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CABO-VERDIANOS EM PORTUGAL

No documento Ecolinguismo e línguas minoritárias (páginas 146-151)

RELAÇÕES ENTRE AS LÍNGUAS CABO-VERDIANA E PORTUGUESA Maria Helena Ançã

1. CABO-VERDIANOS EM PORTUGAL

Sendo a comunidade cabo-verdiana a segunda comunidade estrangeira mais numerosa no país, entre a brasileira, primeira comunidade, e a ucraniana, terceira (SEF, 2016) e considerando a enorme vitalidade que a LCV goza na sociedade e nos espaços ‘privados’ da Escola, porque é falada por muitas crianças, filhas de imigrantes cabo- verdianos, seria de esperar que houvesse, quer uma maior oferta da LCV, em institutos de línguas ou em universidades, quer, ainda, e sobretudo, uma maior aposta em projetos de educação bilingue.

1.1. Uma breve passagem pela Educação

Os projetos de educação bilingue, como a própria lexia indica, possibilitam a aprendizagem de/em duas línguas. No caso concreto, a aprendizagem da LP e da LCV em paralelo ou em simultâneo, com a rentabilização de semelhanças e diferenças entre ambas as línguas. Para além disso, e por este meio, a instrumentalização e reflexão sobre a LCV traz aos seus falantes a legitimidade e o reconhecimento social necessários para que se sintam valorizados na sua LM.

Estudos académicos (Perdigão, 2008; Rassul, 2008), desenvolvidos em escolas do 1.º CEB, com crianças cabo-verdianas ou de origem cabo-verdiana, testemunham um grande ‘desconforto’ com/na LCV, consequência, sem dúvida, de uma desvalorização social mais alargada, face aos seus falantes. Essa desvalorização manifesta-se, presumivelmente, não tanto pela língua em si, mas pela condição social precária destes. Aliás, as escolas nas quais se desenvolveram esses estudos académicos situavam-se em bairros desfavorecidos (Cova da Moura, no Município da Amadora, e Bairro da Bela Vista, em Setúbal), com uma população de um extrato económico e cultural muito fragilizado.

Neste contexto, a LP, língua dominante e de acesso ao saber, é sobrevalorizada pelos locutores cabo-verdianos residentes e pelos seus filhos. Veja-se o testemunho desta criança cabo-verdiana sobre as línguas em causa, entendendo a LP como a língua de prestígio, em detrimento da LCV, uma língua ‘quase desprovida de funções julgadas socialmente relevantes’: “O P[ortuguês] é a língua que sempre sonhei aprender/ O

P[ortuguês] serve para aprender muitas coisas”: “O CCV6 não é nada/ não gosto/ com o

CCV não aprendemos nada” (Perdigão, 2006, p.127). Ou, citando, ainda, outra criança, do Bairro da Bela Vista (Setúbal), cuja autoimagem negativa se baseia na perspetiva de que a sua LM é um obstáculo à aprendizagem da língua da escola: “A professora está sempre a dizer que quando eu escrevo em LP/ misturo o Crioulo/ é por eu ser burra?” (Rassul, 2006, p. 159).

Importa, pois, que a educação em geral e, em particular, a educação em línguas, assumam o seu papel, com projetos de educação bilingue, ou outros, de forma a valorizar as crianças na sua língua e cultura, acolhendo-as através da LP7. O conceito de consciência

sociolinguística introduzido por Dabène, em 1994, é particularmente profícuo neste quadro: este nível de consciência leva a posicionar a(s) língua(s) em sociedade, tendo em conta as representações do próprio sujeito sobre as línguas, – LM e não materna –, e as respetivas áreas geográficas e contextuais de emprego e de divulgação; estas representações vão condicionar determinadas atitudes linguísticas: línguas importantes, línguas úteis, de prestígio …

Neste âmbito, gostaria de destacar duas experiências pedagógicas bilingues, decorridas na Área Metropolitana de Lisboa. O primeiro projeto, de educação bilingue e educação bicultural (Litwinoff, 1992), financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, desenvolveu-se no início dos anos noventa do século XX, na Pedreira dos Húngaros, um ‘bairro de lata’, extremamente populoso, que se situava entre a atual Urbanização de Miraflores e Algés. Este projeto destinava-se ao ensino pré-primário e primário e teve como objetivo não só integrar as crianças cabo-verdianas na escola e na sociedade portuguesas, como também valorizar o seu background linguístico-cultural (na linha da pedagogia de Paulo Freire) e, por sua vez, introduzir a LP, com apoio a metodologias de ensino de língua não materna. O segundo projeto (Mateus, 2011), também financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, coordenado pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional/ILTEC, denominado Bilinguismo, Aprendizagem do Português Língua Segunda (PL2) foi desenvolvido de 2008 a 2012. Para uma das suas vertentes de atuação foi criada uma Turma Bilingue, de PL2 e LCV, no 1.º CEB do Agrupamento de Escolas do Vale da Amoreira. Os alunos da Turma Bilingue foram acompanhados durante os quatro anos do 1.º Ciclo, com aulas em LCV, lecionadas pela docente Ana Josefa Cardoso, cabo-

6 Crioulo Cabo-Verdiano.

verdiana, e aulas em LP pela professora responsável pela turma. Foram trabalhadas as duas línguas em questão, com atividades de desenvolvimento da consciência linguística, assim como atitudes linguísticas positivas face às línguas, tendo contado a experiência com as famílias das crianças e com a comunidade escolar. Considerando o sucesso desta experiência, Ana Josefa Cardoso desenvolve, desde 2013/2014, um estudo semelhante em Cabo Verde (Cardoso & Matias, 2016). A autora enfatiza a ‘desvantagem linguística’ que têm as crianças (cabo-verdianas) que não têm como LM a LP, a única língua oficial nesse país, por enquanto.

Parece evidente que o ‘bem-estar’ na LM e com a LM vai beneficiar a aprendiza- gem de outras línguas, nomeadamente da LP e que é uma necessidade a valorização da LCV e dos seus falantes em contextos institucionais onde a LP coabite e seja dominante. Do ponto de vista teórico-educativo e concetual, as duas línguas teriam de ser percecio- nadas em simultâneo e conjuntamente ensinadas nos seus aspetos linguísticos, sociolin- guísticos e culturais.

1.2. Trajetos de Cabo-verdianos em Portugal

A história de Cabo Verde sempre se fez de viagens, de regressos, de partidas e trajetos para o exterior, fazendo os movimentos migratórios parte da vida dos cabo- verdianos, muito em particular pelas condições adversas do arquipélago que ocasionaram longos períodos de seca. Esses movimentos para fora eram entendidos como uma inevita- bilidade e, simultaneamente, uma oportunidade de melhoria de vida, embora sem perder o “forte sentimento de pátria (a caboverdianidade)”, mas perspetivando o “Mundo inteiro como território da pátria cabo-verdiana” (Grassi, 2007, p.25). A representação da emigração, aliás, está bem patente na literatura e na músicacabo-verdianas e a expressão “Ora di Bai”8 (hora do adeus, da despedida) pode simbolizar essa(s) partida(s)9. Portugal

sempre foi um dos países de destino.

Ainda no tempo colonial vieram para Portugal muitos cabo-verdianos; no entanto, é a partir dos anos sessenta do século passado que são mais notórios esses fluxos

8 Escrito segundo o ALUPEC/Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano, alfabeto reconhecido

oficialmente pelo governo cabo-verdiano em 2005.

9 Recordemos, a este propósito, a morna de despedida (“Hora di bai, hora di dor…”) de Eugénio Tavares ou o

migratórios. A geração precedente a esta década apresenta algumas características específicas, dado pertencer a um certo extrato social, com possibilidades económicas para se deslocar para Portugal. Estes cabo-verdianos integraram-se facilmente, acabando por se diluir na sociedade, sendo, portanto, “invisíveis aos olhos da sociedade portuguesa” (Batalha, 2008, p.25). Mesmo após a independência de Cabo Verde, conservaram a cidadania portuguesa e mantiveram-se em Portugal.

A partir dos anos sessenta do século XX, os movimentos migratórios de Cabo Verde para Portugal começaram a intensificar-se, como dito há pouco, podendo os cabo- verdianos ser ‘agrupados’ pelos propósitos da sua vinda: prosseguir estudos superiores ou trabalhar. Assim, do primeiro grupo fazia parte uma elite intelectual que para frequentar a Universidade precisava de sair do seu país, sendo Portugal a escolha mais imediata. É neste âmbito que encontramos Amílcar Cabral, mais tarde herói nacional em Cabo Verde e na Guiné Bissau, e foi aqui em Portugal, com a Casa dos Estudantes do Império, como ‘pano de fundo’, que se organizaram alguns ‘grupos subversivos’ que se consolidaram, posteriormente, em movimentos de independência dos territórios ultramarinos. Do segundo grupo faziam parte os trabalhadores, vindos sobretudo do interior rural da ilha de Santiago, com pouco ou nenhuma instrução, para o setor da construção e das obras públicas (Batalha, 2008; Grassi, 2007; Saint-Maurice, 1997). Estes eram incentivados e apoiados pelo governo português, para compensar a falta de mão de obra causada pela saída de portugueses para a emigração ou para a guerra colonial em África. Instalaram-se em ‘bairros de lata’, posteriormente substituídos por ‘bairros sociais’, ou procuraram bairros degradados, essencialmente nos arredores de Lisboa, Península de Setúbal ou Algarve, vivendo em pequenas comunidades, ou guetos.

A presença de cabo-verdianos, não era, por conseguinte, nova, em Portugal, quando começámos a ouvir falar da imigração. Do ponto de vista do senso comum, a imigração em Portugal só foi apercebida quando chegaram os imigrantes vindos do Leste da Europa, no virar do milénio, designados por ‘ucranianos’, embora esta designação englobasse também falantes de língua(s) românicas(s), como os moldavos ou os romenos.

Em 2004 havia 449.155 cidadãos estrangeiros legalizados em Portugal, com um aumento de 3,11%, em relação ao ano anterior, dos quais 64.164 cabo-verdianos e 66.227 ucranianos. Em 2005, com os primeiros sinais de uma crise, houve um decréscimo da população estrangeira imigrante residente (de -7,27%), recuperada, em parte (1,33%), em

2006 (420.272 cidadãos estrangeiros), com 68.778 cabo-verdianos, mas ainda com uma diminuição de ucranianos residentes nesse ano (44.937)10. Como se depreende, estas duas

comunidades mantiveram-se como as duas primeiras comunidades, falantes de LEs, mais numerosas no país.

Quase dez anos depois, as tendências na imigração apontam para a consolidação da tendência de decréscimo do número de estrangeiros residentes em Portugal, com 388.731 cidadãos com título de residência válido (-1,6%); redução da representatividade da população estrangeira proveniente da CPLP, evidenciando-se as nacionalidades brasileira (com um total de 82.590 cidadãos), cabo-verdiana (38.674) e angolana (17.230). A nacionalidade ucraniana representa a 3.ª nacionalidade estrangeira no país (35.779). Os principais fatores explicativos prendem-se com a aquisição da nacionalidade portuguesa, com a alteração de fluxos migratórios e com o impacto da atual crise económica no mercado laboral (SEF, 2016, pp.12-13).

Na sequência de vários movimentos migratórios de Cabo Verde para Portugal, a comunidade cabo-verdiana continua, como vemos, como uma das comunidades mais importantes e mais antigas. Este destaque de que a comunidade cabo-verdiana deveria ser alvo, deve-se tanto ao elevado número de cabo-verdianos em Portugal, como já referido, como, e sobretudo, ao longo trajeto destes na sociedade portuguesa, principalmente ao longo destes últimos cinquenta anos. Neste contexto, a LCV mantém a toda a sua vitalidade, sendo a LE mais falada no país.

Uma abordagem ecolinguística compreende as relações entre línguas e meio ambiente (Calvet, 1999; Couto, 2009; Hauger, 1972/2001), constituindo o meio ambiente de uma língua a sociedade que a fala (The true environment of a language is the society that uses it as one of its codes, Haugen, 2001, p.57). Tendo em conta a vitalidade da LCV, a língua minoritária estrangeira mais usada em Portugal, seria, porventura, o momento de lhe ser concedida alguma atenção em termos de políticas linguísticas.

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