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Possíveis Declarações Literais Sobre Deus, Apresentando-O

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2.2 DECLARAÇÕES SOBRE A RECEPTIVIDADE DE DEUS

2.3.3 Possíveis Declarações Literais Sobre Deus, Apresentando-O

O sentido de „formal‟ está sendo aqui usado basicamente no sentido de con- trapor-se às designações metafóricas, para ratificar que um possível predicado for- mal não possui uma designação semântica material ou psíquica. Ratifica-se que nesse tipo de classificação que se está adotando, a ênfase está na conceituação de Deus mediante diferentes predicados e não no valor de um tipo de predicado sobre outro. As diferenças que os predicados materias, psíquicos e formais guardam entre si são aspectos que se completam. Os predicados divinos classificados sob a forma de metáforas são tão importantes para a compreensão do conceito de Deus quanto os possíveis predicados formais, pois as metáforas não são meros antropopatismos ou antropomorfismos, comumente considerados como sendo deficientes para se referirem a Deus. Portanto, ao se afirmar que predicados formais se contrapõem a predicados materiais e psíquicos está se tentando assumir que é possível fazer de- clarações sobre Deus sem que a linguagem faça uso de metáforas para designar o divino, mas conservando a mesma importância que foi dada às metáforas. Esses possíveis predicados formais são assim descritos:

2.3.3.1 Deus é invisível

O texto base para este tópico é 11,27: to.n ga.r avo,raton w`j o`rw/n evkarte,rhsen “antes, permaneceu firme como quem vê aquele que é invisível”, referindo-se à fé de Moisés. Observa-se que a partícula comparativa w`j é usada com o particípio o`rw/n e não com o objeto direto. Com o objeto seria „vendo aquele que é como invisível‟. Attridge (1989, p. 342-343) acha que w`j o`rw/n é ambíguo e apresenta algumas impli- cações sobre este texto:

A frase com o particípio descrevendo a experiência de Moisés, w`j o`rw/n, é ambígua e pode ser também traduzida “como um que realmente via” ou “como se ele fosse um que via”. A primeira tradução reflete a tradição de Moisés como um visionário que falou com Deus “face a face”. Esta imagem de Moisés, bem representada no período Helenístico, era importante para Filo, embora isto seja qualificado e transformado num pietismo lógico por suas pressuposições filosóficas. A segunda tradução estaria frisando o adje- tivo descrevendo o objeto da visão, “o um invisível” (to.n avo,raton). Moisés en- tão, com os olhos da fé, teria metaforicamente “visto”, por toda a sua vida, aquele a quem ninguém pode ver fisicamente em qualquer circunstância. Nosso autor estava provavelmente familiarizado com as tradições de Moi- sés como um visionário, e se sua classificação deriva de uma fonte, as tra- dições podem ter sido mais explícitas. A ambigüidade da expressão aqui pode, portanto, ser deliberada, como fora reticente sobre a figura de Melqui- sedeque. Hebreus não está preocupado com extraordinárias experiências atribuídas a Moisés em e de si mesmas, mas com a sua fé. Portanto, as tra- dições de Moisés como um visionário têm provavelmente suportado uma transformação similar a que é exemplificada em Filo.

A posição de Attridge é importante no sentido de ser o contraste entre a po- sição que se está tentando assumir nesta seção. Ele não dá maiores explicações sobre as razões que o levaram a vincular a declaração de Hebreus com as tradições sobre o Moisés visionário. Simplesmente sugere que esta é uma possibilidade plau- sível, com a implicação de que o predicativo divino da invisibilidade deve ser consi- derado a partir da compreensão de Moisés e não de Deus. Na saída do Egito, Moi- sés declara que o Senhor é visto face a face (Nm 14,14), indicando a proximidade de Deus em relação ao povo. Todavia, embora o texto de 11,27 tenha como base o Antigo Testamento (cf. Ex 11 e 12), há uma tradição neotestamentária possível de ser conhecida pelo autor, que seria então a sua base. Em Rm 1,20 o termo ocorre para se referir aos atributos invisíveis de Deus que podem ser percebidos mediantes as coisas criadas; em Cl 1,15, ao falar sobre Cristo, afirma o escritor que ele é “a imagem do Deus invisível” e que nele foram criadas todas as coisas visíveis e invisí- veis (Cl 1,16); em 1Tm 1,17, a divindade é descrita como Rei dos séculos, imortal, invisível, único Deus e 1Tm 6,16 acrescenta-se que Deus é aquele “a quem nenhum dos homens tem visto nem pode ver”. Em 11,26 o autor afirma que Moisés teve a percepção de que as melhores riquezas não estavam no Egito, mas sim em Cristo. Por tal, alguns eruditos crêem que a designação „invisível‟ deve se referir a Cristo e não a Deus. O argumento seria o de que Cristo não é invisível ao que tem fé.

Todavia, parece que a declaração que designa o invisível se coaduna com as demais referências no Novo Testamento sobre tal predicado divino, referindo-se a Deus. Se assim for, está-se diante de uma declaração diferente de uma analogia ou símbolo. Não há referenciais materiais invisíveis; tampouco se concebem analogias

da alma como sendo invisíveis. Esta declaração posiciona Deus numa categoria me- tafísica, que pode ser vista como uma declaração literal negativa atribuída a Deus. Deus estaria fora do alcance da percepção humana que se pode obter através da visão. O termo „negativa‟ não é necessariamente depreciativo, mesmo quando se refere ao divino. Uma declaração literal negativa apenas nega um aspecto, que no presente caso é uma negação da visibilidade de Deus: Ele não pode ser visto.

Qualquer que seja o sentido da declaração sobre a invisibilidade de Deus, evidencia-se o paradoxo: como é possível ver o que não pode ser visto? A conclusão mais adequada seria a de inacessibilidade a Deus, pelo menos através da visão. No entanto, o paradoxo pode ser desfeito se, de fato, aceitar-se literalmente a declara- ção como sendo verdadeira, pois a expressão „Deus invisível‟ sugere uma compara- ção com qualquer divindade visível. O relacionamento com o „Deus invisível‟ teria que ser forçosamente diferente de uma divindade visível. Talvez os pressupostos teológicos do autor aceitem declarações como “Deus é Espírito, e é necessário que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4,24), bem como a encar- nação do Filho (Jo 1,18) e sua missão entre os seres humanos (Jo 14,9). Conquanto não haja esse tipo de declaração em Hebreus, os destinatários são desafiados a crerem no Deus invisível mediante a fé. A própria definição de fé proclamada pelo autor traz consigo o elemento invisível (11,1) como parte integrante de sua realidade. Assim, ao invés de ser uma característica divina que pudesse fazer separação defi- nitiva entre Deus e o ser humano, este ser humano é desafiado a se aproximar de Deus com fé, crendo que ele existe (11,6), ainda que não o veja.

2.3.3.2 Deus é imutável

Uma possível declaração indireta sobre o predicativo divino da imutabilidade se encontra em 6,17: evn w-| perisso,teron boulo,menoj o` qeo.j evpidei/xai toi/j klhrono,moij th/j evpaggeli,aj to. avmeta,qeton th/j boulh/j auvtou/ evmesi,teusen o[rkw “Por isso, Deus, quan- do quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, se interpôs com juramento”. A expressão chave é to. avmeta,qeton th/j boulh/j auvtou/ “a imutabilidade do seu propósito”. Somente o autor de Hebreus usa avmeta,qetoj no Novo Testamento, que ocorre também em 6,18. As duas coisas imutáveis a que o autor se refere em 6,18 são ditas em 6,17, a saber, a promessa e o juramento de Deus, ou a natureza de Deus e seu juramento, que podem ser vistas como um só assunto: a promessa de Deus, posta sob a forma de juramento, não muda. Dizer que

a promessa de Deus não muda é referir-se a algum aspecto da pessoa de Deus que não muda.

A que promessa e juramento o autor se refere? À promessa que fora feita a Abrão, que em Hebreus é somente subentendida em 6,13 e o juramento é exposto em 6,14. Mas, conforme aqui se entende, promessa e juramento tratam do mesmo tema. O fato de Abrão receber de Deus a promessa de bênçãos e multiplicação, co- aduna-se com a promessa geral de entrada no descanso de Deus. É esta promessa que é tida como imutável. Não há declarações generalizadas em Hebreus sobre a imutabilidade de Deus. Deus é imutável em alguns aspectos, dentre os quais o fato de fazer cumprir a sua promessa de entrada no seu descanso. Por exemplo, quando se falou dos atos comunicativos de Deus, assumiu-se ali que a perspectiva divina mudara ao longo da história, pois Deus estava a falar de uma nova maneira, median- te o Filho (1,1.2). Logo, no aspecto comunicativo, o autor apresenta Deus como mu- tável, sem que tal mutabilidade implique em deficiência ou fraqueza de Deus. Tam- bém, apresenta-nos o autor uma mudança de Deus quanto aos herdeiros da pro- messa. Visto que os primeiros herdeiros da promessa de entrada no descanso divino não puderam entrar por causa da incredulidade (3,19), Deus mesmo proporcionou um novo meio para que novos herdeiros desfrutassem do seu descanso: os que têm crido nas boas novas (4,1-3). A implicação, pois, é que o termo avmeta,qetoj „imutabili- dade‟ é usado em 6,17.18 de maneira não-genérica, referindo especificamente ao empenho da palavra de Deus na promessa posta sob forma de juramento. Sendo mais incisivo em sua convicção sobre essa imutabilidade divina, o autor afirma que nesse aspecto é impossível que Deus minta (6,18).18 Não há aqui qualquer intenção do autor em dizer que Deus pode mentir em outras situações. O que ocorre é um vínculo indelével entre um aspecto imutável da pessoa de Deus e o seu caráter dian- te daquilo que ele mesmo disse. De modo que é possível que o autor confirme a mu- tabilidade de Deus em aspectos como a sua receptividade às ações humanas. Para que não haja uma contradição, é igualmente possível que o autor conceba a imutabi- lidade da vontade de Deus em alguns aspectos condizentes com a própria natureza divina, e não genérica ou absolutamente.

18

Em Tt 1,2 ocorre o particípio atributivo para Deus: o` avyeudh.j qeo.j “Deus, que não pode mentir”, numa referência à esperança da vida eterna.

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