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O POVO NA TV COMO ESPAÇO DE REINVENÇÃO DO

3 CAPÍTULO II EXCLUSÃO SOCIAL E VIOLÊNCIA O HOMEM COMUM

3.5 O POVO NA TV COMO ESPAÇO DE REINVENÇÃO DO

O espaço público mediático disponibilizado pelo Programa Povo na TV ao homem comum seja na condição de participante e ator do processo seja na condição de telespectador tornou-se um espaço em que ele reelaborou e reinventou o seu cotidiano. Michel de Certeau (1994) defende em seu livro “A invenção do cotidiano. Artes de fazer” que o homem ordinário escapa silenciosamente à conformação estabelecida pelos mecanismos de dominação e de organização da vida social – que atribui um lugar, um papel e produtos a consumir.

Ele inventa o cotidiano graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas de resistência pelas quais ele altera os objetos e códigos, se reapropria do espaço e do uso a seu jeito. Voltas e atalhos, maneiras de dar golpes, astúcias de caçadores, mobilidades, histórias e jogos de palavras, mil práticas inventivas provam a quem tem olhos para ver, que a multidão sem qualidades não é obediente e passiva, mas abre o próprio caminho no uso de produtos impostos, numa ampla liberdade em que cada um procura viver do melhor modo possível a ordem social e a violência das coisas.

Certeau (1994, p.38) quer esclarecer as “combinatórias operações” que compõem também os modelos de uma “cultura” que se esconde sob o nome de

“consumidores”, o estado de dominados, mas ressaltando que não quer dizer passivos ou dóceis. “O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. Diante da necessidade de entender as representações sociais, ou os comportamentos de uma sociedade, pessoas presentes e participantes (emissores) e telespectadores (receptores) do Programa Povo na TV, Certeau (Ibidem) alerta para a necessidade de que seja feita uma análise das imagens difundidas pela televisão (representações) e do tempo passado em frente ao aparelho (comportamento), que deve ser acompanhada pelo estudo daquilo que o consumidor cultural “fabrica” durante essas horas e com essas imagens.

A “fabricação” que se quer detectar é uma produção, uma poética – mas escondida, porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas de “produção” (televisiva, urbanística, comercial, etc.) e porque a extensão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa aos “consumidores” um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem economicamente dominante.

Certeau (Ibidem, p.41) ressalta os modos de proceder de a criatividade cotidiana contestar em alguns aspectos a inevitabilidade e submissão do homem comum ao deslocamento da força e poder do Estado para as relações e a microfísica de poder preconizados na obra de Michel Foucault “Vigiar e Punir”. Foucault apud Certeau (Ibidem) substitui a análise dos aparelhos que exercem o poder (das instituições deslocalizadas, expansionistas, repressivas e legais) pela dos “dispositivos” que vampirizam as instituições e reorganizam clandestinamente o funcionamento do poder. São procedimentos técnicos “minúsculos” atuando sobre e com detalhes, redistribuindo o espaço de maneira a transformá-lo no operador de uma vigilância generalizada.

Esta “microfísica do poder” privilegia o aparelho produtor da disciplina ainda que na “educação” ela ponha em evidência o sistema de uma “repressão” e mostre como por trás dos bastidores, tecnologias mudas determinam ou curto-circuitam as encenações institucionais. E adverte:

Se for verdade que por toda parte se estende e se precisa à rede de “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou dominados?) dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política.

Segundo Certeau (Ibidem), essas “maneiras de fazer” constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural. Elas colocam questões análogas e contrárias às abordadas no livro de Foucault. São análogas porque distinguem as operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de “táticas” articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano, como por exemplo, quando o morador de bairros carentes não consegue pelas vias normais burocráticas chegar ao poder público para pedir melhorias para o bairro e buscam e conseguem o confronto pela mídia, por mecanismos alternativos e práticas do cotidiano.

São contrárias por não haver mais necessidade de uso da violência da ordem que se transforma em tecnologia disciplinar, mas de exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos presos agora nas redes de “vigilância”. (Ibidem)

De acordo com Certeau (Ibidem, p. 48), da televisão ao jornal, da publicidade a todas as “epifanias” mercadológicas, “a nossa sociedade canceriza a vista, mede toda a realidade por sua capacidade de mostrar ou de se mostrar e transforma as comunicações em viagens do olhar. É uma epopéia do olho e da pulsão de ler”.

Certeau (Ibidem, p.76) avisa que na relação efetiva das forças na luta imemorial entre “poderosos” e “pobres” existente no Brasil, “o discurso de lucidez trapaceia com palavras falsificadas” e também com proibição de dizer, para mostrar que em toda a parte uma injustiça – não só a dos pobres estabelecidos, mas de modo mais profundo, a da história que reconhecia nesta injustiça uma ordem das coisas, em que nada autorizava a esperar a mudança. Não concedia nenhuma legitimidade a esse estado de fato. Pelo contrário:

Embora sendo uma realidade sempre repetida, esta relação de forças nem por isso se tornava mais aceitável como uma lei, mesmo sendo sempre um fato. Tomada numa dependência, obrigada a obedecer aos fatos, essa convicção opunha, no entanto uma radical recusa ao estatuto da ordem que se impõe como natural e um protesto ético contra sua fatalidade.

Certeau (Ibidem, p.78) aborda o uso popular da religião que modifica o funcionamento da ordem estabelecida. Uma maneira de falar essa linguagem recebida a transforma em “canto de resistência, sem que essa metamorfose interna comprometa a sinceridade com a qual pode ser acreditada, em a lucidez com a qual, aliás, se vêem as lutas e desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida”. E, acrescenta:

Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas. Tem que “fazer com”. Nesses estratagemas de combatentes existe uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras do espaço opressor. Destreza tática e alegria de uma tecnicidade. [...] Uma maestria que tem seus peritos e sua estética se exerce no labirinto dos poderes, recria sem cessar opacidade e ambigüidade – cantos de sombras e astúcias – no universo da transparência tecnocrática, aí se perde e aí se encontra sem precisar assumir a gestão de uma totalidade. Até o campo da desventura aí é refeito por essa combinação do manipular e do gozar.

Para Bourdieu apud Certeau (Ibidem, p.126) não é a aquisição ou a aprendizagem (fenômenos visíveis), mas o adquirido, o habitus22, que desempenha papel central,

uma vez que ele sustenta a explicação de uma sociedade pelas estruturas. “Mas isso tem um preço. Para supor que o suporte tenha tamanha estabilidade é necessário que seja incontrolável, invisível”. Certeau define que o interesse de Bourdieu está na gênese, no “modo de geração das práticas”. Ele não se interessa como Foucault pelo que produzem, mas por aquilo que as produz.

Dos “estudos etnológicos” que as examinariam para a sociologia que teoriza sobre elas há, portanto, um deslocamento, que remove o discurso para o

habitus, cujos sinônimos (exis, ethos, modus operandi, 23senso comum”,

“natureza segunda” etc.) definições e justificações se multiplicam.

22A idéia do termo de exis (

habitus) vem de Marcel Mauss e Panofsky em textos célebres citados por

Bourdieu, que tinha sublinhado a importância teórica e prática do habitus na sociedade medieval

(CERTEAU, 1994). 23 Sinônimos de

Bourdieu apud Certeau (Ibidem, p.127) esclarece que o habitus se torna um lugar

dogmático, caso se entenda por dogma a afirmação de um “real” de que o discurso necessita para ser totalizante.

Certeau (1994, p.286) reconhece que o grande silêncio das coisas muda-se no seu contrário através da mídia. Para ele, a fabricação de simulacros fornece o meio de produzir crentes e, portanto, praticantes. Esta instituição do real é a forma mais visível de nossa dogmática contemporânea.

Código anônimo, a informação inerva e satura o corpo social. Desde a manhã até a noite, sem pausa, histórias povoam ruas e os prédios. Articulam nossas existências ensinando-nos o que elas devem ser. “Cobrem o acontecimento”, ou seja, fazem deles as nossas legendas (legenda: aquilo que se deve ler e dizer). Apanhado desde o momento em que acorda pelo rádio [a voz é a lei], o ouvinte anda o dia inteiro pela floresta de narratividades jornalísticas, publicitárias, televisionadas, que, de noite, ainda introduzem as suas últimas mensagens sob as portas do sono. Mais que o Deus narrado antigamente pelos teólogos, essas histórias desempenham uma função de providência e de predestinação: elas organizam de antemão nossos trabalhos, nossas festas e até nossos sonhos.

Segundo Certeau (Ibidem) nossa sociedade tornou-se uma sociedade recitada, isto é, no triplo sentido: é definida ao mesmo tempo por relatos (as fábulas de nossas publicidades e de nossas informações), por suas citações e por sua interminável recitação.

Esses relatos têm o duplo e estranho poder de mudar o ver num crer, e de fabricar real com aparências. Dupla inversão. De um lado, a modernidade, outrora nascida de uma vontade observadora que lutava contra a credulidade e se fundava num contrato entre a vista e o real, transforma agora essa relação e deixa ver precisamente o que se deve crer. A ficção define o campo, o estatuo e os objetos de visão. Assim funcionam os mass media 24, a publicidade ou a representação política. Sem dúvida, também

ontem havia ficção, mas em lugares circunscritos, estéticos, teatrais. (...) Hoje, a ficção pretende presentificar o real, falar em nome dos fatos e, portanto, fazer assumir como referencial a semelhança que produz. E os destinatários (e compradores) dessas legendas não estão mais obrigados a crer no que não vêem (posição tradicional), mas a crer no que vêem (posição contemporânea).

24 Palavra de origem inglesa que significa meios de comunicação de massa (Wolf, 1999, p.13). (...) Os mass media constituem, simultaneamente, um importante setor industrial, um universo simbólico objeto de um consumo maciço, um investimento tecnológico em contínua expansão, uma experiência individual quotidiana, um terreno de confronto político, um sistema de intervenção cultural e de agregação social, uma maneira de passar o tempo, etc. (Wolf, 1999).

Para Certeau (Ibidem) essa reviravolta no terreno onde se desenvolvem as crenças resulta numa mudança nos paradigmas do saber. “A invisibilidade do real, postulado antigo, cedeu lugar à sua visibilidade”. Por isso, a cena sócio-cultural da modernidade remete a um “mito”. Define o referente social por sua visibilidade e sua representatividade científica ou política, articula-se nesse novo postulado “crer que o real é visível” a possibilidade de nossos saberes, de nossas observações, de nossas provas e nossas práticas.

O “simulacro” contemporâneo é, em suma, a localização derradeira do crer – uma vez que se abandonou a hipótese que esperava que as águas de um oceano visível e fazer delas os efeitos, os sinais decodificados ou os reflexos enganadores de sua presença. Torna-se um simulacro a relação do visível com o real quando desmorona o postulado de uma imensidão invisível do Ser (ou seres), escondido por trás das aparências. (Ibidem, p. 289)

Certeau (Ibidem) admite que em face dos relatos imaginários que agora são apenas “ficções”, produções visíveis e legíveis, o espectador-observador sabe muito bem que se trata de “aparências”, resultados de manipulações. O “real” é aquilo que, em cada lugar a referência a um outro faz acreditar.

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