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POLIMORFISMO, MOVÊNCIA E DESTERRITORIALIZAÇÃO DO JUDEU ESPANHOL

No documento Ecolinguismo e línguas minoritárias (páginas 105-108)

Luís Fernando Pinto Salema

3. POLIMORFISMO, MOVÊNCIA E DESTERRITORIALIZAÇÃO DO JUDEU ESPANHOL

O judeu-espanhol tem a sua génese na Península Ibérica, num contexto caracterizado pela diversidade linguística, em que às línguas românicas ibéricas se associam termos hebraicos e aramaicos, utilizados, sobretudo, na liturgia. Esta variedade linguística hispânica emerge da mescla de falares românicos existente na península, aquando do processo de iberização do latim vulgar. Apesar de não haver unanimidade em relação a este ponto de vista, aquando da expulsão dos reinos de Castela e de Aragão, em 1492, os judeus falariam uma língua idêntica à dos demais habitantes, com as particularidades de cada uma das suas regiões de origem e com as especificidades decorrentes das influências hebraicas e aramaicas, sobretudo ao nível do léxico, da morfologia e da fonologia: “the language of the Jews in Spain was already different in certain aspects of its lexicon, morphology, and phonology from that of the Christians by the Middle Ages” (Harris, 2005: 99). Entre as especificidades comummente apontadas surgem palavras como alhad, com o significado de «o primeiro dia», em vez de domingo, ou a transformação morfológica da palavra Deus (Dios, em espanhol), que era tida como uma forma de plural e, por isso, foi substituída por Dyo. Mas, nessa língua, há, também, as influências do ladino, a tal língua de decalque, de vocabulário mais arcaico, que, como já se referiu, era utilizada para traduzir os textos religiosos, palavra a palavra, respeitando a sintaxe hebraica.

Assim, o judeu-espanhol congrega traços linguísticos que nos permitem afirmar que estamos perante uma língua que tem como principais substratos o espanhol e o português arcaicos, aos quais se juntaram elementos de outras línguas ibéricas e, mais tarde, contributos de línguas faladas nas regiões do Império Otomano, o que concorreu para a feição poliédrica da língua.

A heterogeneidade, ainda incipiente, à data da expulsão dos judeus ibéricos, é transportada para os Balcãs e, aí, a natureza compósita do judeu-espanhol vai deparar-se, com um mosaico ecolinguístico também complexo, onde convivem o grego, as línguas

eslavas, como o búlgaro ou o sérvio, e o turco1. A constante atividade comercial dos judeus

potencia, igualmente, a introdução de inovações linguísticas, decorrentes dos contactos com o Médio Oriente, com a Itália e com a Península Ibérica.

No contexto desta dinâmica, podemos dizer que o judeu-espanhol explora todas as possibilidades oferecidas pelas línguas de base, conservando estruturas antigas, próprias do português e do castelhano peninsular do século XV ou anteriores, ao mesmo tempo que assimila, ao longo dos séculos, traços próprios das línguas com que se manteve em contacto, no espaço da Península Balcânica.

O que torna interessante este contacto entre as línguas é, precisamente, o contexto «ecológico» em que ele acontece. De facto, os falantes de judeu-espanhol assumem a sua língua como uma fator de identidade, aquando do processo de constituição das comunidades sefarditas. Essas comunidades vão sendo reajustadas à medida que os fluxos migratórios ocorrem. Assim, pouco depois da expulsão de Espanha, a partir de 1492, mas, sobretudo, a partir de 1550, os judeus e criptojudeus são expulsos de Portugal, o que vai obrigar a uma redefinição das comunidades existentes e, simultaneamente, acarreta a introdução de mais uma língua, nas dinâmicas de contacto.

Uma vez que a comunidade linguística falante de espanhol era mais numerosa, em várias cidades dos Balcãs, o judeu-espanhol começa a ser progressivamente adotado como língua de comunicação por todos os judeus sefarditas, mesmo por aqueles que não falavam espanhol, como era o caso dos judeus portugueses. Neste processo de «competição» entre variedades (para retomar a metáfora ecológica), a comunidade que muda opera uma seleção que assenta em critérios de prestígio sociolinguístico, dando passos para a integração e para a definição de uma identidade própria, no contexto da diáspora. Trata-se, pois, de uma «comunidade de prática» termo cunhado pelos trabalhos de Lave e Wenger (1991), ou seja, um grupo que estrutura a sua ação (a sua prática) em torno de um interesse comum, ou seja, no caso concreto dos judeus sefarditas, a preservação da sua identidade

1 A cidade de Monastir, atual Bitola, na Antiga República Jugoslava da Macedónia, ilustra o complexo

mosaico linguístico dos Balcãs. Situada no centro da Península Balcânica, a uma distância do mar Egeu e do Mar Adriático quase equivalente, Bitola, em 1910, com cerca de 50 000 habitantes apresentava uma paleta confessional e linguística deveras rica. Lory (2010/2:188) descreve, assim, este quadro: «on y trouve des musulmans, des chrétiens orthodoxes et des juifs, des locuteurs du turc, de l’albanais, du slave macédonien, de l’aroumain, du grec, du judéo-espagnol et du romani, qui utilisent comme langue liturgique l’arabe, le slavon, le grec byzantin, l’hébreu et comme langue scolaire le turc ottoman, la katharevusa grecque, le bulgare littéraire, le serbe, le daco-roumain, le français, etc., avec leurs alphabets respectifs. […] La ville de Bitola constitue donc un exceptionnel laboratoire pour étudier les phénomènes de cohabitation et de confrontation, les modalités d’ajustement les unes aux autres de communautés qui se partagent un même espace urbain».

religiosa, étnica e linguística. De facto, entre estes grupos, sob o estímulo da mitificação, o exílio deu origem a uma identidade, fundada num passado glorioso e glorificado. Os judeus expulsos mantiveram, assim, as suas tradições e as práticas quotidianas e religiosas em voga na Península Ibérica e acabaram por «sefardinizar» outras comunidades, nos locais onde estavam em maioria.

A reestruturação dos reportórios linguísticos a que atrás de aludiu, em situação de contacto interdialetal, originou, num primeiro momento, múltiplas variantes na maneira de falar dos membros das comunidades e, num segundo momento, assistiu-se ao gradual desaparecimento de outras. Nesse processo de silenciamento de variedades, influem vários factores, como a demografia, a consciência dos falantes relativamente à proeminência de uma determinada variedade, a simplicidade, relacionada com a regularização dos paradigmas, e a nivelação, materializada no abandono das variantes menos frequentes (Minervini, 2002: 500-501). Apesar deste processo de mudança e de nivelação, o português deixará marcas na língua-alvo, sobretudo a nível fonético e lexical, o mesmo acontecendo com as línguas das populações autóctones (e.g. grego, búlgaro, servo-croata e o italiano).

Assim, o judeu-espanhol, falado na Península dos Balcãs, apresenta uma dinâmica de situações de contacto, quer do ponto de vista diacrónico, quer sincrónico, que obriga a reequilíbrios dinâmicos constantes do sistema linguístico, numa lógica de homeostase, própria de qualquer ecossistema. Este polimorfismo resulta do facto de o judeu-espanhol ser uma língua de fusão, em que vários subsistemas compatíveis concorrem para um suprassistema capaz de garantir a comunicação entre os membros de uma comunidade e, simultaneamente, contribuir para a construção de uma identidade. Esse polimorfismo resultou, ainda, de uma baixa pressão normativa (García Moreno, 2010:3), originando uma variedade de variedades, mas mantendo sempre um sólido substrato ibérico. Estas adaptações ilustram o modo de expressão de um povo que, em permanente diáspora e desterritorializado, encontrou na língua o seu lugar, o seu território, a forma de pertencer a uma comunidade linguística, religiosa, social e económica no contexto complexo dos Balcãs. Ora, a noção de território, tida, do ponto de vista antropológico, como algo fixo e imóvel, passa a ser vista como algo socialmente construído, pelas comunidades de prática, em contextos geográficos, culturais e históricos suportados pela língua, criando uma paisagem linguística rica e diversificada. Esta dispersão e esta movência parecem conferir

ao judeu-espanhol uma plasticidade capaz de enfrentar as vicissitudes históricas por que têm passado as comunidades judaicas e, consequentemente, a forma de veicular a sua cultura.

4. O JUDEU ESPANHOL EM CONTACTO COM OUTRAS LÍNGUAS, NA

No documento Ecolinguismo e línguas minoritárias (páginas 105-108)