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O sempre idêntico da filosofia

No documento Adorno e a quebra do continuum da história (páginas 62-65)

2.1 A SITUAÇÃO SEM HISTÓRIA: UM NOVO ESTÁGIO DO SEMPRE IDÊNTICO

2.1.1 O sempre idêntico da filosofia

Na seção anterior, discorremos sobre o novo estágio do sempre-idêntico que acarretava na era do capitalismo tardio, naquele modelo que emerge da experiência americana, com seus mecanismos de integração. A filosofia, como a arte, teria sofrido uma neutralização nessa fase devido a sua liquidação. Isso faz parecer que a filosofia é apenas vítima do sempre-idêntico, mas encobre o quanto ela mesmo é parte deste estado de coisas. Nesta seção, pretendemos apresentar precisamente isso, o quanto a filosofia ajudou a perpetuar o pensamento identitário e, por conseguinte, o continuum da história.

O caráter compulsório do idêntico enquanto modus operandi do pensamento foi tratado por Adorno de duas maneiras distintas. Num primeiro momento, na Dialética do

Esclarecimento, onde é rastreado nos tempos mais longínquos o ponto extremo de abstração

que a ciência e a filosofia chegaram. Já na Dialética Negativa, esse rastreamento será muito mais dentro da tradição filosófica que em suas manifestações apócrifas como ocorre na

Dialética do Esclarecimento. Com isso queremos dizer que a Dialética do Esclarecimento

tomava mitos e obras literárias como documentos relevantes para o diálogo, enquanto na

Dialética Negativa, é hegemonicamente um diálogo com a tradição filosófica e seus problemas

internos. Portanto, de um lado, existe o sempre idêntico na tradição filosófica, a qual se mostra complacente e até apologética em relação à realidade e proclama a partir de cima a identidade do pensamento com a realidade. Por outro, existe a filosofia da história, que, ao invés de libertar o tempo de sua mesmice, assimila e justifica o sempre idêntico como princípio. Por isso, tomamos aqui a história da filosofia e a filosofia da história como comprometidas com o

continuum da história ao invés de com o seu rompimento.

de ela não ter conseguido modificar a realidade, porque “os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes formas”. Ao dizer que ela foi conivente com a realidade, não significa também que a filosofia só a afirmou. Neste contexto, poderia parecer que Adorno, como Habermas disse169, se colocaria como o último filósofo. O princípio da não-identidade não seria de

Adorno, mas da filosofia. Ou seja, onde a filosofia foi realmente filosofia, ela foi fiel ao não- idêntico. Portanto, Adorno não seria o último filósofo, mas aquele que procurou levar o princípio eminentemente filosófico, o da não-identidade, até o fim. Como Alex Thomson diz, “poderia ser mais fácil pensar no pensamento de Adorno mais como um padrão de interferência dentro da filosofia mais tradicional do que uma abordagem filosófica distinta”170. Assim, ao

contrário do que poderia se supor da divisão entre teoria crítica e teoria tradicional, tanto Adorno quanto a teoria crítica, não representam uma cisão absoluta com a tradição filosófica, eles nunca deixaram de dialogar com ela criticamente.

A defesa de Adorno contra os filósofos de sua época que aplicavam a terapêutica do sentido para curar a filosofia dos falsos problemas era justamente o conhecimento de que a filosofia trazia nos seus problemas tanto a culpa de a realidade ser como é, como a possibilidade de transformá-la. “O fato de, segundo um cânone lógico, ele relegar as antinomias objetivas ao âmbito dos falsos problemas tem, por sua vez, uma função social: cobrir contradições por meio de denegação”171. O diálogo com a tradição, a contrapelo da tendência positivista de sua época,

consistia na percepção de que os problemas herdados eram “antinomias objetivas” e que negá- las seria o mesmo que encobrir as contradições da realidade.

A filosofia refletiria, então, os problemas da realidade, nisso consistia sua virtude. Seu estigma, contudo, seria justamente fundamentá-los. Com fundamentar, queremos dizer que ela pode fazer isso até mesmo contrária as suas boas intenções. Kant e seu imperativo categórico desmentiam sua proposta emancipadora sapere aude de sua resposta à pergunta “O que é esclarecimento?”. O problema não estaria em algum erro de cálculo, numa contingência dentro do pensamento. A filosofia, por mais progressista que fosse, estava desde o início comprometida com o princípio de identidade. Este princípio, como vemos na Dialética Negativa, acompanha a filosofia desde seus primórdios aos nossos dias. Esse princípio afirma duas coisas aparentemente inconciliáveis: o pensamento é idêntico ao real e, ao mesmo tempo, o pensamento é independente do real. Nesse último, o pensamento poderia resolver os problemas

169 Todos eles [Heidegge , Ado o e De ida] se defe de de odo tal o o se ai da i esse , o o a p i ei a ge aç o dos dis ípulos de Hegel, so a so a do <<últi o>> fil sofo; . HABERMAS, Jü ge . Dis u so filosófi o

da ode idade. p. .

170 THOMSON, Ale . Co p ee de Ado o. p. . 171 ADORNO, Theodo . Dial ti a Negati a. p. - .

sem que fossem solucionados na realidade, afirmando assim sua autossuficiência. Já em relação à identidade do pensamento e da realidade, a filosofia proclamaria a primazia ao sujeito, como se ele não tivesse nenhuma dependência em relação à realidade. A não-identidade inverteria esses dois momentos, decretando a primazia do objeto e a práxis como instância que definiria a verdade ou inverdade de um pensamento.

Com base em sua situação histórica, a filosofia tem o seu interesse verdadeiro voltado para o âmbito em relação ao qual Hegel, em sintonia com a tradição, expressou o seu desinteresse: o âmbito do não-conceitual, do individual e particular; aquilo que desde Platão foi alijado como perecível e insignificante e sobre o que Hegel colou a etiqueta de existência pueril172.

Toda a tradição, de Platão a Hegel, por mais ligado que a dialética estivesse com o princípio da não-identidade, acabava por eliminá-la na ênfase do universal sobre o particular ou do elemento heterogêneo, não conceitual, sobre a subjetividade que reduz tudo ao mesmo, a sua projeção. Por isso Adorno diz que: “A regressão da filosofia a uma ciência particular, imposta pelas ciências particulares, é a expressão mais evidente de seu destino histórico”173. A

estreita relação entre a tradição filosófica e o uso do conceito enquanto abstração do objeto que se quer fazer mais importante que o próprio objeto seria algo que levaria irremediavelmente a filosofia ao positivismo. Ou seja, a razão se transforma em razão instrumental, não por um desvio da filosofia de sua trajetória, mas por levar até às últimas consequências o princípio da identidade.

Desta feita, entrelaçam-se o universal, a abstração, o princípio da não-identidade, idealismo e ratio autônoma. Na Dialética do Esclarecimento, tais componentes são tratados de modo distinto, eles aparecem tanto em sua forma concreta como em suas manifestações teóricas para demonstrar o absurdo e as contradições imanentes ao discurso do Aufklärung. Já na

Dialética Negativa, Adorno irá criticar imanentemente a razão identitária sem fazer uso direto

da realidade como foi o caso da Dialética do Esclarecimento: “À consciência do caráter de aparência inerente à totalidade conceitual não resta outra coisa senão romper de maneira imanente, isto é, segundo o seu próprio critério, a ilusão de uma identidade total”174.

Na Dialética do Esclarecimento, o diálogo se dá com os diversos estágios da civilização que se assemelham entre si, sendo essa semelhança seu caráter sempre idêntico. Assim, poderia se mostrar, dentre outras coisas, o uso da abstração como um meio de dominação da natureza, desde o sacrifício das ovelhas ao formalismo da matemática. Isso foi o que denominamos de proto-história materialista da modernidade. Na Dialética Negativa, são raros os momentos que

172 ADORNO, Theodo . Dial ti a Negati a. p. . 173 ADORNO, Theodo . Dial ti a Negati a. p. . 174 ADORNO, Theodo . Dial ti a Negati a. p. .

podemos falar de uma proto-história da identidade na filosofia. Nessa obra, Adorno fixa-se num diálogo com as correntes contemporâneas e só regride historicamente até o idealismo alemão, especialmente Kant e Hegel. Contudo, sempre que dialoga com essas correntes, enfatiza o caráter conservador e a recaída no idêntico como aquilo que marca definitivamente a história da filosofia.

Ricardo Timm de Souza deixa claro nessa passagem de seu ensaio “Adorno e a razão do não idêntico” o quanto a filosofia desdenhou o não-idêntico: “É preciso, após dois mil e quinhentos anos de sofisticada especulação filosófica, que alguém afirme novamente que o pensar só pode existir, se se referir ao que não é ele”175. Ao destacar os “dois mil e quinhentos

anos de sofisticada especulação filosófica”, Timm não está fazendo uma afirmação que não diz respeito a Adorno. Este pensar que toma consciência que só pode existir ao “se referir ao que não é ele” é justamente o que Thomson havia se referido como o “padrão de interferência dentro da filosofia tradicional”: “a crítica filosófica da identidade ultrapassa a filosofia”176. É essa falta

de concreção, o caráter abstrato e autônomo da razão, sua identidade consigo mesma, que perpassa a Dialética Negativa como a mácula da tradição filosófica que, embora não possamos falar de uma proto-história como na Dialética do Esclarecimento, faz da história da filosofia um reflexo do continuum histórico.

No documento Adorno e a quebra do continuum da história (páginas 62-65)