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Com o advento da Escola Histórica do Direito, o jusnaturalismo cedeu lugar a dogmática do positivismo, caracterizada, sobretudo, pela vontade de construir uma ciência do Direito com base no modelo das ciências humanas – que consistem na descrição do mundo com o auxílio de proposições verificáveis.

Os juízos valorativos inerentes às correntes jusnaturalistas não são susceptíveis de aferição de verdade ou falsidade. As emoções, os sentimentos, os desejos etc., não podem ser verificados objetivamente. Logo, as teorias acerca do direito natural apenas representam juízos de valores: justo e injusto; bom e ruim; certo e errado. Não correspondem,

deste modo, a alguma realidade objetiva.170 Como consequência, a ciên-

cia do Direito desenvolveu-se em renúncia aos valores.

A partir de Hobbes, a figura do homem parte-se em duas: uma metade privada e outra pública. Defendendo que o “estado de guerra” (bellum omnium contra omnes) pertence à natureza humana, sustenta que os atos e as ações são submetidos, sem exceção, à lei do Estado,

169 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito; tradução e

nota Marcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 17.

mas a convicção é livre, “in secret free”. O filósofo propõe uma moral cujo tema é a razão, ditada pela situação política e pela necessidade

estatal de estabelecer uma paz duradoura.171

Para Locke, considerado o pai espiritual do Iluminismo burguês, havia três tipos de leis: a lei divina, regulamentando o que é pecado; a lei civil, regulamentando o crime e a inocência, ou seja, a lei do Estado, ligada à coerção; e a lei moral, que é a medida do vício e da virtude. Diferentemente de Hobbes, Locke considera que a moral passa a com- por o Estado. Desta maneira, os cidadãos não se submetem apenas ao poder estatal, mas formam juntos uma sociedade que desenvolve (taci- tamente e em segredo) as suas próprias leis morais, que se situam ao lado das leis do Estado.172

Rousseau, observando uma identidade entre a política e a moral, dirige sua crítica não somente contra o Estado estabelecido, mas contra toda a sociedade que o criticava. Propondo a derrubada do modelo esta- tal estabelecido, Rousseau concebe no Contrato Social uma constituição em que a nova sociedade ocupe o poder, onde cada indivíduo é o sobe- rano de todos. Para ele, os indivíduos podem enganar-se, porém a volon- té générale jamais.173

Com a racionalidade científica do positivismo, tratou-se de sepa- rar o Direito e a moral em realidades distintas. Não cabe ao Direito, necessariamente, proteger as normas morais, apesar de alguns teóricos defenderem que o direito natural deveria servir como fundamento ao direito positivo, pois os homens devem produzir um ordenamento que

faça justiça. De acordo com TOBIAS BARRETO, porém, o direito natural

sequer existe: “o Direito não é um filho do céu, é simplesmente fenôme- no histórico, um produto cultural da humanidade”. Não há, portanto, um

“direito” natural; o que existem são “leis” naturais.174

Para KELSEN, consagrado filósofo positivista, há uma tendência

política de conceber o Direito como justiça ou felicidade social. Diz, entretanto, que se apenas uma ordem justa é chamada de Direito, isso significa justificá-la moralmente, mas não cientificamente. Segundo afirma, uma “ordem justa” não é aquela que busca concretizar a felici-

171 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise; tradução Luciana Villas-Boas Caetelo-Branco.

Rio de Janeiro: EDUERJ, Contraponto, 1999. pp. 26-39.

172 KIOELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. pp. 49-55. 173 KIOELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. pp. 137-61.

174 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. p. 444. apud BATALHA, Wilson de Souza Cam-

pos; RODRIGUES NETTO, Sílvia Marina L. Batalha de. Filosofia Jurídica e História do

dade individual de cada um, “mas sim a maior felicidade possível do

maior número possível de indivíduos”.175

A teoria pura de KELSEN, racionalmente pensada e estruturada,

separa definitivamente o Direito de toda a ideologia. O seu positivismo radical espanta. Como forma, o Direito constitui-se em um sistema pi- ramidal de normas hierarquicamente conformadas, não cabendo ao Es- tado criar esse Direito. Na verdade, para o jurista, Direito e Estado se confundem. O Estado é, pois, o próprio Direito.

A doutrina juspositivista, especialmente a teoria do filósofo aus- tríaco, sofreu diferentes censuras. Dentre diversas, a clássica crítica contra o positivismo kelseniano encontra-se na “coerência científica” que faz a ciência jurídica “zombar” da justiça do Direito. Como asseve-

ra EVELYNE PISIER, “um jurista democrata-cristão ou socialista fica

indignado que alguém lhe sugira: ‘Hitler é o direito’”.176

Durante o período do positivismo, afirma PAULO BONAVIDES, os

princípios já começaram a ser introduzidos nos códigos como fontes normativas do Direito, todavia, ainda como “válvula de segurança que

garante o reinado absoluto da lei”.177 Somente a partir do chamado pós-

positivimo, os princípios passariam a ser tratados efetivamente como Direito, em uma nítida tentativa de aproximação dos postulados positi- vistas e jusnaturalistas.

Em síntese, consoante NORBERTO BOBBIO, é possível destacar

seis critérios distintivos entre o direito natural e o direito positivo: quan- to à universalidade/ particularidade: o direito natural é onipresente, em contraposição ao direito positivo, que vale apenas em alguns lugares; quanto à mutabilidade: o direito natural é imutável no tempo, enquanto o direito positivo se transforma; quanto à fonte: um é natural e outro decorre da vontade humana; quanto à forma de manifestação: o direito natural é conhecido por meio de nossa razão (pela racionalidade), ao passo que o positivo, em contrário, decorre da declaração de vontade

175 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado; tradução Luís Carlos Borges. 3. ed.

São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. 08-9.

176 PISIER, Evelyne. História das Idéias Políticas; tradução Maria Alice Farah Calil Antonio.

Barueri: Manole, 2004. pp. 496-7. Conforme aduz EVELYNE PISIER, outros obstáculos surgem à teoria kelseniana: “(...) certamente, a pirâmide deve ter um ápice, a norma superior deve ser ligada a uma norma suprema. Kelsen responde que se trata de uma norma hipotética ou “norma fundamental, hipótese necessária à ciência do Direito”. Outra dificuldade: as normas estão contidas nos textos e esses textos devem ser objeto de uma interpretação. O órgão de aplicação escolhe dar um sentido ao texto, entre outros sentidos possíveis. Os sentidos relacionam-se, necessariamente com o conteúdo – o que rompe a estrutura jurídica, separada da sociedade. Kelsen, ao separar o direito da ideologia, corre um grande risco de reduzi-lo a um formalismo abstrato. PISIER, Evelyne. História das Idéias Políticas. p. 497.

alheia; quanto ao objeto: as condutas reguladas pelo direito natural ou são boas ou são más por si só, enquanto as condutas reguladas pelo di- reito positivo são a priori indiferentes, assumindo determinada qualifi- cação pelo ordenamento; quanto à valoração das ações: o direito natural

estabelece aquilo que é bom, o direito positivo o que é útil.178

De fato, entretanto, todos os esforços empreendidos pelo positi- vismo e pelo jusnaturalismo demonstraram-se insuficientes para justifi- car e solucionar diversas questões jurídicas relevantes. Com a chamada crise do positivismo, vislumbrou-se uma conjuntura favorável à forma- ção de um modelo pós-positivismo, sugerindo uma busca por diferentes instrumentos de construção e concretização do Direito.

Deste modo, aparece um novo paradigma da dogmática jurídica, idealizado a partir do positivismo clássico – mas atento aos valores –, assentando-se nos pressupostos de reconhecimento e valorização da força normativa do texto da Constituição, de expansão da jurisdição constitucional e de desenvolvimento de uma nova dogmática jurídica da interpretação constitucional.