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Positivismo egológico de Carlos Cóssio: o homem é ser crítico e contextualizado

3. O POSITIVISMO ESQUECIDO POR BARROSO

3.3. Positivismos jurídicos

3.3.6. Positivismo egológico de Carlos Cóssio: o homem é ser crítico e contextualizado

250 Ibidem. p. 124. 251 idem.

94 Carlos Cóssio formou-se na Universidade de Buenos Aires, onde se filiou ao movimento reformista argentino, tendo, inclusive, o tema de sua tese de doutorado sido A Reforma Universitária ou o problema da nova geração, trabalho publicado em 1927. Em decorrência de sua militância, teve cassada sua cátedra, em 1956, pela junta militar que governou a Argentina antes do retorno de Perón.

Com seu culturalismo existencial, que conferia papel central ao valor das condutas no direito e que tinha o método empírico-dialético, que se aproximava com o materialismo histórico, como metodologia de trabalho, revelava-se como uma teoria oposicionista aos modelos políticos que se apresentaram na Argentina daquela época, em especial a Ditadura Militar, tendo vários de seus trabalhos sido proibidos, perseguição que se estendeu aos seus discípulos, que tiveram vários trabalhos de mestrado e doutorado reprovados pelo simples fato de trazerem em seu bojo as ideias de Cóssio253.

O teórico tentara articular, no estudo do direito, um deslocamento das normas em seu estado abstrato para a conduta dos sujeitos e, para sua Teoria Egológica, teve como referência a lógica transcendental do criticismo kantiano, a fenomenologia de Husserl e o existencialismo de Heidegger.

De Kant, adotou o criticismo, a lógica transcendental; da fenomenologia, a consideração do mundo da vida (Lebenswelt); e, de Heidegger, o ser-no-mundo (Dasein), considerando o direito e o próprio ser humano em suas contextualizações espaço-temporais, pois seria na realidade e na vida cotidiana que, tanto um quanto o outro, desvelar-se-iam254.

Portanto, o homem, em sua criticidade, seria a própria dimensão da compreensão dele mesmo e de seus semelhantes, contextualizados no mundo da vida, a partir do qual seria, da mesma forma, espaço-temporalmente (culturalmente) determinado.

Essa via de mão dupla comporia uma espécie de vida plena, que informaria o ego, culturalmente situado, como objeto das relações e do qual advém todas as complexidades da vida social.

Sua teoria denota uma tentativa originária de situar o direito para além do abismo entre sujeito e objeto. A dimensão do ser, tematizada por Heidegger e assumida por Cóssio, aclara essa dimensão abrangente, na qual se pode articular uma circularidade entre sujeito e objeto, no espaço e tempo, sem que um deles tenha exatamente o papel central.

253 HERRENDORF, Daniel E. Introducción a la fenomenologia egológica. in: COSSIO, Carlos. Radiografía de

la Teoria Egológica Del Derecho. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1987. 05- 82 pp.

254 SILVA NETO, José Leite da; e SILVA LEITE, Valéria Aureliana. Da teoria egológica de Carlos Cóssio ao poder simbólico de Bourdieu: a humanização do direito. In: Filosofia do Direito I; org. Eduardo Pordeus Silva e Marika Fernanda Salcedo Repolês. Compedi 2014 (org. UFPB). p. 7.

95 É nesse sentido que relaciona a ideia heideggeriana de ser-no-mundo com a ideia de vida plena, que seria uma consideração das condutas humanas nos seus respectivos planos ontológicos255.

O conceito de vida plena – vida plenária – está relacionado à ideia de: que a vivência é ato único e complexo como na fenomenologia de Husserl256 e que o homem-está- sendo-no-mundo e isso significa que o homem só pode ser entendido como ser imerso dentro das circunstâncias do tempo e do espaço em que vive257. Ou seja, entende ele que o homem possui duas dimensões: situado e situacionado.

Segundo Herrendorf, em sua introdução à Fenomenologia Egológica:

“situado porque es en una situación existencial determinada – no en el vacío. Situacionado, porque a su vez esa situación em la qual el hombre es, lo determina em algún grado, ofreciéndole determinadas posibilidades de vida y solo esas, determinada por la situación que vive”258.

Assim, para a Teoria Egológica, interessaria considerar os objetos culturais que, na linha husserliana, poderiam ser classificados como: objetos frutos do fazer, objetos mundanos, a exemplo das obras de arte, da música, da arquitetura etc.; e objetos originados do agir, que seriam os objetos egológicos, que dizem respeito à ação prática dos homens, como a política, a ética, o direito etc.

Seguindo essa linha, desenvolve sua teoria egológica como reflexão crítica sobre os objetos (culturais e egológicos) que informam às condutas práticas dos homens enquanto seres-no-mundo. Os objetos de que Cóssio fala, “solidariedade, cooperação, paz, segurança e ordem”259, por exemplo, estariam impregnados de valorações, daí a importância de se considerar seus respectivos conteúdos numa perspectiva intersubjetiva, para se evitar recair em particularismos.

Para ele, qualquer relação jurídica em que se precise articular o conteúdo dos objetos egológicos deve ter no mínimo duas partes, dois sujeitos, dois egos260, que têm potencial interferência (intersubjetiva) no conteúdo, por fim, resultante.

Observe-se que há uma centralidade deslocada do juiz para as partes na dinâmica por Cóssio proposta.

255 Idem. Ver também: COSSIO, Carlos. Norma, Derecho e Filosofia. Revista Trimestral de Cultura Moderna. n. 7. Universidad Nacional de Colômbia, Bogotá, 1946. pp. 107-231. p. 196.

256 COSSIO, Carlos. Teoria de la Verdade Jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada. 1954. p. 189. 257 HERRENDORF, Daniel E. op. cit. p. 56.

258 Ibidem. p. 56-57

259 COSSIO, Carlos. Teoria de la Verdade Jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada. 1954. p. 189. p. 69-71 260 COSSIO, Carlos. El Derecho em El Derecho Judicial. Buenos Aires: Guilhermo Kraft ltda., 1945. p. 76

96 A teoria de Cóssio era uma espécie de resistência à teoria pura kelseniana. Para ele, a substância do Direito não seria encontrada na abstração formal das normas, mas no específico das condutas vividas num determinado tempo e espaço. Mas, ao lado de ser uma resistência à pureza de Kelsen, não negava o positivismo, acostava-se a ele e defendia sua imprescindibilidade, como estrutura institucionalizada dos mesmos objetos egológicos.

Lembre-se que a dimensão em que ele tematiza sua teoria é a dimensão do ser heideggeriano, que pretende transpor os abismos criados entre sujeito e objeto, bem como entre substância e estrutura. Nesta linha, Cóssio afirma que “llamamos a estos objetos egológicos porque siendo conducta el substrato de ellos, la conduta es inseparable del ego atuante: en el substrato de estos objetos hay um ego como ego”261.

Em outra interessante passagem, assevera Cóssio:

Com la intersubjetividad óntica del Derecho está apresada su dimensión coexistencial y no meramente existencial; y está definido como fenômeno social. Es verdade que, bajo cierto aspecto, toda la cultura es social. El linguaje, la ciencia, el arte, las creencias, etc., todo esto es social en cuanto que, como términos intencionales de la consciência, se hacen por la obra de todos los hombres, se conservan en la comunidad y em algún grado todo el mundo comulga com ellos para entenderse. También el derecho es cosial em este sentido.262

Precisamente por isso, articula que a Teoria Egológica do Direito adota uma fenomenologia existencial da cultura.

Aduz, ainda, que o estudioso do direito que se restringisse a consideração das normas em sua dimensão formal poderia ter muito a contribuir quanto à lógica jurídica, a coerência interna do ordenamento, mas abriria mão de conhecer e entender o mundo da vida e as relações em que tais conceitos emergem, que da mesma forma seriam essenciais263.

É, nesse diapasão, que Goffman264, comentando Cóssio, diz que uma leitura da realidade das condutas determinada desde o ponto de vista da lógica dogmática pode transformar a norma numa máscara e a relações empíricas dos indivíduos se apresentará como fachada.

O que se depreende dessa tematização é que, para Cóssio, seria determinante o papel do positivismo, da estrutura formal, da lógica, etc., mas, ao lado disso, dever-se-ia conferir importância também às relações culturais, donde as normas seriam afirmadas.

261 COSSIO, Carlos. Teoria de la Verdade Jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada. 1954. p. 70 262 Ibidem. p. 81 -82.

263 SILVA NETO, José Leite da; e SILVA LEITE, Valéria Aureliana. Da teoria egológica de Carlos Cóssio ao poder simbólico de Bourdieu: a humanização do direito. In: Filosofia do Direito I; org. Eduardo Pordeus Silva e Maria Fernanda Salcedo Repolês. Compedi 2014 (org. UFPB). p. 7.

264 GOFFMAN, Erving. La presentación de la persona en la vida cotidiana. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1997. p. 29 – 46.

97 Somente a partir dessa abrangência o estudo do direito far-se-ia de forma plena, com um ordenamento estruturado que goza de autoridade e um conteúdo ético que preza pela justiça, ainda que se compreenda que isso, em verdade, é uma eterna busca (já que ela nunca se realiza de forma completa, na perspectiva heideggeriana – uma espécie de movimentação entre o finito e o infinito).

3.3.7. O garantismo de Luigi Ferrajoli: moral e política são jogos de linguagem externos e a