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PRÉ E PÓS-HISTÓRIA DE AUSCHWITZ

No documento Adorno e a quebra do continuum da história (páginas 96-99)

O que transparece é que, para Adorno, Auschwitz não seria uma falha, mas algo que já estava contido na lógica universal da história. Como a lógica hegeliana de que “como a semente carrega em si toda a natureza da árvore, o sabor e a forma dos frutos, assim os primeiros traços do espírito já contêm também, virtualmente, toda a história”288, os anos que antecederam a

vinda do nazismo, como a infância de Adorno, eram já a prefiguração do que estava por vir. Nela, como no aforismo O colega malvado da Minima Moralia, os colegas de escola de Adorno já são os oficiais da Gestapo ou os simpatizantes do regime nazista: “Pensando bem, eu poderia derivar o fascismo das recordações da minha infância. Como um conquistador nas províncias mais afastadas, ele enviara para lá os seus mensageiros muito antes de ocupar o território: meus colegas de escola”289. A violência de seus colegas aos mais fracos ou os “inteligentes

enrustidos” que “contribuíram com a terrível eficiência do Terceiro Reich”, demonstravam que

287 ADORNO, Theodo . A tualidad de la filosofia. p. . 288 HEGEL, G.W.F. Filosofia da histó ia. p. .

as circunstâncias que deram vazão ao fascismo remontavam muito antes de sua aparição. A mesma coisa pode se dizer da Dialética do Esclarecimento, que pretendia traçar a proto-história da modernidade (Urgeschichte der Moderne). Evidente que o modo necessário que Adorno via essa história universal era completamente distinta que Hegel. Necessário não quer dizer que a história tinha que inevitavelmente ser o calvário que foi, como uma teodiceia. A razão hegeliana só passa a refletir perfeitamente a realidade e ser o modelo adequado para história porque ela assimilou seu princípio, o da identidade entre sujeito e objeto que testemunha o continuum da história ainda não rompido. Em nenhum momento Hegel tenta maquiar os grandes desastres da história, os excluindo do espírito absoluto. Inclusive, eles são tidos como necessários para que a liberdade se efetive na história. É justamente esse princípio de identidade do qual nada escapa as suas teias que faz com que tanto a proto-história da modernidade retroceda aos tempos homéricos e que Auschwitz seja a apoteose dessa história. O particular sob o signo da identidade total torna-se o arquétipo dos prisioneiros dos campos de concentração do qual ele prova a sua insignificância enquanto fungibilidade absoluta:

O genocídio é a integração absoluta que se prepara por toda parte onde os homens são igualados, aprumados, como se costuma dizer em linguagem militar, até que as pessoas literalmente os exterminam, desvios do conceito de sua perfeita nulidade. Auschwitz confirma o filosofema da pura identidade como morte290.

Enquanto Hegel via na necessidade histórica a efetivação da ideia liberdade não como “apesar das” catástrofes mas graças a elas, Adorno invertia essa lógica, embora não a eliminasse de todo. A liberdade era uma fraude graças a estas tragédias que, como Hegel bem viu, eram tidas como necessárias. Além disso, a ideia de liberdade como Hegel a pintava estava para Adorno muito longe de sua efetivação na realidade. Por isso, não haveria identidade alguma entre real e racional como diz Adorno no ensaio “Aspectos” de Três estudos sobre Hegel: “Liberdade e razão uma sem a outra são absurdas. Apenas na medida em que o real deixa transparecer a ideia de liberdade, a autodeterminação real da humanidade, ele pode valer como racional”291. Seria equivocado usar Auschwitz ou acreditar que ela tem essa função no

pensamento de Adorno, de negar tão somente a filosofia da história de Hegel. Temos que ter em mente que, para Adorno, Auschwitz representava o princípio da história universal elevado

ad absurdum.

A ideia de pré e pós-história como apresenta Hegel, de que na semente já está presente os frutos, lembra a teodiceia292 de Leibniz, do qual o próprio Hegel não nega a semelhança,

290 ADORNO, Theodo . Dial ti a Negati a. p. . 291 ADORNO, Theodo . T s estudos so e Hegel. p. .

embora este critica o caráter abstrato daquele293. Para Adorno, a pós-história da semente é

sempre ainda sua pré-história. Em relação a isso, diz Martin Jay sobre essa teodiceia invertida de Adorno no qual Auschwitz representava o contrário quase exato da redenção: “Auschwitz foi, na realidade, um messianismo invertido, diabólico e não divino, o que lhe permitiu [a Adorno] falar de ‘depois de Auschwitz’ mais ou menos de forma portentosa pela qual um cristão falaria ‘depois de Cristo’”294. Segundo essa passagem, a própria ideia de continuum da história

estaria ameaçada. Auschwitz teria feito um rombo tão grande em todas as ideias tradicionais que não haveria simetria cabível entre ela e as demais tragédias. Ela seria uma espécie de

descontinuum em meio ao continuum do calvário da história. Esse problema é bem colocado

por Thomson que diz:

Se Auschwitz deixa de ser um nome para um acontecimento singular e passa a ser identificado com a história como um todo, a especificidade desse acontecimento é ela própria obliterada. Além disso, ao ser incluído no balanço do juízo histórico, aceitamos o horror do holocausto no contínuo da história normal295.

Por mais irracional e refratário à representação, Auschwitz estaria dentro do continuum histórico precisamente porque ele seria fruto da racionalidade, da ratio autônoma. Qualquer tipo de interdição por sua suposta irracionalidade manteria Auschwitz no campo do extra- político, do inacessível, que o faria mais inofensivo do que integrá-lo no continuum. O fato é que Auschwitz só representa uma descontinuidade das proporções das novas tragédias em face das antigas tragédias como p.ex. as invasões coloniais na América e o quase total desaparecimento da população nativa. Desta forma, a proto-história da modernidade, enquanto sua utopia deformada teria já sido efetivada. O problemático é que tudo continua intocado e sem superação real. Seu tom apocalíptico não tem absolutamente nada a ver com que é melhor deixar tudo como está sob a pena de causar uma nova tragédia, mas que continuar da forma que estamos iremos inevitavelmente desembocar numa nova catástrofe que tenderia a superar as anteriores:

Entretanto, por mais que possa ter sido sempre o mesmo – ainda que Tamerlão nem Gengis Khan nem tampouco a administração colonial da Índia tenham enviado de modo planejado milhões de pessoas ao extermínio por gás – então a eternidade do horror ainda se manifesta em que cada nova forma dele supera a anterior. O que persiste não é um quantum invariante de sofrimento, mas o seu avanço rumo ao inferno: este é o sentido da fala sobre o crescimento dos antagonismos296.

G.W.F. Filosofia da histó ia. p. .

293 Nossa o se aç o , e e ta edida, u a teodi eia, u a justifi aç o de Deus ue Lei iz te tou ao seu odo, etafisi a e te, edia te atego ias i dete i adas e a st atas . HEGEL, G.W.F. Filosofia da histó ia. p. .

294 JAY, Ma ti . As ideias de Ado o. p. .

295 THOMSON, Ale . Co p ee de Ado o. p. . 296 ADORNO, Theodo . Mi i a Mo alia. p. .

Falar de uma pré e pós história de Auschwitz significa dar-lhe, por mais absurdo que pareça, um sentido lógico dentro do continuum, ao invés de dizer que trata-se apenas de um desvio da história universal. Ou seja, o “avanço rumo ao inferno” seria o verdadeiro telos da história universal, e as tragédias expressas no aforismo como a administração colonial na Índia, e o crescendo destas tragédias não seriam apenas inevitáveis, mas sua própria essência.

No documento Adorno e a quebra do continuum da história (páginas 96-99)