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Superando a burocracia através da mídia

2 CAPÍTULO I PODER SIMBÓLICO, ENCENAÇÃO E O PAPEL DO

2.2 CENÁRIO POLÍTICO E SOCIOECONÔMICO DO PROGRAMA POVO NA

2.2.3 Superando a burocracia através da mídia

A principal característica desse programa foi funcionar como espaço público democrático onde o cidadão comum tinha voz e podia apresentar as suas demandas populares e obter resposta por parte das autoridades, em discussão ao vivo. Esse diálogo com as autoridades, em condições normais, seria dificultado pela burocracia dos órgãos públicos. Hanna Arendt (1994, p.33) adverte para os riscos da burocracia, que ela denomina de domínio de ninguém:

Hoje poderíamos acrescentar à última e mais formidável forma de tal dominação: a burocracia, ou o domínio de um sistema intrincado de departamentos nos quais nenhum homem, nem um único nem os melhores, nem a maioria nem a minoria, pode ser tomado como responsável, e que

deveria mais propriamente chamar-se domínio de Ninguém. (se, de acordo com o pensamento político tradicional, identificarmos a tirania com o governo que não presta contas a respeito de si mesmo, então o domínio de Ninguém é claramente o mais tirânico de todos, pois aí não há ninguém a quem se possa questionar para que responda pelo que está sendo feito. É este estado das coisas, que torna impossíveis a localização da responsabilidade e a identificação do inimigo, que está entre as mais potentes causas da rebelde inquietude espraiada pelo mundo de hoje, da sua natureza caótica, bem como da sua perigosa tendência para escapar ao controle e agir desesperadamente.)

Arendt (1994, p.59) alerta para o risco da burocratização da vida pública atrair a violência. É que na burocracia desenvolvida não há ninguém a quem se questionar, apresentar queixas ou exercer as pressões do poder. “A burocracia é a forma de governo na qual todas as pessoas estão privadas da liberdade política, do poder de agir; pois o domínio de “Ninguém” não é um não domínio, e onde todos são igualmente impotentes temos uma tirania sem tirano”. E, acrescenta:

[...] A transformação do governo em administração, ou das repúblicas em burocracias, e o desastroso encolhimento da esfera pública que as acompanhou têm uma longa e complicada história através da época moderna; e este processo tem sido consideravelmente acelerado durante os últimos cem anos, por meio do surgimento das burocracias partidárias. (Ibidem)

2.2.4 Povo na TV: uma praça pública midiática

Em contraponto ao privado, à esfera doméstica, Habermas (1984, p.14) destaca a esfera pública – que era mais evidente para os gregos como um “reino da liberdade e da continuidade”.

Só à luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se torna visível a todos. Na conversação dos cidadãos entre si é que as coisas se verbalizam e se configuram; na disputa dos pares entre si, os melhores se destacam e conquistam a sal essência: a imortalidade da fama(....) a

pólis12 oferece campo livre para a distinção honorífica: ainda que os

12 De acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1986) significa no idioma grego “cidade”.

cidadãos transitem como iguais entre iguais (homoioi13), cada um procura,

no entanto, destacar-se (aristoiein14).

Habermas (1984, p.152) afirma que a esfera pública burguesa surgiu historicamente no contexto da sociedade separada do Estado; “o social podia constituir-se numa esfera própria à medida que a reprodução assumia, por um lado, formas privadas, mas por outro, como setor privado em seu conjunto, passou a ter relevância pública”.

O verdadeiro espaço público para Habermas não foi exercido pelo grego na ágora 15porque só o cidadão grego podia exercer a política na res-pública16, uma vez que a

sociedade ateniense era estratificada e os estrangeiros, escravos e mulheres não podiam participar e exercer a retórica e o poder da argumentação, praticar a política. O verdadeiro espaço público foi exercido nos cafés franceses do final da idade média quando a ascendente burguesia podia se igualar à aristocracia pelo poder do diálogo e da retórica. As diferenças sociais desapareciam nesse momento.

Entretanto, Habermas alerta para os interesses burgueses. Na modernidade, Habermas (Ibidem, p.17) aponta uma tendência à decadência da esfera pública. “Enquanto a sua esfera se amplia cada vez mais grandiosamente, a sua função passa a ter cada vez menos força”.

Marx apud Habermas (1984, p.149-150) denuncia a opinião pública como falsa consciência. Segundo ele, ela esconde de si mesma o seu verdadeiro caráter de

13Citação em Bourdieu (1997).

14 Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1986) é uma palavra grega que significa um tipo de organização social e política em que o governo é monopolizado por um número reduzido de pessoas privilegiadas não raro por herança. Classe de pessoas; fidalguia; nobreza. Grupo de pessoas que se distinguem pelo saber e merecimento real, casta, nata.

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Ágora de acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1986) significa

praça das antigas cidades gregas, na qual se fazia o mercado e onde se reuniam, muitas vezes, as assembléias do povo.

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Res-pública é uma palavra de origem latina, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua

Portuguesa (FERREIRA, 1986), que significa “coisa pública”; organização política de um Estado com vista a servir à coisa pública, ao interesse comum. Sistema de governo em que um ou vários indivíduos eleitos pelo povo exercem o poder supremo por tempo determinado.

máscara do interesse burguês. Em decorrência disso, o sistema capitalista, deixando-se que ele ocorra, por si mesmo, não pode reproduzir-se sem crises, como uma “ordem natural”.

A emancipação da sociedade civil burguesa em relação à regulamentação governamental administrativa não leva a algo como a uma neutralização do poder na interação das pessoas entre si; ao invés disso, nas formas da liberdade contratual burguesa constituem-se novas relações de poder, a começar pelas relações entre proprietários e assalariados. (Ibidem, p. 151)

Para Habermas (1984, p.150-151) a separação entre Estado e sociedade corresponde à cisão do ser humano em homem público e homem privado. Mas “como bourgeois17, o homem privado tampouco é simplesmente homme18, já que

ele, para poder realmente assumir interesses cívicos, precisaria “sair de sua realidade burguesa, abstrair-se dela, retirar-se de toda essa organização para sua individualidade”. Habermas adverte para evitar confusão quanto ao conceito de espaço público:

A concepção, segundo a qual as pessoas privadas reunidas num público, depois de argumentos e contra-argumentos, concordem, não pode, portanto, ser confundida com o justo e correto: quebra-se também a terceira identificação, a central identificação de opinião pública com razão. Enquanto, na reprodução da vida social, relações de poder não tiverem sido efetivamente neutralizadas e a própria sociedade civil ainda basear-se em poder, nenhum estado de direito pode ser construído sobre a sua base, substituindo autoridade política por autoridade racional. Assim a dissolução de dominação no seio do público pensante não é a pretensa dissolução de dominação política de modo geral, mas a sua perpetuação em outra forma – e o Estado de direito burguês, inclusive a esfera pública como princípio central de sua organização, é mera ideologia. Exatamente a separação entre o setor privado e o setor público impede, nesse estágio do capitalismo, aquilo que a idéia de esfera pública civil promete. (Ibidem).

Para Habermas (Ibidem), a esfera pública torna-se uma corte, em que o prestígio público é encenado, em vez de nele se desenvolver a crítica. A publicidade teve que

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Bourgeois, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1986)

significa classe social que surgiu na Europa em fins da Idade Média, com desenvolvimento econômico e aparecimento das cidades, e que vai, gradativamente, infiltrando-se na aristocracia, e passa a dominar a vida política, social e econômica a partir da Revolução Francesa, firmando-se no decorrer do séc. XIX. Com o tempo veio a diversificar-se em alta burguesia, detentora dos meios de produção, e média e pequena burguesia (no séc. XX designadas como classe média), que engloba os que exercem profissões liberais e todos aqueles cujos interesses estão ligados, de uma forma ou de outra, às altas esferas econômicas e às classes dirigentes.

ser imposta contra a política do segredo praticada pelos monarcas: aquela “publicidade” procurava submeter a pessoa ou a questão ao julgamento público e tornava as decisões políticas sujeitas à revisão perante à instância da opinião pública. Hoje, ao contrário, a publicidade se impõe com a ajuda de uma secreta política de interesses.

A expressão “trabalhar a esfera pública” já revela que é preciso estabelecer uma esfera pública que antes era dada pela posição dos representantes e que era assegurada pelo simbolismo garantido por tradição. “A esfera pública precisa ser fabricada, ela já não há mais”. Altemann apud Habermas (1984, p.235) apelidou esse processo de “comunificação”.

A eficácia publicitária imediata não se esgota no referido efeito propagandístico descomercializado de uma aura of good will19, que produz

uma disposição à concordância. Essa publicidade passa agora de uma influência sobre decisões dos consumidores também para a pressão política, pois mobiliza um inarticulado potencial pré-disposição à concordância que, caso necessário, também pode ser traduzida numa aclamação definida de modo publicitário. Nessa medida, a nova esfera pública continua ainda tendo por referência à burguesa, enquanto as formas institucionais de legitimação permanecem em vigor; mesmo a publicidade de tipo demonstrativo desenvolve eficácia política só à medida que torna manifesto um capital de potenciais decisões eleitorais ou quando efetivamente pode resolver problemas.

Habermas (1984, p.258) destaca os riscos da manipulação da esfera pública.

Um público de cidadãos desintegrado enquanto público é de tal maneira mediatizado por meios publicitários que, por um lado, pode ser chamado a legitimar acordos políticos sem que, por outro lado, ele seja capaz de participar de decisões efetivas ou até mesmo participar.

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As teorias do valor investigam como os povos positivamente e negativamente utilizam coisas e

conceitos do valor e as razões porque fazem suas avaliações. O espaço de aplicações de avaliações se legitima através do mundo social. Além de Jürgen Habermas, utilizam-se em seus estudos sociológicos das teorias do valor (good will) os teóricos ocidentais Weber, Karl Marx e Emile Durkheim. No sistema de valor de Weber (CARDOSO e VAINFAS(Org.), 1997) todos estão impregnados de cultura, ou em outros termos de valores e de significados. As ciências sociais são o encontro de uma dupla de valoração: a dos pesquisadores e a da sociedade (ou grupo) pesquisado. (...) a escolha de um tema de pesquisa é, para Weber, valorativa, pautada pelos valores culturais que o pesquisador partilha com sua sociedade e seu tempo, quanto pelos valores específicos aos quais adere – valores científicos, morais, éticos, etc.

É preciso se avaliar até que ponto uma opinião pública provém da esfera pública interna à organização de um público, constituído por associados, que se comunica com uma esfera pública externa e se constitui no intercâmbio jornalístico-publicitário, através das mídias e entre organizações sociais e instituições estatais. (Ibidem).

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