• Nenhum resultado encontrado

Vorgeschichte: a história antes da história

No documento Adorno e a quebra do continuum da história (páginas 31-33)

1.2 URGESCHICHTE E VORGESCHICHTE: PROTO-HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA

1.2.2 Vorgeschichte: a história antes da história

Nossa intenção de manter Urgeschichte e Vorgeschichte separados não foi arbitrário. Conseguimos tornar claro o significado de Urgeschichte, porém, ainda falta demonstrar o peso específico de Vorgeschichte para então deixar visível a relevância dessa delimitação. O que percebemos é que Vorgeschichte não está ligado àquela concepção tradicional de pré-história no sentido de anterior à escrita66. Não é possível delimitar com precisão qual é a era que Adorno e Horkheimer se referem com pré-história. Ela atravessa um amplo espaço temporal na

Dialética do Esclarecimento que vai da narrativa de Polifemo – “a era propriamente bárbara”67

até a parábola das Sereias na “despedida do mundo pré-histórico”68. Vorgeschichte tem a acepção na Dialética do Esclarecimento de uma época difusa, mas mesmo assim existente. A pré-história seria o momento em que o homem já não se identifica mais com a natureza. Deste momento em diante, o homem apreende a natureza por meio do discurso. Essa é uma característica que permeia não só o período descrito na Dialética do Esclarecimento como pré- histórico mas algo que se estende até nossos dias. Isso torna ainda mais difícil entender o

he oís o dia te da se te ça o o po do e p ti a o a o fati ietzs hia o. NIETZSCHE, F ied i h. Ge ealogia

da o al. p. .

65 ADORNO, Theodo ; HORKHEIMER, Ma . Dial ti a do Es la e i e to. p. .

66 A hist ia estuda o passado hu a o, a pa ti da i e ç o da es ita, dedi a do-se supe fi ial e te p - hist ia – pe íodo a te io ao apa e i e to da es ita . RAMOS, Lu ia o. Histó ia do B asil. S o Paulo: Ed. do B asil, . p. .

67 ADORNO, Theodo ; HORKHEIMER, Ma . Dial ti a do Es la e i e to. p. . 68 ADORNO, Theodo ; HORKHEIMER, Ma . Dial ti a do Es la e i e to. p. .

significado de pré-história, já que não conseguimos delimitar o que a diferencia da história como período posterior.

A questão que fica suspensa é se que a pré-história não seria o momento anterior ao surgimento da linguagem. A crítica da filósofa americana Judith Butler a Lacan, como havíamos apresentado na introdução, toca exatamente esta matéria. Judith Butler faz uma contundente crítica que afeta não só as teorias queers mas qualquer discurso utópico que distinga um momento pré-discursivo de outro discursivo. Diz Butler: “Em outras palavras, não só a narrativa reivindica um acesso a um ‘antes’ do qual está por definição excluída (em virtude de seu caráter linguístico), mas a descrição do ‘antes’ ocorre nos termos do ‘depois’”69. Com isso, Butler se refere aos discursos utópicos que pretendem restaurar ou regressar para aquele período anterior ao surgimento da linguagem. Na Dialética do Esclarecimento, o instante fundador do discurso, como aquele que fica subentendido na cisão entre o homem e a natureza, não seria propriamente o Vorgeschichte. Nem mesmo o regresso constante à pré-história poderia ser considerado como o estabelecimento de uma lei. Muito pelo contrário, o que precede a cisão entre o homem e a natureza está vedado o conhecimento para nós e muito menos um regresso a este momento seria desejável para os autores da Dialética do Esclarecimento: “o que há de correto no antropomorfismo é que a história natural, por assim dizer, não contava com o lance de sorte que ela logrou criando o homem”70. A ideia de “lance de sorte” desfaz qualquer

relação causal ou verificável da passagem do pré-discursivo para o discursivo. Portanto, o discurso utópico de Adorno não aponta para além da história, ela é imanente ao processo histórico. Por isso, o que parece ser uma lacuna na Dialética do Esclarecimento, é, enfim, a recusa em se arriscar neste período pré-discursivo anterior ao Vorgeschichte, a do momento irrevogável da cisão entre sujeito e objeto.

Como dito anteriormente, Vorgeschichte (pré-história) não representa um período anterior à história enquanto anterior ao surgimento da linguagem ou cultura. A Vorgeschichte, representa um período nebuloso, em que a subjetividade estava começando a se cristalizar, do qual só recebe esse Vor (pré), como anterior à história, porque os autores da Dialética do Esclarecimento pretendiam justamente contaminar toda a história com esse pré. Em outras palavras, Vorgeschichte é o momento do qual ainda não superamos e, portanto, estamos presos na pré-história: a história ainda não teria começado. No fim das contas, não é a pré-história que possui um emprego performático na obra adorniana para ressaltar a barbárie da história

69 BUTLER, Judith. P o le as de g e o. p. .

presente, mas a história, que ainda não existe, que é empregada performaticamente diante da pré-história que vivemos.

Mais um ponto prova nossa perspectiva que, ainda que não estivesse explicitamente pronunciada na Dialética do Esclarecimento, pode ser demonstrada por outros meios. Em carta a Benjamin, sob o pretexto de comentar seu monumental ensaio sobre Kafka, Adorno aproveita o ensejo para fazer uma digressão sob seu entendimento da filosofia da história:

Eu diria assim: que para nós [Adorno e Benjamin] o conceito de era histórica é meramente inexistente (da mesma maneira que não conhecemos decadência e progresso no sentido próprio que você destrói nesse contexto [o ensaio sobre o Kafka]), e só apreendemos a era histórica como extrapolação do presente petrificado71. Portanto, aquilo que havíamos dito sobre a ilusória separação entre a Vorgeschichte (pré-história) e a Geschichte (história) é corroborada com a passagem acima. Se não existe eras históricas, decadência nem progresso, logo podemos deduzir que, para Adorno, as divisões correntes de pré-história, história antiga, idade média, modernidade são arbitrárias, ou nas suas palavras, “extrapolação do presente petrificado”. Logo, não seria nenhum salto se ousássemos colocar as coisas nestes termos: o presente petrificado não é tanto o presente hic et nunc, mas o presente pré-histórico, em outras palavras, o continuum histórico. O continuum é esse momento de absurdidade no qual Adorno demonstra que somos contemporâneos dessa pré-história.

1.3 A GÊNESE DO CONTINUUM E SUA CONTINUIDADE NO PENSAMENTO

No documento Adorno e a quebra do continuum da história (páginas 31-33)