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POR QUE O ESTUDO DE CRENÇAS É IMPORTANTE NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LE?

CRENÇAS SOBRE ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS

3.3 POR QUE O ESTUDO DE CRENÇAS É IMPORTANTE NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LE?

Por ser um termo de difícil investigação empírica, alguns críticos questionam como as pesquisas sobre o pensamento do professor, apesar de abundantes e promissoras, podem ser usadas efetivamente na sua formação. Eles sugerem outra perspectiva para a compreensão do comportamento de professores, focada no que o professor acredita e no modo como ele se comporta. “Essa perspectiva baseia-se na concepção de que crenças são os melhores indicadores das decisões que as pessoas fazem no decorrer de suas vidas, uma concepção que remonta às primeiras contemplações filosóficas dos seres humanos”27

. (PAJARES, 1992, p. 307).

Pajares (1992) argumenta, com base em diversos teóricos que o antecederam, que poucos contestariam que as crenças dos professores influenciam suas percepções e julgamentos, o que, por sua vez, afeta seus comportamentos em sala de aula, ou que a compreensão da estrutura de crenças dos professores e candidatos a professores é essencial no desenvolvimento de sua preparação profissional e práticas de ensino. Em consonância com Pajares (1992), Barcelos (2006c, p. 16) tece reflexões sobre a natureza do conceito de crenças e de sua relação com dois fatores – as ações e o contexto, que, segundo ela, “são essenciais para a compreensão do processo ensino-aprendizagem de línguas e da prática do professor”.

Em Cruz (2013) fiz uma ampla discussão sobre as razões que justificam a tentativa de entender porque o conhecimento das crenças de professores em formação é fundamental para a formação desse profissional. Devido à sua relevância, elas apresentam-se elencadas a seguir:

 As crenças influenciam a aquisição do conhecimento, a definição e seleção de tarefas, a interpretação do conteúdo de um curso e o monitoramento da compreensão. Assim, as pesquisas sobre crenças de professores em formação iriam ajudar aos professores formadores a determinar o currículo e o programa do curso. (PAJARES, 1992);

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This view is based on the assumption that beliefs are the best indicators of the decisions individuals make throughout their lives (Bandura, 1986; Dewey, 1933; Nisbett & Ross, 1980; Rokeach, 1968), an assumption that can be traced to human beings‟ earliest philosophical contemplations. (tradução nossa).

 O conhecimento das crenças facilita a compreensão das ações e do comportamento dos aprendizes de línguas, contribui para a utilização de diferentes abordagens pelo professor, previne possíveis conflitos entre as crenças de professores e alunos, e pode esclarecer a divergência entre a teoria e a prática dos professores, e entre as crenças de formadores de professores e professores, ajudando-os a entender suas escolhas e decisões. (BARCELOS, 2007);

 A identificação e a compreensão das próprias crenças são de suma importância nos cursos de formação de professores, para que eles venham a ser mais acolhedores das novas informações sobre o ensino de línguas. Quanto mais clareza os docentes tiverem a respeito das crenças e expectativas de seus alunos com relação ao curso, da língua que está sendo aprendida, da carreira docente, maiores serão as possibilidades de esses alunos atingirem os objetivos traçados e de se tornarem bons profissionais. “Contudo, percebe-se que a maioria dos estudantes de Letras não tem consciência, nem conhecimento de suas crenças, nem da importância da continuidade dos estudos após a sua formação”. (ALVAREZ, 2007, p. 198);

 “Refletir significa buscar compreender porque se faz como se faz. As crenças exercem papel fundamental na reflexão, sendo a base dos questionamentos do professor”. (BARCELOS, 2006c, p. 23). A mudança no sistema de crenças de um indivíduo e nas ações pode ocorrer a partir de “momentos catalisadores de reflexão” que são “gatilhos promotores de problemas, dúvidas, ou perguntas que geram uma consciência da crença existente e seu possível questionamento no dizer e fazer”. (BARCELOS, 2006c, p. 26).

Os resultados de minha pesquisa (CRUZ, 2013) evidenciaram a importância da existência desses “momentos catalisadores de reflexão”, para o (re)conhecimento de crenças que norteiam as nossas atitudes. Com o objetivo de fornecer elementos que conduzissem os sujeitos participantes da pesquisa à discussão e reflexão sobre suas próprias crenças em relação ao processo de aprendizagem de LI (foco daquela pesquisa), foi realizada uma oficina que propiciou aos participantes o conhecimento de suas próprias crenças, o (re)conhecimento das competências necessárias à

formação do professor de LI, a compreensão do papel que exercem e que devem exercer no seu próprio crescimento e formação profissional.

As discussões implementadas tiveram a prática como direcionadora, levando em consideração as histórias de formação de cada um, as expectativas, as experiências de aprendiz e de professor, para buscar compreender de que modo esses professores em formação estavam conscientes de suas crenças e da influência que elas exercem no seu aprendizado de LI. Todas as discussões e análises implementadas seguiram o viés do empoderamento dos aprendizes a partir de uma formação crítica (FREIRE, 1987; FIGUEROA, 1993; CAMERON, 1993; GIROUX, 1997; PENNYCOOK, 1998, 2000; RAJAGOPALAN, 2003; KUMARAVADIVELU, 2006).

Apesar de todos os indícios sobre a importância da reflexão na e sobre a prática docente, é preciso compreendermos quem é o sujeito que se formou ou está se formando para ser professor. Nesse sentido, Pajares (1992, p. 323) argumenta que há uma grande diferença quando alunos de Medicina, Direito e de cursos de Licenciatura começam a atuar no mercado de trabalho porque, enquanto os primeiros são considerados “strangers”, aqueles dos cursos de Licenciatura são considerados “insiders”, porque o tipo de ambiente já lhes é bastante familiar, afinal eles já conhecem há anos o ambiente de sala de aula na educação básica, quando chegam às faculdades e universidades.

Para os considerados “strangers”, a acomodação de novas informações e o desenvolvimento de novas crenças é gradual, envolve pouca ameaça e conflito. Para aqueles considerados “insiders”, as mudanças de concepções são ameaçadoras. Esses estudantes são comprometidos com crenças pré-estabelecidas e os esforços para acomodar novas informações e ajustar crenças existentes, podem ser quase impossíveis. (PAJARES, 1992).

De fato, as pesquisas têm confirmado a forte influência das crenças em todas as esferas de ensino e aprendizagem de línguas, e o papel delas no ciclo vicioso que se instala, principalmente, em contextos de escola pública (BARCELOS, 2007a). Este ciclo vicioso a que Barcelos (op. cit.) se refere já tinha sido observado em estudos anteriores, citados por Pajares (1992), como os realizados por Rokeach (1968) e Lortie (1975).

Preocupados em entender como os professores internalizam e praticam o que eles aprendem nos cursos de formação, esses pesquisadores concordam que as centenas de horas em que os professores passaram nas salas de aula como alunos, suplantam os efeitos dessa formação, já que essas horas se constituem campo fértil para o desenvolvimento de diversos tipos de crenças. Assim, “alunos trazem essas crenças para a formação de professor; professores as levam para suas escolas e salas de aula”28

. (PAJARES, 1992, p. 322)

Se pensarmos que os professores em formação trazem consigo crenças que se desenvolveram através de observação e experiência, durante todo o período escolar, sobre o que é ser um bom professor, como os estudantes devem se comportar, podemos compreender o fato de que, muitas vezes, o nosso dizer não tem ressonância com o nosso fazer, mas nem sempre, temos essa consciência. (PAJARES, 1992).

Da mesma forma que os professores trazem consigo suas crenças para a sala de aula, os alunos também o fazem. Portanto, esse ambiente se torna propício a encontros e desencontros de crenças que orientam as diferentes culturas de aprender e ensinar (ALMEIDA FILHO, 1993). Em geral, os desencontros geram conflitos, que, segundo Barcelos (2006c), podem acarretar problemas como falta de entendimento e comunicação, questionamento dos estudantes a respeito da credibilidade do professor, envolvimento dos estudantes em estratégias que são desaprovadas pelo professor, abandono do estudo por parte dos estudantes e sentimento de infelicidade. Em suma, ela considera que os conflitos podem afetar a motivação dos aprendizes.

São exemplos de desencontros entre crenças de professores e alunos, a maneira como estes sujeitos concebem as atividades que devem ser feitas em sala de aula (explanação formal, jogos, trabalho em dupla), o papel da gramática e a correção do erro, assim como o papel de professores e alunos em diferentes culturas. (BARCELOS, 2006c).

A autora (op. cit.) também chama atenção para outro tipo de desencontro que é a discrepância entre o dizer e o fazer, entre o discurso e a prática. Vários estudos a respeito de crença e prática do professor fornecem uma explicação para essa

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Students bring them to teacher education; teachers take them into their schools and classrooms. (PAJARES, 1992, p. 322).

relação de conflito entre crenças e ações. Cito como exemplo o trabalho de Borg (2003), a partir de uma vasta revisão de pesquisas na área de aprendizagem de segunda língua e língua estrangeira, para analisar a relação entre cognição e prática docente.

O autor usa o termo teacher cognition para se referir à dimensão cognitiva que não é diretamente observável no processo de ensino, ou seja, aquilo que os professores sabem, acreditam e pensam. Segundo Borg (2003), quatro aspectos se interrelacionam na formação da cognição docente: o processo de escolarização, o curso de formação profissional, os fatores contextuais e a prática de sala de aula.

Ele explica que algumas pesquisas apontam para a distinção entre mudanças cognitivas e comportamentais que podem ser induzidas nos programas de formação de professor. Em outras palavras, os estudantes podem adotar nas suas práticas de sala de aula aquilo que está sendo ensinado para eles, mesmo porque, eles estão sendo avaliados. Entretanto, isso não implica que a aceitação de uma abordagem de ensino, por exemplo, se dê a nível cognitivo. Isso varia de pessoa para pessoa e está relacionado às cognições individuais que os alunos trazem para o curso. Ou seja, apesar da formação profissional exercer importante papel na orientação do comportamento do professor, isso não implica necessariamente em mudanças cognitivas (crenças, conhecimento e atitude).

Essas discrepâncias ficam evidentes quando os estudantes falam do seu trabalho, mais do que quando estão em prática, segundo Borg (2003), fato que reitera a importância da existência de “momentos catalisadores de reflexão” como sugere Barcelos (2006).

Em suma, Borg (2003, p. 91)29 afirma que “mudança de comportamento não implica mudança cognitiva e essa não garante mudança no comportamento também”. Para o autor, essas discrepâncias são resultado da interação entre as escolhas pedagógicas dos professores e da visão que os mesmos têm do contexto instrucional e dos alunos.

Alvarez (2007, p. 197) também tece considerações importantes sobre os nossos sistemas de crenças e suas implicações no comportamento e cognição.

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Behavioural change does not imply cognitive change, and the later (...) does not guarantee changes in behaviour either.(tradução nossa).

Há um consenso entre os estudiosos, dentre eles Horwitz (1985), Pajares (1992), Johnson (1994, 1999) com relação ao fato de que nossos sistemas de crenças permeiam nossa forma de pensar e de processar novas informações, portanto elas têm um papel preponderante na elaboração de nossas percepções e comportamentos, também como na forma como estabelecemos a relação de cognição. Assim, a noção de crença é relevante na hora de interpretar e analisar as ações do professor, pois eles interpretam uma situação de ensino a partir das suas crenças sobre o que seja a aprendizagem e ensino de LE. No entanto, e seguindo o raciocínio de Lynch (1990), o dizer das pessoas não necessariamente corresponde às suas ações, portanto quando investigamos as crenças também seria necessário examinarmos as suas ações. Segundo Barcelos (2006c, p. 29), “as crenças, necessidades e expectativas do aluno parecem ser fatores que mais afetam a prática do professor e, consequentemente, a manifestação dessas crenças em sua prática”. Ela ainda acrescenta, como dito anteriormente, que “um dos grandes fatores que pode interferir na relação crenças-ação é o contexto”. Corroborando com essa ideia, Borg (2003, p. 94) acredita que existem fatores contextuais que moldam a realidade da sala de aula e podem inibir o professor de adotar práticas que refletem suas crenças. São eles: exigência dos pais, diretores, escola e sociedade; arranjo da sala de aula; políticas públicas escolares; colegas; testes; disponibilidade de recursos; condições difíceis de trabalho (excesso de carga horária e pouco tempo para preparação).

Isso pode explicar por que, muitas vezes, professores adotam posturas que não condizem com o que pensam em virtude das condições e dos fatores a que estão submetidos no seu contexto de ensino. Essa observação também foi feita por Pajares (1992, p. 319) quando nos diz que,

Todos os indivíduos, em algum momento de suas vidas, sofrem ataques de dissonância cognitiva (ou crença?), onde crenças incompatíveis são de repente projetadas sobre eles e eles têm que se comportar de maneira consistente com apenas uma dessas crenças. É nesse momento que conexões são descobertas ou criadas e a centralidade de uma crença fica evidenciada. 30

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All individuals, at some point in their lives, suffer attacks of cognitive (belief?) dissonance, where incompatible beliefs are suddenly thrust on them and they must behave in a manner consistent with only one of these beliefs. It is also at this point that connections are discovered or created and the centrality of a belief comes to prominence. (tradução nossa).

Nesse sentido, Barcelos (2006c, p. 34) 31 acrescenta outros fatores contextuais aos citados por Borg (2003), tais como a rotina da sala, o material didático, a motivação dos alunos, o fluxo da instrução e manutenção da autoridade em sala de aula, as crenças dos professores sobre as expectativas de seus alunos, o número excessivo de alunos nas salas, a proficiência limitada dos alunos, a cultura de aprender do aluno.

Na tentativa de mudar esse cenário, Barcelos (2007a, p. 62) lança a seguinte reflexão:

Os resultados sinalizam para a força das crenças aliadas a fatores contextuais que moldam e são moldados pela realidade. A pergunta que nós, educadores e formadores de professores, precisamos fazer é: como podemos ajudar a quebrar esse ciclo vicioso instaurado nos contextos de escolas públicas?

A autora responde a essa pergunta dando duas sugestões: [1] apresentação dos resultados das pesquisas aos professores sujeitos das mesmas, o que já tem sido feito em alguns estudos e, principalmente, [2] socialização dessas pesquisas com toda a comunidade escolar, saindo um pouco da sala de aula e envolvendo todos nas discussões, por meio de palestras, encontros reflexivos, para que juntos tentem encontrar solução para os problemas. (BARCELOS, 2007a, p. 62).

Com base no exposto até aqui, podemos observar que a relação entre crenças, identidade e aprendizagem sugerida na filosofia de Dewey (2009), abordada na sessão anterior, é muito relevante para a compreensão da sala de aula de língua estrangeira (LE) e do papel do professor, porque o seu objeto de trabalho, que é a linguagem, representa a vida carregada de cultura, ideologia, crenças, poder e identidade.

A linguagem é usada por sujeitos que, juntamente com ela, se modificam, se articulam, transitam, se fazem presentes e vivos no mundo, em virtude da característica de ser social que o humano carrega consigo. A sala de aula é, portanto, uma amostra de um grande contexto. No caso específico de uma sala de aula de LE, o ambiente pode favorecer a construção da própria identidade do

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Neste trabalho, Barcelos (2006c) compila uma variedade de fatores contextuais, a partir das pesquisas desenvolvidas por Fang (1996), Graden (1996), Johnson (1994), Borg (1998, 2003), Richards e Pennington (1998), Barcelos (2000, 2003), Vieira-Abrahão (2002) e Almeida Filho (1993).

aprendiz, a partir do contato com uma língua/cultura estrangeira. Na concepção de Brun (2010, p.77), é preciso que o professor de LE tenha em mente que

O aprendiz de língua estrangeira gerencia permanentemente a diversidade no seu processo de aprendizagem e, por conseguinte, revisa princípios, reorganiza seus vínculos socioculturais, reelabora sentimentos acerca de si mesmo e do mundo. Deste modo, o contexto de aprendizagem de línguas estrangeiras pode significar uma verdadeira e inerente (re)construção identitária.

Concluindo as ideias expostas nessa sessão, trago mais uma vez as ponderações de Kalaja e Barcelos (2006, p. 236) em forma de sugestões, a partir de diversas pesquisas realizadas em uma perspectiva contextual e discursiva: [1] Os professores devem criar oportunidades, dentro do seu próprio ambiente, para que os aprendizes discutam e reflitam sobre suas próprias crenças. Isso pode ser feito através de narrativas, histórias sobre aprendizagem de língua, análise de metáforas, por exemplo, e pode colaborar para que ambos se envolvam na negociação de significados que eles trazem para a sala de aula; [2] Uma vez que crenças exercem forte influência na maneira como os professores planejam suas aulas, essa questão deveria ser abordada nos cursos de formação de professor, para que eles pudessem verificar como suas próprias crenças e as de seus aprendizes podem ser modificadas; [3] Os professores devem ter consciência de como as crenças dos alunos os ajudam (ou não) a tornarem-se melhores aprendizes, membros de comunidade de prática no aprendizado de segunda língua ou língua estrangeira.

No próximo capítulo serão analisados e discutidos os dados gerados nessa pesquisa, com base no arcabouço teórico apresentado nos capítulos II e III.

CAPÍTULO IV