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O PORTUGUÊS DO BRASIL: ACHEGAS A UM ESTUDO ETNOLINGUÍSTICO A história do português do Brasil pode ser entendida como a história de

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: O LÉXICO EM FOCO

2.3 O PORTUGUÊS DO BRASIL: ACHEGAS A UM ESTUDO ETNOLINGUÍSTICO A história do português do Brasil pode ser entendida como a história de

outras línguas de cultura, uma vez que “a história de uma língua realmente se esclarece pela história social e política do povo que usa essa língua” (MATTOS E

SILVA, 2004, p. 91). No Brasil, os contatos interétnicos são marcantes para a reelaboração lexical do português, processo pelo qual influências linguísticas e extralinguísticas marcam a criação de novas unidades léxicas para nomear novos elementos, colocam em desuso certos itens lexicais, bem como associam novos sentidos aos já existentes.

O contato do colonizador português com os autóctones que aqui viviam, com os negros africanos trazidos como escravos e, posteriormente, com os demais imigrantes que para esta terra se deslocaram em busca de melhores condições de vida resultou em trocas culturais, refletidas nos hábitos, nas crenças e nas tradições que esses povos partilharam. E essas relações interétnicas estão presentes também na língua portuguesa do Brasil, especialmente pela presença considerável de unidades lexicais de base indígena e africana, que singularizam a diversidade da variante brasileira do português comparada ao português europeu.

Os contatos interétnicos no Brasil tiveram início no primeiro decanato do século XVI, com a chegada dos portugueses. Encantados com uma realidade totalmente diferente da europeia, já que o Novo Mundo abrigava matas fechadas,

grandes árvores e animais nunca vistos, os europeus encontraram na costa brasileira a maior etnia indígena habitante dessas terras: os índios tupi.

As relações entre o branco europeu e o autóctone, além do contato com os africanos, ajudaram a desenhar a formação social e cultural do povo brasileiro, à medida que favoreceram intercâmbios culturais e linguísticos entre essas etnias.

Estreitando-se os laços dos europeus com os autóctones, também os casamentos entre índias e portugueses passaram a ser benquistos na sociedade indígena, ocasionando a miscigenação tão característica da nação brasileira. Assim, as famílias, constituídas em sua maioria pela união do europeu com a índia, usavam como forma de comunicação a língua indígena, ficando o uso do português reservado para os documentos oficiais e seu ensino a cargo das escolas, segundo Vieira (1951 apud NAVARRO, 1998, p.174). Logo, o português era utilizado pela elite escolarizada da época colonial – em torno de 0,5% da população, segundo Mattos e Silva (2004), enquanto a Língua Geral (LG) era falada pelo restante da população, portugueses iletrados, brasileiros mestiços, índios e africanos.

Além disso, como já mencionada, considerando-se que o Brasil Colonial caracterizava-se como colônia de exploração de Portugal, era necessário que os portugueses aqui instalados relatassem à Coroa as riquezas do novo mundo, a nova realidade encontrada. E, para isso, por vezes, o vocabulário do europeu tornava-se insuficiente, carecendo de designativos para a nova realidade encontrada – animais,

plantas e hábitos antes desconhecidos, o que ocasionou a designação de elementos tipicamente nacionais com nomes indígenas: “a diversidade étnica dos grupos populacionais brasileiros [...] acabou provocando o exercício de trocas ou empréstimos vocabulares, para nos atermos, aqui, apenas ao campo léxico” (DICK,

2000, p.305). Com a intensificação dos contatos e o crescimento da população mestiça,

[...] No transcorrer dos primeiros séculos de colonização, nos diferentes núcleos populacionais, surgia uma variante lingüística que permitia a comunicação entre índios, negros e mestiços que tinham de aprender a falar a língua da minoria branca por uma questão de sobrevivência (ISQUERDO, 2006, p. 12).

Essa variante linguística passou a ser a língua falada em toda a Colônia, a Língua Geral (LG), em detrimento ao uso da língua transplantada. A LG recebeu essa denominação, segundo Rodrigues (2002, p. 100), apenas após o terceiro século da colonização, pois, ao longo do século XVII, era denominada de “língua brasílica” e depois de “tupinambá” (século XVIII), apesar de já ser conhecida por tal

nome desde o século XVII. Tratava-se de uma língua de base indígena (tupi) com certa presença do português europeu.

[...] Em termos históricos, a expressão língua geral refere-se ao processo linguístico e étnico instaurado no Brasil pelo complexo catequético-colonizador, cujo emprego aponta para três concepções: a) em sentido genérico, diz respeito às línguas surgidas na América do Sul em consequência dos contatos entre agentes das frentes de colonização e os grupos indígenas; b) especificamente, designa as línguas, de base indígena, desenvolvidas e instituídas em São Paulo e na Amazônia, e faladas por uma população supraétnica; c) refere- se também à gramaticalização dessas línguas ditas gerais (BORGES, 2001, p. 211).

Dessa forma, e por ser também utilizada na comunicação entre os mestiços e indígenas, integrantes das bandeiras25, a Língua Geral passou a ser disseminada por todo o território nacional, recém-descoberto, sendo frequente o uso de designativos tupis para a nomeação de diversos acidentes geográficos e humanos, por exemplo, mesmo em áreas onde nunca se registrou a efetiva

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As bandeiras foram expedições que contribuíram sobremaneira para a expansão territorial brasileira, entre os séculos XVI e XVIII, haja vista adentrarem em terras desconhecidas (mais ao centro do território) em busca de metais preciosos e escravos, para além do domínio português, por vezes. Cf. Capítulo I deste trabalho.

presença da etnia tupi, conforme atesta Rodrigues (2002, p.21), ao salientar que “é

notável a quantidade de lugares com nomes de origem Tupinambá, quase sem alteração de pronúncia, muitos deles dados por luso-brasileiros dos séculos passados a localidades onde nunca viveram índios Tupinambá”.

Segundo Mattos e Silva (2004), essa Língua Geral, genérica e no singular, foi a versão jesuítica da língua brasílica e funcionava como “um veículo

fundamental como instrumento de interação linguística entre os portugueses [...] e os indígenas predominantemente do tronco linguístico tupi, e, na Capitania da Bahia” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 77).

É mister identificarmos a LG haja vista que, segundo Rodrigues (2002), teríamos, como já mencionado, de fato, três línguas gerais: a paulista, base para o dialeto caipira e profundamente expandida em território nacional, por ser a língua dos bandeirantes paulistas; a amazônica, muito mais documentada e que ainda hoje é utilizada na região Amazônica e o Guarani Criollo. Houaiss (1985, p. 49-50) cita ainda uma língua geral de base cariri, que se estenderia pelo Nordeste brasileiro e interior, à época colonial, todavia, pouco documentada.

Essa Língua Geral Paulista (RODRIGUES, 2002) dominou o cenário linguístico nacional por aproximadamente três séculos, e seu predomínio só foi contido após decreto da Metrópole Portuguesa, que via no uso da língua local uma ameaça para o controle da Colônia, na segunda metade do século XVIII. Em 1757, pela publicação do documento conhecido como Diretório dos Índios, o Marquês de Pombal, então ministro português, decretou que não mais fosse utilizada a língua híbrida em terras nacionais. Em consequência disso,

[...] O Diretório intervém, deste modo, no processo de construção da identidade linguística brasileira, já que visa impedir a brasilidade de enunciar-se de dentro da formação discursiva que lhe é própria. Esse Diretório vigorou durante aproximadamente 40 anos, sendo abolido

apenas em 12 de maio de 1798. De qualquer forma, as raízes desse português-brasileiro continuaram resistindo e produzindo efeitos no dizível possível, embora a língua geral e as demais línguas indígenas tivessem sofrido um processo sistemático de eliminação ao longo dos séculos seguintes (MARIANI, 2001, p. 111).

Além disso, a língua de base indígena passava então a ser menosprezada pela sociedade da época, em relação à língua da metrópole. Segundo ideias disseminadas a partir desse diretório, “a língua indígena era pobre, simples, rudimentar, sem passado literário, era instrumento de um povo rude, de cultura primitiva. Ao invés, o português era rico, complexo, maleável, possuidor de uma tradição literária” (MELO, 1981, p. 51).

Mesmo assim, e tendo decorridos mais de 500 anos desde o descobrimento, a presença tupi mantém-se no léxico da variante brasileira do português, por meio da representativa quantidade de designativos dessa origem, especialmente em áreas semânticas que nomeiam referentes tipicamente nacionais, como a fauna, a flora, a alimentação e as atividades ligadas ao campo.

Mattos e Silva (2004), inclusive, acrescenta que essa influência indígena, além da africana, deu bases para uma nova língua portuguesa, diversa da variante europeia transplantada para o Brasil, o português geral brasileiro, que modernamente gerou a variante popular da língua portuguesa no Brasil. Segundo a autora,

[...] Muito provavelmente a língua de comunicação generalizada nesse momento (séculos XVII e XVIII) integrador da sociedade colonial seria o português geral brasileiro, não se negando que em situações específicas pudessem aí ser ouvidas tanto línguas gerais indígenas, línguas indígenas, línguas africanas mais gerais entre os escravos [...] e, certamente, o português europeu, sobretudo porque um contingente significativo de portugueses se deslocou para a área mineradora em busca de ouro (MATTOS E SILVA, 2004, p. 86).

Assim, além da tupi, devem-se ressaltar várias outras etnias que participaram da formação da nação e exerceram influências na configuração da

norma linguística brasileira, em maior ou menor proporção, de acordo com o grau de contato entre os povos, além de sua localização geográfica. Os negros, como já mencionado, além de outros indígenas, como os Guaicuru, os Guató e os Terena, no Centro-Oeste, os Ianomâmi, os Parintins e os Xavante no Norte e os Potiguara, no Nordeste, para se citarem apenas alguns exemplos.

Contudo, a contribuição das demais línguas indígenas no léxico do português do Brasil se processou de forma bem mais tímida que a herança tupi. De acordo com Barbosa ([s.d.] apud HOUAISS, 1985, p. 153), “a contribuição tapuia26 será menor que a chinesa, persa, etc., [...] visto como aquelas línguas tiveram contacto muito passageiro e circunscrito a pequenas regiões”.

Na verdade, toda a contribuição indígena ao léxico do português do Brasil traduziu-se na presença de indigenismos, vocábulos de base indígena incorporadas à língua nacional. Segundo Melo (1981), esses indigenismos caracterizam, ao lado dos africanismos e das demais influências étnicas de cunho lexical, a variante brasileira do português. E essas unidades léxicas que caracterizam o português do Brasil, segundo o mesmo autor, são os chamados brasileirismos. Assim, para Melo (1981), os brasileirismos são o que difere e particulariza a língua falada no Brasil em relação àquela do continente europeu, e seriam divididos em seis categorias, de acordo com sua origem e função:

1. Tupinismos 2. Africanismos

3. Vozes ameríndias e hispano-americanas 4. Formações e derivações brasileiras 5. Brasileirismos quanto à significação

6. Arcaísmos (MELO, 1981, p. 149).

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A designação tapuia foi cunhada a partir da primeira classificação das línguas indígenas, distribuídas entre Tupi e Tapúya, pelos primeiros missionários e colonizadores (MELATTI, 1980, p. 33). Essa nomenclatura tem sido refutada, uma vez que sugeriria uma homogeneidade entre as línguas não tupi, fato que já foi comprovadamente derrubado pelos estudos linguísticos de temática indígena.

Interessam-nos especialmente, para este trabalho, os itens 1 e 3, que dizem respeito aos indigenismos. O autor em questão separa em dois itens as influências indígenas tendo em vista a representatividade desses segmentos na língua portuguesa brasileira. Isso porque os tupinismos, unidades léxicas de base linguística tupi, estão presentes em quantidade consideravelmente maior na língua que as demais palavras indígenas, como, inclusive, já fora observado por Barbosa ([s.d.] apud HOUAISS, 1985, p. 153).

Ainda sobre os indigenismos, Oliveira (1999), considerando a proposta de Melo (1981), retoma as posições de D‟Albuquerque, que assim sistematiza os

brasileirismos de base indígena:

1. Palavras originárias de línguas indígenas e incorporadas ao nosso léxico. [...]

5. Vocábulos de outras línguas que aqui se deturpam (D‟ALBUQUERQUE, [s.d.] apud OLIVEIRA, 1999, p. 64).

Nessa separação, Oliveira (1999, p. 65) considera que, de forma implícita, as línguas indígenas a serem consideradas no item 1 proposto por D‟Albuquerque seriam “apenas as brasileiras”, inserindo-se no quinto item as palavras originadas

das demais línguas indígenas.

Segundo Rodrigues (2002, p.18), “falam-se no Brasil, hoje em dia, umas 170 línguas indígenas”, quantidade consideravelmente inferior ao montante de

aproximadamente mil línguas, à época do início da colonização. Essa diminuição no número de línguas indígenas em uso no Brasil pode ser explicada pelo próprio desaparecimento físico dos falantes

[...] em decorrência de epidemias, extermínio direto, escravização, redução de territórios, destruição das condições de sobrevivência e aculturação forçada, entre outros fatores que sempre acompanharam as frentes de expansão desde o período colonial até nossos dias (SEKI. Línguas indígenas do Brasil no limiar do século XXI.

Disponível em

Em determinadas regiões, a população indígena e, consequentemente, suas línguas, foram praticamente dizimadas, enquanto em outras se mantiveram com certa representatividade, situação motivada por questões econômicas, como argumenta Rodrigues (2002, p.19), ao esclarecer que “naturalmente, o maior número de línguas indígenas desapareceu nas áreas que foram colonizadas há mais tempo e mais intensamente, constituídas pela região Sudeste e pela maior parte das regiões Nordeste e Sul do Brasil”.

As línguas indígenas brasileiras, em sua maioria, são provenientes de dois troncos linguísticos, Tupi e Macro-Jê, que mantêm sua permanência na variante brasileira do português especialmente em áreas onde a colonização foi tardia ou não intensa, como nos casos das regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, áreas que, segundo Prado Jr (198627, p.113), na década de 1940, eram “em geral as de vida econômica pouco ativa”.

2.4 O LEGADO INDÍGENA NO LÉXICO DO BRASIL: DA LÍNGUA GERAL AOS