• Nenhum resultado encontrado

As referências ao sobrenatural, ao divino e ao metafísico passaram a ser irónicas, por vezes mesmo corrosivamente sarcásticas, ou então aligeiradamente fúteis. Manifestações de um mundo negado que simultaneamente se nega, essas como que irrupções do metafísico revelam carências que os seus mais chegados e a sociedade em geral nunca conseguiram colmatar. Enquanto ostensivamente trocista face a tudo que implicasse crença religiosa, Woolf, por outro lado, nunca investiu nenhuma das suas personagens de ridículo ou de malvado apenas pela sua ligação a um credo religoso.

Poderá, neste ponto, trazer-se à apreciação a figura de Miss Kilman, a desagradável, e até um tanto (talvez excessivamente) repelente professora de Elizabeth, em Mrs. Dalloway, aquela que, "bitter and burning, had turned into a church two years three months ago" (MD 137). M.C. Bradbrook considera mesmo que os sentimentos de Miss Kilman - assim como as sensações de Charles Tansley durante o jantar de To the Lighthouse - são analisadas por Woolf "with a brutality that is faintly discomforting."160 Porém, é por demais notório que a faceta repugnante do seu carácter é a que resulta da frustração de mulher pobre, feia e não desejada (uma Milly Brush de uma outra vertente),161 que encontra na bulimia um derivativo para as suas carências e se entrega a um determinado fervor religioso para, determinadamente, se aproximar de um homem e ainda, sob a capa da evangelização, tentar aliciar uma jovem que, em última instância, lhe serviria de lésbico sucedâneo.

"Notes on the Style of Mrs. Woolf, Scrutiny Vol. I, 1932, pp. 33-8. Excerto transcrito em Critics on Virginia Woolf, ed. Jacqueline E.M. Latham, London, George Allen & Unwin, 1970, p. 22.

161 Woolf caracteriza a sua personagem Milly Brush afirmando que ela "observed men with unflinching rectitude,

and was capable of everlasting devotion, to her own sex in particular, being knobbed, scraped, angular, and entirely without feminine charm" (MD 118).

Será bom deixar claro que a apresentação de exemplos tirados dos diferentes romances de Woolf não obedecerá a qualquer ordem cronológica pois que isso implicaria, conforme Mark Hussey justamente observa, ir "against the grain of Woolf s own procedures and aims, imposing a linear development on her art that the novels themselves do not support. A novel-by-novel approach invites 'definitive' readings and a need for closure that leads to adapting the territory to fit a particular map."162 Assim, as referências serão convocadas segundo uma sequência de

concatenação, mais do que para se enquadrarem num qualquer "mapa" pré-estabelecido.

Há outras personagens de Woolf que se apresentam, ou são apresentadas, como destituídas de qualquer crença; no entanto há, regra geral, um boa razão particular que as levou à falta de fé. É o caso, por exemplo, da própria Mrs. Dalloway, a respeito da qual Peter Walsh, seu amigo de juventude, vai acordando reminiscências:

Oddly enough, she was one of the most thoroughgoing sceptics he had ever met, and possibly . . . she said to herself, As we are a doomed race, chained to a sinking ship (her favourite reading as a girl was Huxley and Tyndall, and they were fond of these nautical metaphors), as the whole thing is a bad joke, let us, at any rate, do our part; mitigate the sufferings of our fellow-prisoners (Huxley again); decorate the dungeon with flowers and air-cushions; be as decent as we possibly can. "Those ruffians, the Gods, shan't have it all their own way - her notion being that the Gods, who never lost a chance of hurting, thwarting and spoiling human lives, were seriously put out if, all the same, you behaved like a lady. That phase came directly after Sylvia's death - that horrible affair. To see your own sister killed by a falling tree . . . before your very eyes, a girl too on the verge of life, the most gifted of them, Clarissa always said, was enough to turn one bitter. Later she wasn't so positive, perhaps; she thought there were no Gods; no one was to blame; and so she evolved this atheist's religion of doing good for the sake of goodness. (86-7)

162 The Singing of the Real World: The Philosophy of Virginia Woolf's Fiction, Columbus, Ohio State University

Press, 1986, p. xi.

Neste caso parece bastante legítimo aproximar a queda da fé da jovem Clarissa da que fulminou a jovem Mrs. Duckworth, futura mãe de Virginia, quando lhe morreu o primeiro marido após escassos anos de felicidade. Tal como no caso da citação acima, "[it] was enough to turn one bitter"! Julia Duckworth/Stephen, personagem bem real, transferiria a sua necessidade de religião para um serviço social de apoio aos necessitados que haveria de ultrapassar, em prioridade, o próprio cuidado e acompanhamento dos filhos, tal como a Clarissa do romance passou a considerar religiosamente a sua missão de congregar as pessoas em festas de convívio ameno, para atingir o seu objectivo de "to combine, to create", ficando, no entanto, em aberto, a pergunta de certo modo angustiante: "but to whom?" (MD 135) talvez a que persistia na mente da própria autora.

Karl e Magalaner consideram que, em Mrs. Dalloway, "[tjhere is no political or social or religious 'message.'"163 Porém, a vida descrita em monólogos é feita de tudo quanto de político,

social e religioso compõe a existência de seres congregados em sociedade. E, mesmo que não ostensivamente, a mensagem fica transmitida conforme a autora a entende. É verdade que em Virginia Woolf, como Nicholas Marsh nota a respeito de excertos de três romances,

Instinctive drives are not openly discussed. In Mrs. Dalloway, Clarissa and Peter discuss polite trivia, and do not express their underlying feelings. In To the

Lighthouse, Mrs. Ramsay hides and suppresses thoughts about violent death for

the children's sake. In The Waves Rhoda's hidden memories begin to surface as she falls asleep.164

Mas também é verdade, por exemplo, como o mesmo autor analisa, que "'masculine' and 'feminine' sterotyping is a major theme in Virgínia Woolf s writing" (68) e que "Virginia Woolf takes a satirical approach to class divisions and snobbery, English patriotism and the

Frederick Karl e Marvin Magalaner, A Reader's Guide to Great Twentieth-century Novels, London, Thames & Hudson, 1960, p. 133.

establishment, and ideals such as Empire. She uses irony, sarcasm and hyperbolic style to reveal the absurd emptiness of society's mores" (86). Mais ainda, ele acrescenta que "[although her methods are predominantly ironic and satirical, Virginia Woolf s vision of society is potentially tragic" (86). Isto torna-a também potencialmente pessoal se pensarmos, com David Daiches, que "[a]ll human experience is potentially our experience, and that makes tragedy possible: it is also potentially our neighbor's experience, and that makes comedy possible."165 Nas suas obras, a autora parece querer dar razão a Daiches.

Quanto às possíveis mensagens da ficção de Woolf, é de frisar que várias décadas separam as duas opiniões críticas mencionadas acima, o que comprova a evolução dos estudos woolfianos e o crescente cuidado dos estudiosos na decifração dos possíveis motivos ocultos das escolhas linguísticas, formais e temáticas (ou será melhor dizer em ordem inversa?) da escritora. Esta verdadeira "caça ao tesouro" literária tem-se apresentado, até agora, inesgotável, e não parece ir tão cedo desiludir os que a ela se dedicam com empenhamento. Naturalmente que, como em todas as gananciosas buscas, é possível que, por vezes, o latão brilhe como o ouro e o incauto ou impaciente prospector tome a nuvem por Juno e como Juno a apresente. Todos quantos trabalhamos para fazer alguma coisa estamos sujeitos a errar. O máximo que pode ser prometido, nestas circunstâncias, é o extremo cuidado na procura das fontes e a demorada avaliação do material sob estudo.

Ainda em Mrs. Dalloway, a posição de Clarissa quanto a religião ficara bem clara desde as primeiras páginas do romance quando, ao chegar a casa naquela gloriosa manhã de Junho se sentiu "blessed and purified" embora, como o leitor é avisado logo de seguida, "not for a moment did she believe in God; but all the more, she thought . . . one must pay back from this secret deposit of exquisite moments" (MD 33). Talvez exactamente como acontece na vida a quem

A Study of Literature for Readers and Critics, Ithaca, N.Y., Cornell University Press, 1948, p. 229. — 134 —

apenas se alegra com o sucesso, o cenário e o sol, a desilusão breve tornou a manhã em "this matter-of-fact June morning" e esgotou o "secret deposit of exquisite moments"; só ficou uma mulher a sentir-se velha, quase sexagenária e só, "[l]ike a nun withdrawing," que não conseguia "sleep undisturbed" na sua cama "narrower and narrower" (35). O paraíso de Clarissa Dalloway desfazia-se em pesadelo, só porque "Millicent Bruton, whose lunch parties were said to be extraordinarily amusing, had not asked her" (34). Trivial? De forma alguma, se pensarmos nos inúmeros saltos bruscos de humor que todos, não raro, sofremos, por motivos ainda mais insignificantes.

Também Peter Walsh, entre os seus sonhos, se vê confrontado com a problemática das crenças: o "solitary traveller" é descrito como "[b]y conviction an atheist perhaps, he is taken by surprise with moments of extraordinary exaltation. Nothing exists outside us except a state of mind, he thinks; a desire for solace, for relief, for something outside these miserable pigmies, these feeble, these ugly, these craven men and women" (MD 63-4). Uma alucinação bem em consonância com o clima do romance.

A aparente trivialidade de Mrs. Dalloway é desmentida pelo seu simbolismo profundo, bem detectado por René E. Fortin, para quem "[t]he imagery of this novel, in fact, suggests that the central action of the heroine is to find an adequate substitute for Christianity and, specifically, for the sacramental sense of reality which is forstered. Only by a restoration of this sacramental sense of reality, Virginia Woolf argues, can man regain his integrity, his wholeness."166 Fortin chama sobretudo a atenção para a "extremely suggestive parody of sacramental imagery" que se esconde no episódio do misterioso carro governamental, que faz os transeuntes pensarem: "But now mystery had touched them with her wing; they had heard the voice of authority: the spirit of religion was abroad" (MD 17). Mas as lucubrações de Clarissa são as mais sugestivas: "Clarissa

guessed; Clarissa knew, of course; she had seen something white, magical, circular, in the footman's hand, a disc inscribed with a name, - . . . to blaze among candelabras, glittering stars, breasts stiff with oak leaves, Hugh Whitebread and all his colleagues..." (MD 20). Segundo Fortin argumenta:

The white, magical, circular disc possessed of religious significance hardly needs the additional notion of 'Whitebread' to be identified with the Host of the Eucharist, or at least the ironic modern equivalent of it. The function of Christianity in this secular age, the passage hints, has been assumed by the government; it is the government which is invested with authority and mystery, which provides a sense of community to the populace. The ironic tone leaves no doubt that the government is considered unworthy to take on the functions abdicated by Christianity. (307)

Fortin recorda ainda o aeroplano que, para Septimus Smith, "heralds the 'birth of a new religion,' inspiring in him an ecstatic perception of the unity of being"; aeroplano que, "identified with the strange gods of science and technology, with the kind of speculation that has replaced traditional thought, offers no solace to man: its 'mission of the greatest importance' is to serve commerce" (308). Também, diz Forftin, "[o]ther and more obvious perversions of the religious instinct are the cults of the Goddess Proportion and the Goddess Conversion" (308). A personagem Septimus Smith, para Fortin "a Christ figure", "has fulfilled his strategic function: to focus our attention upon the religious dimensions of the novel" (310). E a parte final do romance faz Fortin pensar: "a party which involves an offering, a sacrifice in the form of a symbolic death, and a sense of communion in the participants obviously invites identification with the Mass. Mrs. Dalloway, in her parodie Mass, is indeed the 'perfect hostess,' offering herself, like Christ, as priest and victim to restore the integrity of man" (312).

A interpretação de René Fortin parece bastante bem justificada e integra-se na linha de leitura seguida neste trabalho: há muito mais de místico e de religioso em Virginia Woolf do que

ela ostensivamente confessaria. As suas ironias e sarcasmos, pretendendo atestar a hostilidade e a oposição, demonstram, frequentemente, a frustração pelo constatar do sem sentido de um mundo sem Deus, sem valores espirituais, onde os pequenos deuses-substitutos que a sociedade criou estão longe de satisfazer as aspirações da alma humana. Esta mensagem "subterrânea" é transmitida pela autora um pouco por todos os seus escritos mas, de forma mais insistente, precisamente em Mrs. Dalloway e em To The Lighthouse.

É em Between the Acts, já tão perto do acto final da existência da escritora, que aparece Mrs. Swithin, possivelmente a personagem mais genuinamente religiosa de Virginia Woolf, imperturbada pelas teorias evolucionistas tão em voga na sua época e tão responsáveis pelo desmoronar das já abaladas crenças vitorianas. Ela deleita-se com leituras sobre dinossauros e maravilha-se com o pensamento da recuada ascendência dos seres humanos, com

rhododendron forests in Piccadilly; when the entire continent, not then, she understood, divided by a channel, was all one; populated, she understood, by elephant-bodied, seal-necked, heaving, surging, slowly writhing, and, she supposed, barking monsters; the iguanodon, the mammoth, and the mastodom; from whom presumably, she thought, jerking the window open, we descend.

E, no entanto, de manhã cedo ela "was of course at church" e, na hora da festa, reza para que não chova e melindra-se com as considerações do seu descrente irmão Bartholomew que, nas palavras de Marilyn Zorn, "commits a daily rape upon Lucy's sensibilities (his delight in excoriating her religion)"167 :

'It's very unsettled. It'll rain, I'm afraid. We can only pray,' she added, and fingered her crucifix.

'And provide umbrellas,' said her brother

167 "The Pageant in Between the Acts". Critics on Virginia Woolf, ed. Jacqueline E.M. Latham, London, George

Lucy flushed. He had struck her faith. When she said 'pray,' he added 'umbrellas.' She half covered the cross with her fingers.

Nitidamente, aqui, a voz da irmã é a do inconsciente religioso de Woolf, e a do irmão a da sua faceta ostensivamente agnóstica, swiftianamente cáustica e destrutiva. "[W]hy", questiona-se Barth noutra instância, tal como Woolf poderia questionar a sua "metade religiosa", "in Lucy's skull, shaped so much like his own, there existed a prayable being?" (32)

Mrs. Swithin - Lucy, ou Cindy, ou Flopsy - é uma personagem que, pese embora as suas idiossincrasias um pouco extravagantes, se mantém bastante consistente ao longo do livro no que respeita à sua inabalável fé, que lhe dá segurança e paz ("She was thinking, he [Bartholomew] supposed, God is peace. God is love. For she belonged to the unifiers; he to the separatists"). Para Val Gough, "she is associated with transcendence, being spiritually lifted above the 'pegged- down' reality of time and history. . . . The novel uses irony to imply that such a mystical flight from the symbolic is as dangerous and as outmoded as her brother Bartholomew's rigid rationalist atheism."168

Ao lado de Mrs. Swithin na crença, pode apenas pensar-se no Reverendo G.W. Streatfield que, apesar de um tanto ridicularizado no texto, faz no fim do espectáculo um discurso muito aceitável sobre as suas possíveis interpretações, concluindo que "We were shown, unless I mistake, the effort renewed. . . . we are members of one another. Each is part of the whole. . . . We act different parts; but are the same" (BTA 224). E, também ele, "twiddled his cross on his watchchain" (BTA 226).

Isa é uma questionadora, aberta às sugestões da vida e às perplexidades da existência. As suas dúvidas íntimas quanto à justificação do destino e a explicabilidade do universo saldam-se num desencanto e num desalento tão completos que a levam a isolar-se, enquanto medita:

"With Some Irony in Her Interrogation: Woolf s Ironie Mysticism", Virginia Woolf and the Arts, pp. 86-7.

Where do I wander? Down what draughty tunnels? Where the eyeless wind blows? And there grows nothing for the eye. No rose. To issue where? In some harvestless dim field where no evening lets fall her mantle; nor sun rises. All's equal there. Unblowing, ungrowing are the roses there. Change is not; nor the mutable and lovable; nor greeting nor partings; nor furtive findings and feelings, where hand seeks hand and eye seeks shelter from the eye. (BTA 181-2)

Sente-se, desconfortavelmente, que um tal desencanto e um tal desalento ao fim do percurso diário/terreno poderiam ser subscritos pela própria autora, assim como a proposição pseudo-corajosa que fecha o monólogo: "This is the burden that the past laid on me, last little donkey in the long caravanserai crossing the desert. 'Kneel down,' said the past. 'Fill your pannier from our tree. Rise up, donkey. Go your way till your heels blister and your hoofs crack'" (BTA

182).

As descrições dos exemplarmente não-crentes, dos declaradamente agnósticos ou ateus, são mais frequentes nos restantes livros da escritora.

É já lugar-comum falar da ambiguidade e ambivalência de muitos conceitos defendidos por Virginia Woolf, assim como, aliás, da expressão e profundidade dos seus afectos, da sinceridade e isenção dos seus julgamentos e, até, do seu próprio estilo de vida. É paradoxal que o seu anti- semitismo a tenha levado a casar com um judeu, que o seu snobismo lhe permitisse falar convincentemente para mulheres trabalhadoras, que a sua apregoada frigidez não a coibisse, por exemplo, de se envolver acaloradamente com o cunhado, que a sua diagnosticada loucura lhe aumentasse as capacidades literárias e que, inclusivamente, a sua irreligiosidade se manifestasse de forma tão mística e "religiosa", de forma a criar, na expressão de Kenneth Tighe, uma espécie de "personal, Woolfian irreligion"16 .

Curioso e sintomático é observar como é precisamente quando a negação de Deus é mais

169 "Art and Atheism in To the Lighthouse", VWW, 1997, p.3. Tighe acrescenta: "(she may herself have preferred

the term 'neo-paganism')"

explícita que, insidiosamente, mais transparece a necessidade do Absoluto, do Divino. Este substracto comum da ficção woolfiana nota-se, talvez, de forma mais continuada em To The

Lighthouse e em The Waves. Nessa época da sua vida, todas as ajudas espirituais que Woolf

possa ter tido estavam já esgotadas e, a ajuizar pela sua família e a sua roda de amigos, e ainda as leituras que fez ou possa ter feito, as suas meditações pessoais não a levaram, seguramente, a certezas reconfortantes nem, sequer, deram resposta satisfatória a qualquer das suas perguntas existenciais mais prementes. Daí que os ataques à religião ou, antes, a uma qualquer ideia de Deus, sejam lançados como que inadvertidamente, no decurso narrativo das obras; daí que tenha cabido às diferentes personagens o exteriorizar de insatisfações e protestos, mais como bravata contestatária, tomada de posição, assumir da oposição, do que como tentativa de dialéctica verosímil entre diferentes figuras componentes de uma sociedade.