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N este primeiro capítulo, trataremos do referencial teórico da pesquisa Ele nos

1.2. Por uma visão de Educação Musical Humanizadora

“Somos seres humanos por que somos seres sociais; chegamos a ser indivíduos graças à essa condição” (SACRISTÁN, 2002, p.16-17)

A cada vez que falamos sobre o “homem5”, seus costumes, suas crenças, falamos sobre uma concepção, ou seja, uma visão de educação. Carvalho (2011), afirma que,

[...] é possível, a partir de concepções fundamentais de uma visão filosófica de homem, de sociedade e de ética, derivar ou mesmo “deduzir” uma concepção precisa de educação, e dela partir para doutrinas operativas e sugestões de práticas pedagógicas” (CARVALHO, p. 310)

Nesse sentido, o autor acredita que as práticas humanas de educação possuem uma filosofia que as define. Para Gimeno Sacristán (2002), a educação é um instrumento para propagar, apresentar e modificar a cultura bem como fundar um modo de vida de uma determinada sociedade, inserir um sujeito no mundo e desenvolver a humanização do mesmo em comunidade.

Apresentamos neste subtítulo a concepção de uma Educação Libertadora, uma educação que visa a autonomia dos sujeitos ao mesmo tempo em que promove mudança coletiva na sociedade, que humaniza a todos, ou seja, uma Educação Humanizadora.

Esta educação não deve ser conivente com princípios de dominação, mas também não deve apenas ser crítica. A criticidade é um passo, com certeza, porém, para que haja mudança efetiva de e em nós mesmos necessitamos de ações. Assim, a educação libertadora deve, sendo crítica, ter “[...] participação ativa na práxis produtora do mundo e do homem” (FIORI, 1991, p. 88)

Em um movimento crítico e partindo de experiências vivenciadas em Educação e Educação Musical, o grupo de estudos Educação Musical, Cultura e Comunidade, vinculado à linha de pesquisa em Práticas Sociais e Processos Educativos do Programa de Pós-Graduação

5 Vale ressaltar que, quando falamos em “homens” nesta dissertação, nos referimos a homens e mulheres. Optamos por essa nomenclatura devido ao fato de muitos autores se utilizarem o termo “homem” para designar os seres humanos.

da UFSCar, liderado pela professora Doutora Ilza Zenker Leme Joly, desde 2009, vem refletindo e discutindo concepções de Educação e Educação Musical, aproximando as duas áreas mediadas.

Mas, o que queremos dizer com Educação Libertadora? Como definição, Fiori (1991) afirma que, “[...]. A educação libertadora é o esforço para estreitar, continuamente, esse espaço em que o homem se perde e se aliena”. Desse modo, o autor nos alerta para um exercício de prestar atenção a este espaço que nos remete à sociedade, à vida cotidiana e daí, deste lugar, nos tornarmos sujeitos de nossa própria história, e conseguimos então, sair da condição de alienados. (FIORI, 1991, p. 88)

Ao promover leituras, estudos e conversas, o grupo vem incentivando profissionais e pesquisadores envolvidos a se posicionarem criticamente e aproximarem sua prática pedagógica ao conceito de Educação Libertadora.

Resultado disso foi uma discussão mais aprofundada do que o grupo passou a chamar de Educação Musical Humanizadora.

A seguir, explicaremos melhor este novo conceito que defendemos para a área de Educação Musical.

Entendemos por humanização a vocação ontológica do ser humano. Ontologia significa teoria do ser e Paulo Freire aborda muito bem este termo, considerando que, nós, seres vivos, possuímos uma ontologia que nos traduz como seres incompletos e inconclusos. Incompletos por que precisamos uns dos outros, não vivemos sozinhos, necessitamos estar em comunidade e aprender com ela e inconclusos por que estamos sempre em evolução, em aprendizado, inacabados. Estes termos aqui destacados são difundidos por Freire em toda sua obra, portanto fazem parte de suas reflexões epistemológicas, ou seja, de sua teoria do conhecimento.

Nas palavras de Freire, essa ontologia na qual estamos imersos nos chama à vocação do ser mais. Sermos mais curiosos, descobrir-nos e descobrir o mundo. Freire afirma que a natureza humana é projetada para ser mais, aquém de estruturas pré-estabelecidas, que temos potencial para modificar o mundo e nós mesmos e que essa prática faz parte de uma libertação humana (1993).

Contrária a essa posição, encontramos então o conceito de desumanização como a distorção do ser mais, da humanização de que estamos tratando.

É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero (FREIRE, 1993, p.30)

Como fruto dos processos de desumanização, a “cultura do silêncio6” tida como normal “coisifica” as pessoas e as impedem de se pronunciarem no mundo enquanto sujeitos. Portanto, se emudecem como objetos: não há criticidade, diálogo, convívio e muito menos mudança, pois o ser humano aceita tudo o que lhe é imposto e se acomoda. Uma educação desumanizada incentiva professores autoritários, que acreditam ter posse de todo o conhecimento para depositar em seus alunos e alunas que não sabem que sabem. É uma relação educacional vertical, imposta, descontextualizada.

Portanto, acreditamos em uma prática educativa humanizadora e ontológica, pautada no diálogo, na curiosidade, na autonomia, na alteridade, na amorosidade, que seja libertadora – provida da conscientização de educadores e educandos(as) sobre suas potencialidades e poder de transformação da sociedade.

Escolhemos o diálogo e a autonomia como qualidades essenciais e que trazem consigo esses outros elementos que mencionamos acima. Aprofundaremos a fim de compreender melhor de que postura estamos falando e assumindo nesta pesquisa.

 Diálogo

Segundo Freire (2005), a libertação pode ocorrer entre outros fatores, por meio do diálogo: “O diálogo, como o encontro dos homens para a pronúncia do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização” (FREIRE, 2001, p. 134). Porém, “Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens não me é possível o diálogo” (FREIRE, 2011, p. 111).

Nesse sentido, o diálogo se torna imprescindível para o processo de humanização do ser, pois, em uma conversa, precisamos primeiramente, estar dispostos a encontrar com o outro, e estabelecer um contato. E, necessariamente, este contato deve ser respeitoso e harmonioso.

6 Segundo Freire, a “cultura do silêncio” é gerada quando se nega a homens e mulheres o direito de dizerem sua palavra.

Fiori (1991) também diz que o movimento dialógico requer respeito e amorosidade. O processo de humanização se apresenta na aceitação respeitosa do outro enquanto sujeito de sua história.

Dussel (1997) acredita que “A pedagógica se desenvolve essencialmente na bipolaridade palavra-ouvido, interpretação-escuta, acolhimento da alteridade para servir o Outro como Outro” (DUSSEL, p. 191). Assim, quando aceitamos o outro como legítimo, abrimo-nos ao diálogo com o respeito necessário.

 Autonomia

Outra característica do processo de humanização é a autonomia, pois seres humanizados opinam, criticam, tomam decisões, se pronunciam, são autônomos. Desse modo, uma prática educativa humanizadora necessariamente está comprometida com a construção da autonomia dos sujeitos, construção que “não ocorre em data marcada”, como diria Freire, mas que é um processo.

Por sermos seres culturais, somos também, homens e mulheres, dependentes. Assim, a autonomia é a capacidade também de assumir essa dependência de maneira livre a fim de que nós mesmos nos permitimos aceitar as diferenças compreendendo a originalidade das ações, dos jeitos, dos seres. “É a autoridade do não eu, o do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu” (FREIRE, 1996, p.46).

Por isso é que a autonomia necessariamente deve ser solidária e vivida em comunidade para que seja autêntica. É fundamental que, sendo crítico, o sujeito compartilhe suas escolhas e ao mesmo tempo as faça em comunidade, no convívio saudável com os seus, respeitando sua própria história e cultura.

Acreditamos portanto que, uma educação que promova o diálogo, a reflexão, a tomada de decisões, o falar, o ouvir, o respeitar, o criticar, o criar, traz em seu bojo processos humanizadores.

Sendo assim, admitimos que esses processos podem e devem estar presentes na Educação Musical com o intuito de oferecer ferramentas para a formação integral do ser humano e potencializar processos educativos humanizadores ao fazer música.

H. J. Koellreutter, músico que teve muita influência no campo da educação musical coloca o humano como objetivo primordial desta área de conhecimento. Ele defende que o

ensino de música deve ser realizado em um ambiente em que o ser humano é compreendido em sua totalidade, com suas diferentes formas de aprendizagem (BRITO, 2011).

Aquele tipo de educação musical não orientado para a profissionalização de musicistas, mas aceitando a educação musical como meio que tem a função de desenvolver a personalidade do jovem como um todo; de despertar a atividade, como, por exemplo faculdades de concentração (autodisciplina), de trabalho em equipe, ou seja, a subordinação dos interesses pessoais aos do grupo; as faculdades de discernimento, análise e síntese, desembaraço e autoconfiança, a redução do medo e da inibição causados por preconceitos, o desenvolvimento da criatividade, do senso crítico, do senso de responsabilidade, da sensibilidade de valores qualitativos e da memória e, principalmente, o desenvolvimento do processo de conscientização de tudo, base essencial do raciocínio e da reflexão, em nosso tempo. (KOELLREUTTER apud BRITO, 2001, p.42)

Longe de criar um método, o músico-educador sugeriu o ensino pré-figurativo: “parte de um sistema de educação que incita o homem a se comportar perante o mundo […] como um artista diante de uma obra a criar” (KOELLREUTTER apud BRITO, 2001, p.35).

Em uma prática integrativa de reflexão, curiosidade, crítica e pesquisa a proposta de Koellreutter promove ampliação da percepção, da consciência de atitudes e pensamentos preconceituosos ou individualitas e, principalmente, favorece a aproximação entre estudantes e professores, que são capazes de fazer música e refletirem juntos. Esses são alguns aspectos e objetivos a serem alcançados, lado a lado aos aspectos musicais. (BRITO, 2013)

É chegado o tempo de renunciar a títulos, hinos nacionais, bandeiras e insígnias. Teremos de aprender a esquecer que somos doutores, professores, diretores ou alemães, japoneses, indianos, brasileiros, ou qualquer outra nacionalidade, uma vez que se trata do homem. [...] Teremos de desenvolver o sentimento de solidariedade de todas as nações, a consciência de compromisso perante uma comunidade cultura e política universal. Teremos de entender que tudo o que hoje ainda nos parece particularidade nacional no fundo é apenas o fenômeno individual de uma só e mesma coisa: ou seja, o ser humano. (KOELLREUTTER apud BRITO, 2001, p.52-53)

Partindo das ideias do educador e dos referenciais que abordamos até o momento, abordando a educação musical sob uma ótima humanizadora, é necessário entender que nem todas as práticas educativo-musicais promovem o diálogo, a autonomia, a amorosidade, libertam e conscientizam os sujeitos envolvidos. Este processo que não valoriza as qualidades de que estamos falando está, portando ligado à desumanização.

Há práticas de educação musical que ainda favorecem o virtuosismo, portanto a individualidade do fazer musical, deixando de lado, a criação, a troca e a autonomia dos

sujeitos em se apropriar da música como produção essencialmente cultural e social. Portanto, precisamos de ações conjuntas para que o humano seja o objetivo primordial da educação e da educação musical: vemos na escola este potencial.

Autores da área como, Souza (2000), Kater (2012), Hentschke e Del Ben (2013) defendem uma Educação Musical escolar que valorize a diversidade, a experimentação, o diálogo, o respeito, ou seja, a formação de um cidadão mais sensível e crítico para viver no mundo e que vai ao encontro com o que foi apresentado até agora sobre as compreensões do que venha a ser este conceito.

Entre as ideias defendidas por esses autores, está a necessidade de buscar compreender as metas e os objetivos da educação musical para assim, pensar em práticas que influenciarão neste ambiente. Segundo Souza (2000), a função primordial da música na escola é “fazer contato, promover experiências com possibilidades de expressão musical e introduzir os conteúdos e as diversas funções da música na sociedade, sob condições atuais e históricas” (SOUZA, 2000, p. 176).

Kater (2012), revela apontamentos anteriores à organização metodológica. Ele considera que o ensino de música na escola tenha ultrapassado a questão de justificar sua importância. Temos agora, questões pertinentes quanto ao que será ensinado e com qual postura. De acordo com o autor, necessitamos da construção de “alternativas contemporâneas” e não voltar a modelos anteriores de ensino de música nas escolas. Serão alternativas:

[...] que ofereçam condições a crianças e jovens de tomarem contato prazeroso e afetivo com sua própria musicalidade, desenvolvê-la e vivenciá-la, mediante experiências criativas, a música em seu fazer humanamente integrador e transformador; o que significa desenvolverem seus potenciais, conhecerem-se melhor e qualificarem sua existência no mundo (KATER, 2012, p. 42-43).

É necessário então, que as potencialidades a serem desenvolvidas nos educandos sejam contrárias àquelas que a escola oferece em outras áreas do conhecimento, como por exemplo, a memorização e a repetição. Por exemplo, em matemática, necessitamos memorizar as regras e repetir por vezes as contas de soma, divisão, multiplicação, etc. para aprender.

Kater (2012) diz que necessitamos mais do que “termos de discurso” decorados e dependentes de repetições exageradas para o aprendizado em música de forma humanizadora. Necessitamos então,

[...] cultivo da sensibilidade, criatividade, escuta, percepção, atenção, imaginativo, liberdade de experimentar, coragem do risco, respeito pelo novo e pelo diferente, pelo que é próprio a cada um e também ao “outro”, construção do conhecimento com autonomia, responsabilidade individual e integração no coletivo, [...] (KATER, 2012, p. 43).

Desse modo, a prática pedagógica em música deve sim oferecer conteúdos e desenvolver habilidades – não podemos excluir estas características do ambiente escolar, até mesmo por que constituem ferramentas para a vivência da linguagem musical. Porém Souza (2003) expõe o diferencial: o respeito pelos contextos e a compreensão dos meios para uma educação em música efetiva e significativa como mencionamos no subtítulo anterior sobre currículo em Educação Musical.

Isto posto, a educação musical escolar não tem o objetivo de formar músicos profissionais e sim, “auxiliar crianças, adolescentes e jovens no processo de apropriação, transmissão e criação de práticas músico-culturais como parte da construção de sua cidadania” (HENTSCHKE; DEL BEN, apud FRITSCH 2003, p. 181).

De acordo com o panorama realizado sobre o que se espera da educação musical escolar atualmente, e qual concepção defendemos para que as experiências na área sejam efetivas, acreditamos, que a formação dos profissionais que estarão no exercício cotidiano e real com seus alunos é que possibilitará o desenvolvimento das qualidades mencionadas.

Para que haja uma educação musical de fato humanizadora, é necessário então formar professores mais humanizados, e que poderão auxiliar no processo de humanização de seus educandos. Mas, como fazer isso?

Primeiro, precisamos compreender quais os objetivos da Educação Musical na escola, para então, pensar e agir na formação de educadores que estarão neste ambiente ou em outros espaços de educação musical.

Portanto, “sem um constante trabalho centrado na pessoa do profissional, e em sua acuidade ampla, poderemos comprometer seriamente a música criada, estudada e ensinada” (KATER, 1993, s/p).

Assim, este trabalho busca, de acordo com a visão da Educação Libertadora pautado no conceito que difundimos de Educação Musical Humanizadora, valorizar as aprendizagens de educadores musicais adquiridas durante a formação em licenciatura em música como parâmetro para se pensar a formação de professores no âmbito das universidades, escolas e instâncias políticas bem como valorizar o processo de construção de identidade profissional desses educadores.