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Práticas e representações da luta pela terra: os sem-terra das fazendas São Bento e Santa Clara

ASSENTAMENTOS SÃO BENTO E CHE GUEVARA/SANTA CLARA

4.1. Práticas e representações da luta pela terra: os sem-terra das fazendas São Bento e Santa Clara

Captar no pretérito a centelha da esperança só é dado ao historiador que estiver convicto do seguinte: se o inimigo vencer, nem mesmo os mortos estarão salvos dele. E esse inimigo ainda não parou de vencer. (BENJAMIN, 1991, p.156)

As práticas e representações dos camponeses sem-terra, em suas primeiras experiências de luta nos campos do Pontal, evidenciam o modo como foram construindo a sua história, permeada por ações visando a conquista da terra, nela permanecer, assim como pela conquista de novos direitos.

Compreendida como a expressão desse processo, a luta pela terra e, conseqüentemente, a “terra”, perpassa a preocupação de todo o trabalho, por trazer consigo a busca do enraizamento1 pelas famílias sem-terra, e a possibilidade de ser e de permanecer camponês, por meio da conquista da “terra de trabalho”. Porém, associando-se a esse desejo, desponta ainda a luta por novos direitos, o que quer dizer transformações de natureza objetiva e subjetiva, evidenciadas tanto no modo de vida e de trabalho na terra, quanto nas práticas e representações veiculadas pela organização no meio social, político, econômico, cultural, etc em que os camponeses estiveram (e estão) inseridos. Sendo assim, fez-se necessário apreender a memória das lutas camponesas desde o tempo do acampamento, visando compreendê-la como substrato para a análise da história do MST na região.

Godoi, ao tratar da ocupação e reprodução camponesa no sertão de Piauí, a partir do estudo dos povoados de Rua Velha, Barreiro Grande, Barreirinho e Zabelê, busca, tomando como referência a memória dos camponeses, compreender a história de ocupação de suas terras. Algumas considerações apontadas por essa autora ilustram o modo como objetivei trabalhar as questões presentes neste capítulo, e no percurso de toda a pesquisa:

1 Conforme WEIL: “O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma

humana e uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro”. (apud BOSI, 1987, p.16)

Propomos, portanto, estudar o conjunto de práticas que objetivam o modo de vida camponês, no caso em questão camponeses do sertão, sem nos esquecermos que tais práticas são permeadas pelo universo simbólico dos sujeitos, pelas categorias e regras mediante as quais pensam e vivem sua existência. As percepções e ações dos sujeitos estão inscritas nas condições sociais e historicamente situadas e ‘funcionam’ em nível mais profundo do que a realidade passível de apreensão imediata - é preciso dar à luz as práticas. (1999, p.27) (grifos da autora)

As reuniões de base que eram realizadas nos bairros e periferias das pequenas cidades, sob responsabilidade do setor de Frente de Massa, desenvolvidas pelos vários municípios do Pontal e de cidades vizinhas localizadas no Paraná, tais como Itaguajé, Paranapoema, Paranacity, Santa Inês, Santo Inácio, dentre outras, foram, conforme os entrevistados, o impulso para a organização das inúmeras ocupações da fazenda São Bento, bem como para a continuidade na luta, por meio de novas ocupações. Alguns observam ainda que o contato inicial com o MST deu-se em vista da veiculação de suas práticas pelos meios de comunicação, como o rádio e a televisão, quando viram a possibilidade de “conquistar o seu pedaço de chão”. Observo também as influências dos que já haviam participado de outras ocupações, desde a ocorrida na fazenda Nova Pontal para a “chamada” de novos sujeitos ao acampamento, inclusive parentes e vizinhos.

O histórico das inúmeras ocupações, dos acampamentos2, dos despejos, da “ação

motorizada”, da solidariedade tecida por entre os barracos, da matança de bois e queima de tratores na fazenda Estrela Dalva, dentre outras práticas e representações vividas pelos sem- terra no processo de ocupação das fazendas São Bento e Santa Clara, e das que se seguiram na região, traz consigo marcos da memória a explicitar a violência vivida pelas famílias no processo de lutas, mas também a resistência por elas tecida para a permanência na luta.

Objetiva-se neste capítulo, semelhante ao anterior, pontuar esses marcos, vistos como expressões do que se viveu (e se vive) em vista das condições materiais, associadas ao que se sonhara (e se sonha) no tempo presente. Daí o elemento da mística, apreendido nos relatos, tornar-se revelador da história de lutas do MST, de sonhos e de esperanças, de derrotas e de vitórias, como se pontuará no capítulo final.

2 Segundo TARELHO (1988, p.188): “Do mesmo modo que ocupar, acampar é uma decisão estratégica.

Acampar é manter a ‘situação de fato’ criada com a ocupação: é obrigar o Estado a continuar intervindo, é mostrar à sociedade que a reforma agrária é uma questão de justiça social. Acampar também é tomar a ofensiva da luta, pois deixa o governo numa situação vulnerável perante a opinião pública. Nesse sentido, acampar também é uma forma de pressionar o Estado a tomar medidas para viabilizar as desapropriações e a realização da reforma agrária. Em suma, acampar assim como ocupar é colocar em prática o aprendizado de que a terra não se ganha, se conquista”.

Numa história marcada pela necessidade da intermitente partida, o retorno a terra, de modo a diferenciar-lhes a vida do tempo de outrora, fazia-se presente no horizonte dos camponeses, logo em suas primeiras práticas em meio ao MST no município de Mirante do Paranapanema. O fato de terem ocorrido vinte e dois despejos na fazenda São Bento expressa essa questão. Não objetivo discuti-los passo a passo, mas, por meio das narrativas, buscar evidenciar as representações que os homens e mulheres trazem consigo de alguns desses momentos, associadas às práticas que as fundaram. Sem perder de vista ainda a dimensão dessas práticas e representações para a organização do Movimento.

Por terem como meta a conquista da terra, no intuito de agilizar o processo de desapropriação da fazenda São Bento3, as famílias sem-terra oriundas das lutas da Nova Pontal ocuparam, em março de 1991, parte desta fazenda que estava em nome de Antonio Sandoval Neto, ex-prefeito de Presidente Prudente. Discorrendo sobre o modo como se deu a ocupação da São Bento, assinala Bernardo M. Fernandes que:

Depois de 8 meses acampadas nas margens da Rodovia SP-613, no município de Teodoro Sampaio, as famílias do acampamento João Batista da Silva ocuparam, em 23/03/91, uma área de 2.872 hectares da fazenda São Bento no município de Mirante do Paranapanema. A fazenda tem 5.200 hectares e estava sob o domínio de Antonio Sandoval Neto, famoso grileiro da região. Os 2.872 hectares desse imóvel havia sido classificado pelo INCRA como latifúndio por exploração em 25/11/86 (Decreto número 94.161). A partir do dia 23, mais 24 famílias de Mirante e de municípios vizinhos também acamparam na São Bento. (1994, p.137)

Além dessa fazenda, havia outras de propriedade de Antonio Sandoval Neto, como a Santo Antonio, Alvorada e Santo Emílio, todas com uma extensão de 600 alqueires e destinadas à criação de gado4. Na verdade, essas áreas acabavam incorporando-se a fazenda São Bento, já que não havia divisas a lhes separarem. No processo de assentamento transformaram-se em quatro setores, os quais serão discutidos neste capítulo.

Seu Alcides, narrando como se deu essa primeira ocupação, observa que para essa ação, as lideranças Deise, Estevão, Davi, Bil, Cláudio “[...] vieram e fizeram vistoria na área tal”, tendo delineado três áreas. Devido à existência de água numa das propriedades, no caso, o rio Pirapó, priorizou-se a realização da ocupação na fazenda São Bento. Narra esse camponês que para a primeira ação no município de Mirante:

3 Observa ALMEIDA, R. A. (1993, p.52) que: “Com efeito, em 31/03/1987, o Presidente da República assinou o

Decreto 94.161, declarando de interesse social para fins de Reforma Agrária, uma parte da Fazenda São Bento, que corresponde a 2.872,50 ha”.

4 Sobre essa questão, ver: SEM TERRAS invadem fazenda em Mirante. O Imparcial. Presidente Prudente,

Veio os caminhão e nós carregamos as coisas no caminhão, cerca de 25 caminhão trucado, carregamos e saímos de lá da gleba XV e viemos pra cá pra São Bento que é ali na ponte do Pirapó, onde foi a ocupação, né? E na época esse asfalto ali era estrada de terra, né? Então aí encostamos, mas na hora que nós arrebentamos o cadeado que entramos pra dentro, aí o tiroteio começou, aí o fazendeiro percebeu o movimento, né? De lá começou a atirar, né? Atirar e [...] aí nós pediu pro pessoal abaixar, o pessoal abaixou na grama, tava muito alto. E aí eles cansaram de atirar e parou, isso era cerca de 5 horas da manhã, é nós descarregamos os caminhão por que nós tinha que buscar mais família, né? E terminamos de descarregar os caminhão, mandamos de volta os caminhão, foram buscar o restante que ficou, e aí então os que já tinha chegado começaram a fazer os barracos, né? Começaram a fazer os barracos, começaram a furar os poços, tal [...] se ajeitar o acampamento, né?5

Numa fotografia veiculada pelo jornal “O Imparcial”, de Presidente Prudente, vê- se que nessa primeira ocupação, logo na entrada da área, havia uma placa colocada pelas famílias sem-terra, logo acima da bandeira do MST, com as seguintes palavras de ordem: “Acamp. ‘João Batista da Silva’, Pontal; Aqui lutamos pela terra; Sem Reforma Agrária não há democracia; Terra de Deus, terra de irmãos e Terra para quem nela trabalha”.

Fonte: ACAMPADOS em compasso de espera enquanto a briga é no judicial. O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.242, 03/04/1991, p.9.

Como se pôde depreender no capítulo anterior, esses lemas (ou palavras de ordem) presentes na história do MST são significativos para se pensar a questão dos valores a

fundamentar as práticas e representações das lutas camponesas. A frase logo abaixo, “aqui lutamos pela terra”, indica, como busco fundamentar no percurso de todo o trabalho, a terra como o horizonte condutor das lutas, o que fez com que a maior parte dos camponeses adentrassem na luta do MST. A frase que segue, “sem reforma agrária não há democracia”, indica uma retomada de valores do que fez com que o Movimento nascesse como movimento e organização social em meio à chamada “Nova República”, explicitando as suas lutas também por novos direitos. Os dois últimos lemas, “terra de Deus, terra de irmãos” e “terra para quem nela trabalha”, remetem aos fundamentos cristãos originários das práticas de fins dos 70 e início de 80, inspiradas pelas CEBs e Pastorais, demonstrando a influência religiosa na constituição do Movimento Sem Terra.

Torna-se interessante observar o modo como estas palavras de ordem, expostas na placa, seguem uma lógica própria, distinta do contexto em que nasceram para se pensar a história do MST no cenário nacional. Se em 1991, momento em que se deu a primeira ocupação da fazenda São Bento, esse Movimento já havia definido como lema em seu II Congresso Nacional, realizado no ano de 1990, as palavras “ocupar, resistir e produzir”, destaca-se o fato de elas não se fazerem presentes na placa, como a lógica da organização poderia sugerir. Compreendo, então, que não existe uma gratuidade na forma de exposição dos lemas (ou palavras de ordem), já que seguem uma lógica, para os sem-terra, a indicar uma simbiose de influências, desde a concepção política da necessidade da democracia aliada à reforma agrária ao peso da religiosidade, da concepção cristã da terra.

Dois dias após a ocupação da fazenda São Bento, o juiz de Mirante do Paranapanema, conforme Bernardo M. Fernandes:

[...] concedeu a liminar de reintegração de posse a Antonio Sandoval Neto. Os advogados da CUT-SP e da CPT-SP tentaram impedir a concessão da liminar, alegando que o caso era de competência da Justiça Federal. O juiz negou o pedido dos advogados. Por outro lado, os trabalhadores acampados decidiram não desocupar a fazenda e iniciaram o tombamento da terra para o plantio do feijão. (1994, p.137)

Em vista da ordem de despejo, na tentativa de suspender a liminar de reintegração de posse dada à família de Antonio Sandoval Neto, no dia 8 de abril de 1991, “[...] líderes do movimento, chegavam na noite de ontem, vindos de várias partes do país, para mobilizar os trabalhadores, numa ação de resistência ao contingente policial”.6

Após 19 dias de ocupação, as famílias acampadas foram despejadas da fazenda São Bento e se encaminharam para a Estação Ferroviária Engenheiro Veras, de propriedade da Ferrovia Paulista SA (FEPASA), ao lado dessa fazenda:

A idéia inicial era de resistir até o fim, segundo os líderes do movimento, mas diante da força policial, formada por cerca de 300 homens, fortemente armados, 30 policiais femininas e todo aparato (canil, pelotão de choque, ambulância, corpo de bombeiros) toda a situação foi modificada [...].7

Os relatos relembram essa situação, momento em que, novamente despejados, fazia-se necessária a partida, mas decorrente das lutas que se configuravam, o retorno também se tornava manifesto para aqueles camponeses, como, por exemplo, na afirmativa do MST de que se não fosse resolvida a situação dos acampados, com o assentamento em 20 dias, retornariam à área.8

Uma das primeiras práticas realizadas pelos sem-terra no espaço das cidades no Pontal do Paranapanema deu-se em abril, em Mirante do Paranapanema, com a presença de em torno de 80 pessoas em frente ao Fórum da cidade, oriundas das 237 famílias sem-terra acampadas na fazenda São Bento, visando permanecerem na área em contraposição à ordem de reintegração de posse concedida ao fazendeiro.9

Em vista dessa primeira ocupação no município de Mirante, bem como das práticas empreendidas pelas famílias sem-terra, Luiz Antonio Fleury, governador do Estado, se dispôs, no dia 16 de abril, a receber uma comissão de representantes dos acampados. Porém, o encontro não se realizou.10

Para tentar amenizar as inúmeras carências vividas pelas famílias para a permanência nos acampamentos, elas contaram com o apoio de organizações sociais e diversos partidos de esquerda, a exemplo do envio de um caminhão de alimentos por militantes do PT, de São Bernardo do Campo, São Paulo.11

No dia 16 de maio, deu-se a reocupação da fazenda, como veicularam os jornais regionais. Observava-se que, conforme o MST: “[...] a ocupação é estratégica, sendo que no local a terra já está sendo tombada e preparada para o plantio do feijão de inverno. Cerca de

7FORÇA POLICIAL desestimula confronto com os sem-terra. O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.249,

10/04/1991, p.9.

8 Idem.

9 ACAMPADOS vão para frente do Fórum. O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.243, 09/04/1991, p.9. 10 ACAMPADOS se reúnem com Fleury. O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.253, 16/04/1991, p.9. 11 SEM TERRA mantêm encontro com Fleury. O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.253, 16/04/1991, p.9.

100 famílias ficarão acampadas no local, e o restante continuará na estação ferroviária, indo trabalhar durante o dia na lavoura iniciada”.12

Conforme outra matéria13, apresentada pelo mesmo jornal, a parte ocupada da

fazenda São Bento distava 50 metros do lugar em que as famílias haviam montado o acampamento na estação desativada Engenheiro Veras. Buscando evidenciar o conflito entre os representantes do MST para a organização dessa ação, chama a atenção a forma como o jornal refere-se à postura de David Pereira da Silva, conforme reportagem, um dos “líderes do movimento”, ameaçando a possibilidade de ocorrência de saques aos supermercados de Mirante do Paranapanema, no que João Pereira e José Rainha Jr confrontavam-se, enunciando que: “Esta não é a posição do MST, no qual eu respondo nesta situação”, conforme Rainha.14

Foram inúmeros os despejos sofridos pelas famílias acampadas tanto na fazenda São Bento, como em várias outras fazendas pelo município de Mirante, e por todo o Pontal, devido à posição das ações governamentais, expressa no descaso em resolver a situação dos conflitos agrários na região, tratando-os como caso de polícia, assim como pela intransigência dos latifundiários na defesa do que diziam ser suas propriedades.

A situação de conflitos vivida cotidianamente pelos sem-terra, e narrada a partir de suas memórias, desvela a forma como se desenhava a questão agrária na região, salientando-se os despejos como evidência e marco de memória da maior parte dos assentados ao expor como se desencadeavam essas ações.

Indagada sobre o que mais lhe marcou na trajetória de lutas, Dona Luzia conta que fora o despejo ocorrido nos 10 hectares – lugar onde se localiza, no tempo presente, o setor IV –, tendo sido uma área desapropriada numa pequena parte da fazenda São Bento para abrigar provisoriamente as famílias sem-terra. Conforme essa senhora, a forma como a polícia agira em meio aos acampados no momento do despejo deixou marcas de violência na recordação desse tempo:

Olha, a que mais me marcou foi essa uma, a última que a gente teve com policiais, né? Porque nós tinha ganhado a terra, e nos dia onde a gente tava acampado no lugar chamado 10 hectares, aquilo lá não era pra nós ter saído jamais de lá, porque a gente na realidade não tinha perdido. Aconteceu o seguinte: foi a negociação, aí ficou pra ser julgado [...] eu não lembro as datas, mas suponhamos que fosse hoje, foi hoje a negociação, ficou pra dia trinta sair se nós ia ficar ou se não ia, aí quando chegou naquela data não tinha sido dado a ordem de despejo, não era pra nós sair, porque venceu a data de ser julgado, mas não tinha sido julgado, e chegou na data certa do

12 SEM-TERRA voltam a invadir. O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.277, 15/05/1991, p.1. 13 ACAMPADOS iniciam plantio.O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.278, 16/05/1991, p.9. 14 MST NEGA ameaça de saqueamento. O Imparcial. Presidente Prudente, n.12.279, 17/05/1991., p.9.

julgamento, como não foi julgado aí veio a ordem de despejo. Que não era pra nós sair porque não tinha sido julgado e determinado que era pra nós sair. Então isso foi o que mais marcou, e aquelas 2 filas de policiais em cima daquela ponte lá revistando todo mundo que ia passar. Já pensou, a gente passar com uma bolsinha que tinha levado ali com cigarro dentro, com documento, que não ia deixar documento no barraco, e ter que abrir aquela bolsinha, uma coisa mínima pra mostrar pros policiais. Aquilo foi o que mais me marcou, o que mais me revoltou. Aquele dia nem sei como fiquei, eu me desesperei tanto, a primeira vez.15

Se os despejos vividos pelos camponeses foram inúmeros, as práticas e representações também se fizeram diversas, como observa Rosemeire A. Almeida, ao ressaltar que, em relação a São Bento: “É um processo que se inicia na elaboração da estratégia da ocupação e desencadeia uma série de situações onde os trabalhadores se vêem a cada momento desafiando o inviolável”. (1993, p.53)

Como uma das práticas e representações de luta no processo de ocupação da São Bento, dentre outras fazendas, observa-se o cultivo da terra e plantação de víveres como feijão e milho na fazenda, sendo que as famílias sem-terra permaneciam acampadas fora da área, o que denomino de “ação motorizada”16. Essa ação representava um meio tático para fundamentar o direito moral de ocupação da terra e se esquivar dos constantes despejos, pois quando os policiais chegavam para a entrega do aviso de reintegração de posse, o que encontravam na área anteriormente ocupada era somente a terra tombada ou plantada. Se não era possível permanecer na fazenda com os barracos, plantar para essas famílias se fazia necessário, já que legitimava a luta pela “terra de trabalho”, na medida em que expunha, tanto para o camponês como para a sociedade, o direito moral do cultivo. A terra tombada tornava- se um símbolo, uma representação do trabalho partilhado, bem como do desejo de ser e de viver dos camponeses nessa terra.

Evidenciando a dimensão da legitimação do direito em ocupar a terra por meio dessa prática, bem como da mística que ela trouxe consigo, o relato de Zelitro torna-se revelador:

[...] o Movimento aproveitou da característica de aqui ter uma ferrovia desativada, e concentrava o acampamento na ferrovia, e fazia ocupações nas áreas. Quando tinha reintegração de posse recuava. Vencido este momento voltava de novo. E sucessivas vezes fazendo isso, foi provocando desgastes nos latifundiários. Pegos de surpresa, com as táticas do MST eles foram cedendo. O MST foi ganhando terreno com isso, e as ocupações que o Movimento desenvolvia foi incorporando por exemplo a produção. A

15 ENTREVISTA. Luzia. São Bento, setor I, 05/05/2002.

16 Este termo foi apreendido a partir das considerações de Mineirinho, em entrevista realizada no assentamento