.

A primeira estratégia de focalização das políticas sociais esteve assentada na segmentação por públicos alvos dos programas governamentais por meio da

10 OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do Antivalor: a economia da hegemonia imperfeita. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

formação de coortes11 populacionais a partir de extratos por renda e, posteriormente,

por identidades étnicas, de gênero ou por grupo etário.

O ajuste no alcance das políticas sociais foi, por vezes, dimensionado ao quantitativo populacional do segmento a ser atendido em contraposição aos recursos disponíveis para o atendimento. A necessidade de contenção do gasto público levou, em alguns casos, ao entrecruzamento de espécies de segmentação, envolvendo o nível de renda e o tipo de identidade (exemplo: idosos com renda inferior a um salário mínimo; jovens com renda familiar inferior meio salário mínimo per capita) ou de identidades com outras identidades (exemplo: mulheres negras; mulheres jovens)

A segunda estratégia de focalização desenvolveu-se por meio da concepção funcionalista da geografia em que o espaço passou a ser visto sob o aspecto da hierarquização e caracterização especifica – regionalização - com objetivo de dotá- los de determinadas características que alterem a paisagem e/ou a condição de vida dos que vivem naquele local, transformando-os em ‘espaços organizados’12.

11 Coorte é um grupo de indivíduos que seguem juntos no tempo ou idade. Em geral, a coorte refere- se ao grupo que apresenta a mesma data de nascimento, o que não significa, necessariamente, o mesmo dia. É comum definir uma coorte por ano ou mesmo pela década de nascimento, quando estão sendo analisados eventos deslocados do tempo atual. Muitas vezes, define-se coorte como grupo de indivíduos que compartilham algum fato marcante, como a entrada no sistema escolar. A palavra coorte é um termo de origem militar utilizado para designar grupos de aproximadamente 600 soldados romanos que marchavam juntos. Assim, a coorte constitui um grupo de indivíduos que, dado um determinado ponto de referência, marcham juntos no tempo.“Juventude no Brasil” in: Brasil: O

estado de uma nação. Capítulo, VIII, pág. 288. IPEA, Brasília, 2005. “Cada uma das coortes da Cidade era composta de 560 soldados, armados como a média dos legionários, apenas melhor e mais custosamente. A cidade era bom lugar com freqüência não voltavam, encontrando seu túmulo em solo estrangeiro, ou então, muitas vezes, voltavam cinco, dez ou quinze anos mais tarde. As legiões marchavam o dia inteiro apenas com um punhado de refeições, suavam, trabalhavam, construíam estradas e cidades nos desertos, e às vezes, as grandes urbs tornavam-se apenas uma lembrança para elas”. FAST, Howard. Spartacus. tradução; José Sanz, Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2007.

12 Por óbvio, existem distintas razões no discurso político que sustentam este tipo de estratégia de focalização que vão desde o saneamento (higiene social) até a valorização das comunidades tradicionais e dos ecossistemas naturais ou não.

Contudo, há casos em que a definição de territórios prioritários é apenas um expediente de gestão utilizado para localizar públicos segmentados conforme recorte de renda ou identidade (exemplo: cidades com maior quantidade jovens entre 18 a 24 anos e com renda inferior a 01 salário mínimo).

Em outros casos, a definição e hierarquização de territórios servem como critério para dimensionar a escala de alcance do público alvo contraposto à disponibilidade de recursos financeiros no presente, vislumbrando uma majoração futura na escala e na quantidade de territórios atingidos (exemplo: primeira fase do programa atende todas as capitais e na segunda fase cidades acima de 200 mil habitantes ou regiões metropolitanas).

Há também o uso da focalização por território envolvendo o reconhecimento do caráter singular da paisagem de intervenção, que requer uma diversificação da atuação do Estado enquanto pressuposto para o alcance de resultados, ou seja, o espaço é a condicionalidade central na definição da aplicação dos recursos sob pena de desperdício ao ignorar as dificuldades naturais e sociais ou vocações econômicas (exemplo: diferenciação de urbano e rural; capital e interior; centro ou periferia; etc.).

Por fim, a focalização das políticas sociais pelo território também pode ser categorizada como uma estratégia geração do “espaço produzido”. Para Henri Lefebvre (1969) o espaço contem pelo menos três níveis: as realidades materiais (ou naturais), as realidades sociais (o espaço ocupado pelos fenômenos sensoriais, inclusive aqueles que resultam da imaginação constituída por símbolos, projetos e utopias) e as realidades mentais.

Nessa visão, as políticas sociais focalizadas seriam indutoras de desenvolvimento local ou de opressão de classe para contenção social. As políticas sociais promovem a diferenciação dos territórios e vocacioná-os para características que levariam a uma organização mais eficiente (em diferentes aspectos) do fluxo de circulação do trabalho, do capital e das mercadorias.

Nesta perspectiva, as políticas sociais focalizadas seriam um meio para favorecer a adesão e a fixação das pessoas aos locais ou restringir/induzir o fluxo de mobilidade para evitar um possível caos nas cidades ou no campo (em todas as conseqüências delas decorrentes) geradas pelo inconformismo social ou pela delinqüência resultantes do desaquecimento da economia e do desemprego estrutural promovido para obter ganho na lucratividade de setores da economia.

A tabela a seguir traz uma síntese esquemática das duas principais modalidades de focalização das políticas sociais (por segmento ou por território) e seus desdobramentos em tipologias possíveis no âmbito dessas modalidades.

TABELA 01 – Tipo de focalização das políticas sociais Tipo de focalização das políticas sociais

Por segmento Por território

- Renda - Identidades

- Condições de vida

- Mixagens das três anteriores

- espaço organizado - diferenciação regional - escala de expansão - localização do segmento - espaço produzido