• Nenhum resultado encontrado

4 USOS E APROPRIAÇÕES SOCIAIS DO ESPAÇO PÚBLICO NAS PRAÇAS

4.2 Usos e apropriações sociais do espaço público: o caso das praças de São Luís

4.2.3 A Praça da Ressurreição

Diferentemente do Centro da cidade, onde está situada a Praça Gonçalves Dias, o adensamento populacional que fez surgir o bairro do Anjo da Guarda, localizado a sudoeste da região central, está relacionado às migrações populacionais direcionadas a partir do interior do Estado à capital. O nome que é dado à região não é recente. No citado livro (O mulato), de 1881, Aluísio Azevedo – do mesmo modo que tratou outras partes da cidade de São Luís – comentava a respeito do então arrabalde Anjo da Guarda, que, com sua vegetação, proporcionava sombra e brisa que compelia ao descanso. Narra o autor que

[...] a viração do Bacanga refrescava o ar da varanda e dava ao ambiente um tom morno e aprazível. Havia a quietação dos dias inúteis, uma vontade lassa de fechar os olhos e esticar as pernas. Lá defronte, nas margens opostas do rio, a silenciosa vegetação do Anjo da Guarda estava a provocar boas sestas sobre o capim, debaixo das mangueiras; as árvores pareciam abrir de longe os braços, chamando a gente para a calma tepidez das suas sombras. (AZEVEDO, 2010, p. 21).

A ocupação tomou maior impulso com a construção da ponte e da barragem sobre o rio Bacanga no final da década de 1960 e início da seguinte. O Anjo da Guarda aos poucos foi deixando de ser o retiro bucólico às margens do Bacanga, passando a receber um número crescente de moradores. Mudanças importantes no território do bairro do Anjo da Guarda e adjacências decorreram da instalação da Companhia Vale do Rio Doce, atual Vale, na década de 1980.

Em 1998, como parte de um programa de edificação de espaços públicos destinados ao lazer, o Governo do Estado do Maranhão concluiu a urbanização de uma área destinada à construção de praça que denominou “Viva Anjo da Guarda”, à qual a população renomeou de Praça da Ressurreição por ser ali celebrado, anualmente, o episódio da Paixão de Cristo, conforme o calendário religioso cristão. Havia também a estátua do anjo da guarda em outro espaço público, onde se situa a Praça do Anjo, que tem como limites a Avenida Odilo Costa Filho e a Avenida Vaticano. Essa praça teve a escultura retirada, sofrendo também a intervenção paisagística na mesma época em que se reurbanizou a Praça que passou a ser nomeada oficialmente de “Viva Anjo da Guarda”.

A encenação do auto da paixão de Cristo na Via Sacra é evento que consta como atração na programação cultural e turística da cidade. Nele estão envolvidos de forma direta ou indireta aproximadamente 1.500 (mil e quinhentos) moradores das redondezas, que servem de figurantes, coadjuvantes e atores principais. Nesse momento extraordinário de interações predominam sentimentos de cooperação comunitária, com a distribuição de tarefas que devem ser cumpridas para permitir a realização do espetáculo. No ano de 2011 fez 30 (trinta) anos que a representação é apresentada nas ruas e praças do bairro. Um público estimado em mais de duzentas mil pessoas assiste ao espetáculo, que envolve também a presença ostensiva de policiais e bombeiros militares. Guardadores autônomos de veículos (flanelinhas) são cadastrados para operar nos dias das exibições públicas. Em 2011, quando foi desenvolvida a

pesquisa, a Via Sacra do Anjo da Guarda teve o patrocínio da mineradora Vale, bem como o apoio da Prefeitura Municipal de São Luís e do Governo do Estado do Maranhão.

A Praça da Ressurreição proporciona aos moradores do bairro um espaço público no qual são exercitadas as sociabilidades comunitárias. Está localizada entre duas avenidas: dentro do bairro, a Avenida Palestina, e, na parte externa, a Avenida dos Portugueses (consultar Figura 6). Entre as praças pesquisadas, esta é a que apresenta o maior espaço físico; sua configuração reflete uma amplitude espacial, o que pode facilitar a copresença e manter certo distanciamento corporal. Na extensa área central não existem árvores ou construções que originem sombras da luz do Sol, o que é entendido pelos frequentadores – conforme apurado nas entrevistas – como empecilho a um maior uso durante as horas do dia em que o calor é acentuado. Nas ocasiões em que parques itinerantes são instalados na Praça, sua largura é uma vantagem que permite a montagem de brinquedo popular, conhecido e apreciado como roda gigante.

Figura 6 – Mapa com a localização da Praça da Ressurreição.

A pesquisa na Praça da Ressurreição contou com observação direta entre os meses de abril a agosto de 2011, quando foram realizadas em diferentes horários entrevistas estruturadas com os usuários frequentes e ocasionais da praça. Nesta Praça foram delimitados atores que se apropriam do espaço, que podem ser distribuídos em díades, grupos e ajuntamentos classificados como vizinhos, jovens, casais, estudantes uniformizados, adultos, servidores públicos que trabalham no entorno, policiais militares e comerciantes.

Para identificar e analisar os ritmos e comportamentos, os horários, nos quais ocorrem determinadas formas de apropriação dos espaços da Praça por indivíduos e grupos, devem ser percebidos de forma diferenciada. Nas manhãs os usos mais percebidos são próprios de indivíduos, díades e grupos que se exercitam fisicamente, caminhando ao redor da Praça, prática que se repete com menos intensidade ao anoitecer, quando a frequência à praça é maior. Do mesmo modo, a fluência de usuários verifica-se com mais intensidade nos fins de semana, quando a copresença é maior e mais pessoas se encontram na praça.

Fonte: Google Mapas.

Indivíduos e grupos procedem principalmente do bairro do Anjo da Guarda, mas são encontrados usuários de regiões adjacentes como Vila Isabel, Vila Mauro Fecury II, Vila Nova, Vila Gancharia, Gapara e Vila Fumacê. A maioria reside no bairro [Anjo da Guarda] e chega à Praça andando.

A vizinhança reconhece na Praça um lugar importante na região (Figura 7). As relações entre vizinhos são mais intensas que na Praça Gonçalves Dias. Morar no entorno da Praça da Ressurreição é sinal distintivo. As casas têm melhor acabamento e várias são edificadas contando com varandas e sacadas que dão vista para a Praça. Alguns empreendedores, aproveitando a localização que pode atrair clientela, instalaram empresas em pontos comerciais em frente à Praça.

Nos ritmos diários, a Ressurreição é bastante usada a partir do anoitecer, quando o movimento é grande. Os fins de semana não apresentam muita variação em comparação com os demais dias, provavelmente em razão de os usuários residirem nos arredores. As interações entre indivíduos que se conhecem com estranhos ou forasteiros são assinaladas por um sentimento aparente que pode ser graduado como curiosidade, indiferença ou até uma relativa aversão. Em princípio, demonstradas de maneira discreta. No curso do ano é comum a instalação de eventos como festas, encenações e parques de diversões itinerantes.

O local é frequentado principalmente por agrupamentos que reúnem jovens, que se juntam nas imediações das barracas lanchonetes. Depois da praia, a praça é o principal lazer dos jovens. Entre os recursos de interação empregados para manter as situações sociais está uma linguagem que inclui expressões e atitudes próprias de grupos primários. Os indivíduos muitas vezes são “chegados” e participam do que seria confidencial para um forasteiro. Nas interações e relações sociais existe uma maior expressão de afetos públicos que contribuem para conservar a ocasião. Esse pedaço conta com lugares para comer e beber, onde parece ser maior o consumo de bebidas. Essas lanchonetes favorecem os encontros e a conversação (vide Figura 8 abaixo).

Figura 8 – Vista parcial da Praça da Ressurreição.

Foto do autor.

Entre os jovens são encontrados principalmente estudantes, mas há os que exercem ofícios remunerados como armadores e soldadores, trabalhando no setor da construção civil em empreiteiras. Outros têm ocupação em confecções e comércio de roupas. Como principais usos conferidos à Praça pelos jovens estão: ficar sentado observando e olhando as pessoas e o movimento; lanchar com os amigos tomando guaraná, cerveja, chopp, sorvete, comendo cachorro quente, churrasco; namorar e conversar com os amigos.

Quando indagados dos motivos para frequentar a Praça as respostas são variadas, conforme a faixa etária, o gênero, o grupo social ou a classe econômica. Alguns a consideram como parte de seu trajeto e, ao transitarem por ela, reconhecendo alguém, param para conversar. Existem aqueles que declaram ir para conhecer pessoas, pois percebem a Praça como lugar de paquera e namoro. Lanchar nas barracas é também opção bastante acionada. Assistir aos eventos é motivo de seleção identificado pelos usuários, que, no entanto, reclamam das poucas alternativas de lazer existentes no bairro. Há relatos nos quais se diz que

usavam mais os espaços da Praça, mas foram deixando de comparecer por outros compromissos ou pela perda de amizades cultuadas com a conversa, que não mais tiveram oportunidades em prosseguir.

Casais são vistos à noite na Praça, mas na companhia de outras pessoas. Esses pares de adjacência apresentam uma complexidade maior. Muitas vezes casais vêm à Praça com outros indivíduos ou lá se encontram. Os casais de namorados são em menor número em comparação aos observados na Praça Gonçalves Dias. Têm de peculiar o fato de poderem ficar no carro ou perto dele, o qual tende a ser usado por seus possuidores como recurso para a atração de potenciais consortes. O decoro nas interações entre casais pode parecer mais intenso nas atitudes de afeto, pois a proximidade da residência tende a facilitar a intromissão e gerar comentários de vizinhos. A possibilidade de vigilância é marcada como desagradável pelos jovens casais.

Estudantes uniformizados são vistos na Praça ou em deslocamento pelo bairro, no qual estão situadas muitas escolas. Durante o dia podem ser vistos estudantes que transitam e pouco permanecem na Praça. No final da tarde os momentos de permanência aumentam. Mas é à noite que a presença de estudantes é maior. Muitos não usam uniformes, por se tratar de curso noturno, outros os retiram para ficar mais à vontade. Preferem os pedaços onde estão outros indivíduos, não se importando em serem vistos e notados apesar do uso de uniforme.

Investigar os usos e apropriações dos espaços da Praça pelos jovens possibilita que se pense igualmente em ajuntamentos de adultos. Estes, quando vão à Praça, parecem estar direcionados a eventos que serão lá organizados, participando como arranjadores dos preparativos ou público para assistir com suas famílias. Em outras ocasiões comparecem também acompanhados de familiares, filhos e netos aos momentos extraordinários nos quais transcorrem os eventos realizados sazonalmente. No cotidiano, os jovens representam os atores que mais andam e caminham no perímetro da Praça.

Entre os jovens entrevistados na Praça da Ressurreição os usos e apropriações do espaço social são exercitados, em regra, nos mesmos trechos da área, com poucas variações. O conceito de pedaço parece ser mais aplicável, enquanto modelo teórico explicativo, às interações nesta localidade. Realçam a amplitude do lugar, para onde vêm, em sua maioria, acompanhados, como no trecho:

- Qual foi o critério de escolha utilizado para frequentar esta praça? - Conhecer pessoas, paquerar, lanchar, shows, festas juninas. - Quais os horários do dia que você frequenta a Praça? - À noite.

- O que você costuma fazer nos momentos em que está na Praça? - Conversar e lanchar com amigos, conversar.

- Você vem sozinho ou acompanhado (a)? Se acompanhado (a), com quem? - Acompanhado, com os amigos.

- Quando vem à Praça você se estabelece sempre no mesmo local ou parte da Praça?

- Sim.

- Em sua opinião, o que de melhor a Praça tem a oferecer àqueles que a frequentam e utilizam?

- Conhecer pessoas legais e bancos para repousar, é um bom lugar para descansar e conversar, o ambiente livre, um bom momento de lazer, bom espaço e o lanche. (V., 21 anos).

Determinados usos resultam das atividades de servidores públicos que trabalham nas repartições localizadas em pontos opostos ao redor da Praça, como a biblioteca Farol da Educação Antônio Neves e o Centro de Saúde Clodomir Pinheiro Costa. Os serviços desenvolvidos nesses dois prédios contribuem para as movimentações na Praça nos dias úteis da semana. Atraem grande quantidade de indivíduos que afluem às suas dependências, compondo um fluxo permanente nas imediações, que movimenta o comércio e o transporte de passageiros. Durante a noite e fins de semana esses edifícios são ensejos para afastar frequentadores da Praça, em razão de não serem ocupados nesses horários, não havendo então movimentação de pessoas.

Assim, as interações entre frequentadores e o poder público podem ser expressas pelas repartições nos extremos da Praça ou pela presença da Polícia Militar em algumas ocasiões, sobretudo em momentos extraordinários de festas, como na encenação da Paixão de Cristo. Nesses episódios é grande a presença do contingente da Polícia Militar, que visa disciplinar os usos do recinto da Praça e proximidades, coibindo comportamentos que excedam os admitidos pela lei e convenções sociais, como a moral e os bons costumes.

Comerciantes estabelecidos têm pontos de venda de lanches e bebidas instalados na Praça. As atividades econômicas de comércio de alimentos estão bem presentes na Praça: em quiosques, trailers e barracas ofertam e vendem diariamente ao público. Nestas relações econômicas há um sentido interativo de amizade, não apenas entre frequentadores, mas também entre estes e os donos das lanchonetes. Uma destas é nomeada “Encontro Social”. Durante a semana, nos chamados dias úteis, recebem e atendem uma clientela maior,

principalmente composta por jovens, que se reúnem em pedaços mais próximos à Avenida Palestina, no limite da Praça voltado para o interior do bairro. O lixo gerado por essas ações é percebido, entretanto, como algo negativo trazido pelo comércio de alimentos, o qual é valorizado pelos usuários entre as preferências de lazer. Mas, ainda assim, a Praça é avaliada pelos frequentadores como apresentando condições satisfatórias de limpeza.

Figura 9 – Cenários dos usos e apropriações na Praça da Ressurreição.

Os usuários percebem a Praça como um espaço asseado e com boa estrutura física, mas que poderia melhorar e se tornar mais agradável, com mais iluminação à noite e melhor segurança, pois a delinquência os preocupa. A escuridão em alguns trechos e a falta de

policiamento regular são fatores que repelem usuários. Mas a Praça é apreciada como um lugar divertido e bom para passear, onde as pessoas vão para conversar. Por vezes, podem ocorrer conflitos que acarretam brigas, afastando potenciais usuários.

A maioria dos frequentadores não vem sozinha, mas acompanhada de amigos, namorados, cônjuges, filhos, netos e familiares. A Praça é usada para facilitar reuniões entre membros dos ajuntamentos. Quando indagados nas entrevistas, os usuários identificam indivíduos e grupos que frequentam a Praça, percebendo a copresença de estudantes, jovens, e parentes com famílias. Outro padrão é que indivíduos e grupos, em sua maioria, preferem estar sempre no mesmo pedaço da Praça. Modelo de apropriação que difere do que predomina na Praça Gonçalves Dias. É possível aventar a suposição de que, por se tratar de uma Praça de bairro, os indivíduos têm seu pedaço reservado no espaço social da comunidade. Mudanças no posicionamento poderiam implicar em disputas por territórios e espaços sociais de influência, conforme os cenários traçados na Figura 9.

Quando indivíduos e grupos são indagados sobre o que de melhor a praça tem a oferecer àqueles que a frequentam e utilizam entre as respostas está a sua imensidão espacial. De fato, entre as praças estudadas é a de maior extensão física. Outros usos visados são o futebol jogado na quadra esportiva, as festas juninas e as programações de eventos, lazer, divertimento e brincadeiras. Descansar e repousar nos bancos, conversar e conhecer pessoas legais são usos igualmente apontados pelos usuários. As lanchonetes e bares montados na Praça são sempre citados como espaços disponíveis aos usos coletivos, cuja apropriação tem permitido manter e ampliar a atração de frequentadores.

A descrição e a análise da Praça da Ressurreição devem considerar aspectos pautados pelas vivências comunitárias. Os ritos sociais de interação nesta localidade são compostos fundamentalmente por relações entre próximos. As atividades interacionais que transcorrem nos ajuntamentos nas ocasiões de chegada, permanência e partida da Praça evidenciam os usos e apropriações da Praça como espaço de sociabilidades e manifestações culturais comunitárias. Um diferencial a ser destacado, são os investimentos em expressões culturais da região feitos por grandes grupos econômicos situados nesta zona da cidade, que patrocinam e apoiam eventos que são apresentados na Praça da Ressurreição.

Deve ser avaliada como positiva a intervenção realizada pelo poder público no que se refere à construção da Praça. As relações e representações de indivíduos e grupos a respeito

da Praça são bastante aprovativas. A percepção desse espaço pelos moradores ou por aqueles que os acessam por motivos comerciais são francamente favoráveis às benfeitorias na região. É possível apurar que a Praça é valorizada pelos usuários moradores, apesar das recorrentes reclamações quanto à insegurança no bairro. As reivindicações por segurança são semelhantes para os que usam o espaço para finalidades comerciais. O que se destaca na Praça da Ressurreição é sua adequação como local de interações comunitárias. É a praça de bairro na qual são vivenciadas importantes atuações dos atores sociais, que marcam o cotidiano do Anjo da Guarda e arredores, onde são situadas negociações que permitem os usos e apropriações do espaço e a producente construção de uma identidade local de seus moradores.