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5.4 Nos meandros da instituição

5.4.2 Pré-Natal de Alto risco

As consultas de pré-natal de alto risco [todas em horário comercial] eram realizadas por uma médica, professora titular da faculdade de Medicina. Por atuar há muitos anos no serviço público, houve situações de adolescentes e jovens, as quais, estavam passando no pré-natal e, a partir de questionamentos sobre idade, local e dia de nascimento, a médica pressupunha ter feito o parto da mãe dessa mulher, que agora estava atendendo.

Em geral, nessas consultas havia um residente encarregado de fazer anotações no prontuário e também a realização de alguns exames.

A grande maioria, das mulheres, chegava encaminhada pela Unidade Básica de Saúde (UBS). Geralmente, iam às consultas companhadas de familiares (mulheres, em geral, mães ou amigas), raramente havia presença de homens. Presenciei apenas um companheiro, mas esse ficou durante todo o atendimento em pé, parecia não estar à vontade.

No que se refere às queixas das mulheres, cito algumas situações: 1) recentemente perderam um filho e engravidaram novamente; 2) obesas; 3) dependentes químicas; 4) com histórico de inúmeras gestações, fazendo planejamento familiar, com laqueadura marcada e que se “esqueceram” de tomar a injeção; 5) engravidaram do amante, também casado, e iriam prosseguir com a gestação, mas não ficariam com o bebê; 6) foram presas e/ou estão com o companheiro preso; 7) relatavam dificuldades no trabalho, decorrente do fato de estar grávida; e 8) mulheres que não teriam indicação para o pré-natal de alto risco, mas possuiam um conhecido que trabalha no hospital e conseguiam um “encaixe”; 9) hipertensas; 10) diabéticas, dentre outras.

Houve casos, nos quais, algumas passaram mal na espera da consulta, porque não tinham dinheiro para se alimentar e, mulheres que, apesar de conveniadas, optaram por realizar o pré-natal naquela instituição, por ser referência em saúde da mulher e por indicação de outras mulheres que foram acompanhadas lá. Outro dado contribuinte para isso, nos dizeres delas, é o número limitado de consultas mensais permitidas por alguns convênios, enquanto que na instituição pública o número de consulta depende da avaliação do caso, podendo ocorrer semanalmente. Muitas dessas mulheres falavam em consulta estarem fazendo dois pré-natais simultâneos: no particular e no público.

Quando estava próximo ao parto, elas tentavam negociar com a médica o parto no hospital conveniado e, ao saberem da impossibilidade deste acordo, mostravam-se visivelmente e verbalmente decepcionadas, pois confiavam na médica, mas almejavam outra instituição para o momento do parto.

Todas as mulheres que já haviam passado pela consulta com a doutora elogiavam o atendimento, o que acabava, nos dizeres da maioria, compensando as horas de espera e o deslocamento nem sempre fácil até o local. Elas se diziam acolhidas e a incerteza não era em relação à doutora e nem às consultas e sim em relação ao momento do parto, pois sabiam que a doutora não estaria mais com elas.

Assim, mesmo as mulheres que teriam o filho neste hospital, manifestavam a vontade do acompanhamento dessa médica, no momento do parto, conforme representado pelo diálogo a seguir:- “Doutora, o parto é com você”?- “Não. Com o

plantonista”. - “E a senhora tá de plantão”?-“Não. Eu já fiz isso 30 anos da minha vida. Se fosse fazer o parto de cada uma de vocês não daria tempo para nada. Essas consultas de vocês já consomem todo tempo”.

Questiono sobre a continuidade do atendimento pré-natal e parto com o mesmo médico, tendo como resposta: “não teria tempo de fazer outra coisa. Ficaria somente

na cirurgia”.

Somente quando o parto estava próximo, havia uma sinalização, por parte da médica, de que na próxima consulta seria marcada a cesárea, por exemplo. Quando uma mulher questionava, a resposta comumente era que dependeria da fisiologia dela no momento do parto: - “Doutora, aqui tem que ser normal, mesmo”? “E como vai ser o parto”?-“A decisão é na hora, depende da situação”.

A exceção era quando se tinha a indicação para a cesárea a priori. Minhas interrogações nesse momento se voltaram em torno da ideia de um corpo aparatado do psíquico, pois a expressão delas sobre o momento não importa, e sim os sinais “verbalizados” pelo corpo.

Trago como exemplo dessa discussão, a respeito da via de nascimento, o caso de uma gestante, que também fazia acompanhamento no serviço privado, e comentou que a médica do plano de saúde falou para fazerem uma cesárea e ela havia ficado preocupada, pois- de acordo com essa médica- o cordão umbilical estava enrolado no pescoço do bebê.

A médica do hospital público então lhe respondeu que o exame que ela havia mencionado para se chegar nessa indicação, não verificava isso, não sendo possível tal afirmativa. Ressaltou ainda o fato de a maioria dos bebês nascerem com o cordão no pescoço.

Outra situação a ser exposta foi a de uma gestante, a qual tinha epilepsia e logo em sua primeira consulta pergunta se poderia ser feita uma cesárea e a resposta obtida categoricamente foi “não”, pois nesse caso a indicação era “normal” já que ela corria o risco de convulsionar durante a cirurgia. Ao término dessa consulta, peço para conversar com essa mulher fora do consultório.

Apresento-me, explico-lhes os objetivos da pesquisa e pergunto se ela deseja participar me contando um pouco sobre sua participação na instituição. Ela me disse estar com medo, pois quando foi parir sua última filha, hoje com 9 meses, chegou convulsionada e continuou até o parto, mas “aqui eles não fazem cesárea de jeito

nenhum”. Disse também que não estava aceitando esta gravidez, porque estava fazendo

planejamento para laqueadura [pelas contas da médica, ela engravidou no puerpério]. No decorrer do atendimento de uma jovem gestante e com toxoplasmose, a médica pergunta se ela sabia a consequência daquela doença em seu filho e ela responde ter visto na internet haver a possibilidade de o bebê nascer sem cérebro, pois a pessoa informante do diagnóstico (em outra instituição) “estava com mais medo do que ela” e não falou nada. A médica então lhe disse as possíveis reações e o tratamento a ser feito. Das observações feitas, os exames realizados nessas consultas, em geral, toque e batimento cardíaco do bebê, eram feitos pelos residentes. Aparentemente aos residentes está reservado o papel de examinar e fazer as anotações, mas o relacionamento deles com as mulheres é distante, havendo uma soberania da técnica perante a relação profissional-paciente. Associamos esse fato ao “duplo anonimato” apresentado por Clavreul (1978,1983) no qual a exclusão enquanto sujeito não é apenas do paciente, mas também do profissional. Desse modo, podemos dizer que há uma (des) personalização não apenas por parte das mulheres.

Durante os exames também são usados termos técnicos. Provavelmente as mulheres não sabem do que se trata, e nem sempre há um retorno explicando-lhe o que e para que é, todavia, são poucas mulheres que questionam.

Entretanto, presencio uma intervenção da médica, quando verificou que a residente estava fazendo os exames, sem cobrir as mulheres. Após a saída da paciente ela diz à residente: “precisa cobrir, vou deixar vocês todas peladas aqui”. E também o desconforto dessa médica, quando, não raro, entrava algum funcionário (da recepção ou enfermagem), sem pedir licença, enquanto uma paciente é examinada.

Condizente às orientações passadas no pré-natal, essas giram em torno de recomendar o curso de gestante (entrega de panfleto e data), o uso de meias compressoras, informações sobre alimentação e alguma outra especificidade, a depender da mulher. Contudo, as orientações eram predominantemente de ordem médica.