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2 POR QUE MESMO AS DROGAS DEVEM SER EXCLUÍDAS DA SOCIE- SOCIE-DADE?

Lei de Drogas: mitologia, arbitrariedade e inconstitucionalidade

2 POR QUE MESMO AS DROGAS DEVEM SER EXCLUÍDAS DA SOCIE- SOCIE-DADE?

Quer-se “excluir” as “drogas” do Brasil por entendê-las como uma agressão à “saúde pública”. Parcela do pensamento que a nega a percebe como uma agressão moralmente

inaceitável e intolerável, por isso enfrentá-la pela “úlima ratio” de toda a estrutura jurídica, que é o Direito Penal. A forma penal de lidar com a saúde pública possui um regime jurídico próprio, contido de forma geral entre os artigos 267 e 285 do Código Penal. O crime das drogas possui uma característica que nenhum outro crime contra a saúde pública possui, é por ela que se inicia a análise.

Qual o “mal” contido nas drogas que justifica a sua exclusão da sociedade? É preciso delimitar melhor esta questão, que é uma questão moral. Pensem o caso dos “insumos agrícolas” (fertilizantes, pesticidas, adubos químicos, etc.) que, quando considerados “em si”, não produzem mal nenhum, mas que possuem, sim, um mal em “potencial”, já que dependendo de como são ministrados, poderão produzir consequências nefastas. E, por isso, não só a previsão de controles normativos em âmbito administrativo, mas também em âmbito penal, tal como o contido no artigo 270 do Código Penal, que criminaliza a conduta de envenenar água potável. Para problematizar o “mal” das drogas é preciso fazer uma distinção entre duas categorias: “mal em si” e “mal em potencial”.

Suponha que foi inventada uma substância cuja única finalidade seja provocar a morte de seres humanos. Esta substância não serve à agricultura, não serve à profilaxia de doen-ças e nem serve a nenhum outro fim lícito. A única potencialidade desta substância é matar seres humanos, é a única coisa que ela “consegue” fazer. Nem mesmo insetos ela é capaz de prejudicar. Porém, ela tem como poder, como único poder, matar seres huma-nos. Nesse caso, pode-se supor que esta substância é um “mal em si”, pois sua única potencialidade, o único uso que se pode fazer dela, é agredir um bem.

No entanto, por mais que se tenha inventado algo para uma finalidade específica e por mais preponderante que seja esta finalidade entre as características da coisa, esta finali-dade jamais conseguirá deter outros usos e sentidos passíveis de serem extraídos/atribu-ídos à coisa. A finalidade da coisa, por mais precípua que seja, jamais conseguirá reduzir a si todas as suas potencialidades. Por uma razão muito simples: é possível significar e ressiginificar tudo que entre no ciclo da interação humana. As coisas não são boas ou más “em si”, elas possuem “potencial” para serem usadas de forma boa ou de forma ruim. Isso porque, dentro do espectro da criatividade humana, elas adquirem infinitas possibilidades de uso, seja para fazer o “bem”, seja para fazer o “mal”.

Em termos conceituais, pode-se conceber a categoria do “mal em si” da seguinte forma: a coisa traz em si apenas uma potência negativa autobloqueada contra interferências positivas em sua negatividade; e, de forma autossuficiente e automática, produz o mal sobre as pessoas em função de sua mera existência. Ao contrário, há o “bem em si”, que consiste na coisa dotada unicamente de potência positiva autobloqueada contra

interfe-rências negativas em sua positividade e, de forma autossuficiente e automática, produz o bem sobre as pessoas só pelo fato de existir. Não há para além da entidade religiosa conhecida como “demônio” alguma coisa física ou metafísica que manifesta o “mal em si”, assim como Deus está para o “bem em si”. A única “razão” capaz de sustentar o “mal em si” é a do fundamentalismo religioso. Afora essa, nenhuma “razão” consegue demonstrar que há o “em si”, e nem muito menos se consegue demonstrar que este “em si” totaliza a coisa ao ponto de ele próprio bloquear o seu uso para outro sentido que não o que traz em si.

Mas, o que isso tem a ver com este trabalho? É que ao contrário de todos os crimes contra a saúde pública, o crime das drogas é o único que criminaliza não o “mal uso” de uma planta/substância, mas vai ao absurdo de condenar a sua simples condição de exis-tência, mesmo quando essa existência ocorra em seu habitat natural. Ora, uma coisa é condenar o “mau uso” de uma coisa, pois a “utilização” de uma coisa enquanto ação humana é passível de valoração moral, porém a “existência” de uma planta não é passí-vel de valoração moral.

Para se “condenar” uma planta é preciso demonstrar que o simples fato de esta planta “existir” produz o mal. E mais, é preciso demonstrar que essa planta não pode ser usada em outro sentido que não o mal, como é preciso demonstrar também que essa planta consegue por sua própria força impedir que os humanos a utilizem em outro sentido que não o do mal. Ou seja, é preciso demonstrar que a planta serve unicamente para o “mal” e consegue “sozinha” produzir o mal sobre os humanos. Na esfera pública, não é possível impor padrões normativo-comportamentais a partir de juízos de valor derivados da gra-mática do “mal em si”.

Entretanto, as coisas podem ser pensadas, evidentemente, em termos de “nocividade potencial” e de “acessibilidade” a este potencial nocivo. Para continuar no exemplo dos insumos agrícolas, considere como exemplo de reflexão substâncias como os agrotóxicos. Alguns são altamente tóxicos e requerem procedimentos para sua utilização extrema-mente rigorosos, já que pequenos descuidos podem ser fatais. Como regra, requerem parâmetros de segurança em toda a sua cadeia produtiva, da manipulação à aplicação, passando pelo transporte, armazenamento e venda. Em muitos casos, apenas pessoas credenciadas podem manuseá-los. Há substâncias dessa ordem que a simples inalação do ar no seu ambiente de aplicação gera grave risco de morte.

Pode-se pensar, por outro lado, em substâncias alimentares, como, por exemplo, açúca-res. São substâncias nocivas, mas cuja nocividade não é alcançada de imediato. A “aces-sibilidade” à sua nocividade requer, além do abuso no uso da substância, todo um tempo

de assimilação. É nociva; no entanto, o acesso a esta nocividade requer tempo e níveis de ingestão para muito além do primeiro contato. Pode-se pensar assim em substâncias extremamente nocivas cuja nocividade é alcançada a partir de simples contato físico; e pode-se pensar em outras em que é preciso um longo, permanente e intenso contato para se tornarem prejudiciais. Entre umas e outras, naturalmente, existem vários meios-ter-mos. A “nocividade” estará à mercê da combinação de várias variáveis.

E as plantas consideradas drogas, em que ponto se localizam? Na ponta dos venenos, ou na ponta dos alimentos? Ou se localizam em algum meio-termo? Sabe-se que o gênero drogas abriga várias espécies, umas extremamente nocivas; outras, nem tanto. É a partir dessa compreensão que se deve pensar as drogas. Não como substâncias que carregam o “mal em si”, mas como substâncias “potencialmente nocivas”, cuja periculosidade sempre dependerá da associação de uma série de fatores relativos às circunstâncias humanas somadas às condições bioquímicas da coisa. O açúcar para um diabético pode ter consequências drásticas.

3 REDUTO MORAL E ARBITRARIEDADE NO USO DO DIREITO