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Quando escutamos frases do tipo “Português é muito difícil”, “Eu não sei Português” ou “As pessoas sem instrução falam tudo errado” estamos presenciando situações de preconceito linguístico. O fato é que o preconceito ligado à língua revela, na verdade, um arraigado preconceito social, pois, segundo Bagno (1999), o que está sendo revelado é que as pessoas que produzem as formas tomadas como indesejáveis, como consequência de serem de classe social sem prestígio. O preconceito remonta a uma relação simbiótica entre formas linguísticas alternativas e falantes desprestigiados culturalmente e socioeconomicamente.

Scherre (2005) afirma que a defesa à boa língua vem atrelada à prática de injustiça social. A humilhação e discriminação às pessoas que falam “A gente fomos no cinema”, por exemplo, não possuem respaldo nas teorias linguísticas. Todo ser humano que é exposto à linguagem adquire um sistema completo e eficiente às situações de comunicação da sociedade de que faz parte, de forma inconsciente e plena. À língua materna, portanto, não se estabelece aprendizado, o que se aprende é a gramática normativa. Desta confusão entre adquirir a língua materna e aprender a gramática normativa, é que remonta as origens do preconceito linguístico nas escolas. Scherre (2005) retrata essa questão:

Mais do que ensinar de forma rígida a gramática normativa, confunde-se gramática normativa com língua. Esquece-se que uma gramática normativa é normalmente a codificação de uma norma- padrão escrita com base em textos de escritores consagrados, acompanhada do registro de alguns aspectos linguísticos das variedades de prestígio – as variedades associadas à fala da elite urbana dominante, que gozam de aceitação em circunstâncias naturais – é de riqueza e complexidade ímpares, que ainda não se deixou

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descrever nem explicar, na sua totalidade, pelos linguistas mais brilhantes. E esta mesma língua se rende à mente das crianças na mais tenra idade, que a dominam de forma invejável, sem qualquer ensino formal. (SCHERRE, 2005, p. 42-43). De acordo com Bagno (1999), a língua não pode ser concebida como algo exterior às pessoas, mas como parte constitutiva dos seres humanos; por isso, é inconcebível equipará-la com uma abstração da língua, que é a gramática normativa. Mais, é inescrupuloso e ofensivo recriminar as pessoas pelo modo como falam. Assim sendo, “a língua como essência” não pode ser tomada como uma abstração capaz de ser ensinada. Ainda para Bagno (1999), a língua é uma atividade social, sendo fundamental para a interação humana. O autor afirma que isso “significa olhar para a língua dentro da realidade histórica, cultural, social em que ela se encontra, isto é, em que se encontram os seres humanos que a falam e a escrevem” (BAGNO, 1999, p. 19).

Em nossa sociedade, marcadamente pautada em relações de poder, àqueles que sofrem de preconceito linguístico são tomados como oprimidos. Os falantes que não utilizam sua língua de acordo com os preceitos da gramática normativa, considerada pura e imaculada, ensinada nas escolas e cultuada pela mídia, acabam por ficar à margem do exercício de sua cidadania, quando são vistos como inferiores àqueles que falam “corretamente” e, portanto, excluídos das mesmas oportunidades. Scherre (2005) corrobora essa questão:

Na história da humanidade, a sede de poder, de dominação, de colonização e de subjugação tem sido sempre levada às últimas consequências por todos os meios disponíveis: armas, ideias, tecnologias... e gramáticas normativas. Alguém pode até imaginar que exista alguma função inerente nisto tudo – quero crer que não -, mas o resultado nefasto até hoje é que o ser humano, embora já tenha conseguido grandes avanços na busca de tornar este mundo melhor, ainda não resolveu problemas básicos elementares, como o direito de todos à cidadania, no sentido mais amplo do termo: o direito a ter um teto, a ter comida, educação de qualidade, saneamento básico, transporte coletivo decente, a ter um emprego honesto e a ter lazer, muito lazer; e a aprender (e não adquirir) gramática normativa.

Praticar preconceito linguístico, explícito ou implícito, é, sem dúvida, atentar contra a cidadania. (SCHERRE, 2005, p. 89).

Freire (1987) avalia que “toda prescrição é a imposição da

opção de uma consciência outra” (p. 18). À luz das palavras do autor, o culto à gramática normativa nas escolas e na mídia, reflexos da sociedade, revela a imposição de uma forma em relação à outra. Quando reprimimos o uso das variedades populares em face do que preconizam os manuais, estamos abrindo mão de uma consciência outra do caráter da língua(gem). Não há somente uma maneira “correta” de falar ou escrever, o que coexistem são formas alternativas para a expressão, em determinado contexto. Quando alguém está em uma conversa de bar com os amigos é totalmente adequado falar algo do tipo: “hoje quem paga a conta é os homi”. Em outra situação, mais formal, como em uma reunião de trabalho ou apresentação de um seminário, espera-se que o mesmo falante diga algo, como: “serão os homens que pagarão o débito do orçamento”, com a aplicação do uso padrão da concordância verbal e da concordância nominal. Bortoni-Ricardo (2005) ratifica:

A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Os professores e, por meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidas de maneira diferenciada pela sociedade. (p. 15).

Com o intuito de tentar desmitificar algumas noções em torno do preconceito linguístico e empreender um ensino democrático de língua portuguesa, é que precisamos fazer chegar às escolas e aos seus professores, conhecimentos sociolinguísticos que os empoderem de ferramentas teóricas e metodológicas para lidar com as variedades linguísticas em sala de aula. Na próxima seção, faremos uma reflexão mais aprofundada sobre estratégias e contribuições que a sociolinguística pode oferecer ao ensino de língua portuguesa.

Para tentar dar fim aos mitos de que “o certo é falar assim porque se escreve assim”, “as pessoas sem instrução falam tudo errado”, ou “é preciso saber gramática para falar e escrever bem” trazidos por Bagno (2007), é preciso estar claro para professores, alunos e sociedade em geral, de que em toda língua há variação. O que outrora denominamos

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de formas alternativas de se expressar é o que o autor explica que “nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico” (BAGNO, 2007, p.48) Assim, não há nenhum respaldo científico em acreditar que a fala deve ser igual à escrita porque esta é mais valorizada que aquela ou que a gramática normativa (lembre-se que se trata apenas de uma codificação abstrata da língua e não sua representação real!) oferece subsídios suficientes para se falar e escrever “corretamente”. Bagno (2007) extrapola o conceito de variação afirmando que ela é um processo histórico em constante evolução:

Toda variedade linguística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam. Quando deixar de atender, ela inevitavelmente sofrerá transformações para se adequar às novas necessidades. Toda variedade linguística é também o resultado de um processo histórico próprio, com suas vicissitudes e peripécias particulares. (BAGNO, 2007, p. 44). Tão logo a “escola brasileira deixe de se ocupar mais de reprimir do que de incentivar o emprego criativo e competente do português” (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 16), tanto mais passaremos a gozar de uma educação mais democrática em que seja possível respeitar as variedades populares e dar acesso às variedades de prestígio, como uma opção às diferentes situações que se apresentarem aos alunos. A grande questão que gira em torno de tudo que já se falou sobre a relação/interface entre preconceito linguístico, sociolinguística e ensino de língua portuguesa é: como fazê-lo? Diante de inúmeras reflexões concretas sobre o tema, Bortoni-Ricardo (2005) apresenta uma possibilidade:

Da perspectiva de uma pedagogia culturalmente sensível aos saberes dos alunos, podemos dizer que, diante da realização de uma regra não padrão pelo aluno, a estratégia da professora deve incluir dois componentes: a identificação da diferença e a

conscientização da diferença. A identificação fica

prejudicada pela falta de atenção ou pelo desconhecimento que os professores tenham a respeito daquela regra. Para muitos professores, principalmente aqueles que têm antecedentes rurais, regras do português próprio de uma cultura

predominantemente oral são “invisíveis”, o professor as tem no seu repertório e não as percebe na linguagem do aluno, especialmente em eventos de fala mais informais.

O segundo componente – a conscientização – suscita mais dificuldades. É preciso conscientizar o aluno quanto às diferenças para que ele possa começar a monitorar seu próprio estilo, mas esta conscientização tem de dar-se sem prejuízo do processo de ensino/aprendizagem, isto é, sem causar interrupções inoportunas. Às vezes, será preferível adiar uma intervenção para que uma ideia não se fragmente, ou um raciocínio não se interrompa. Mais importante ainda é observar o devido respeito às características culturais e psicológicas do aluno. (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 42, grifos da autora).

O primeiro passo da proposta pedagógica de Bortoni-Ricardo é a identificação da diferença e, para tanto é preciso que o professor esteja consciente e respaldado teoricamente para discernir as diferenças linguísticas apresentadas pelo seu aluno, distinguindo com proficiência as diversas modalidades formais e informais da língua, assim como os diversos gêneros textuais e suportes para não incorrer da falácia de considerar que a diferença seja um erro linguístico. Assim sendo, será possível exercer o segundo passo, a conscientização dessa diferença, na medida em que há uma maneira adequada para cada situação comunicativa e que nenhuma é superior à outra, devendo todas serem analisadas com o mesmo grau de importância. Além de todos àqueles que proferem a “diferença”, em relação ao que é considerado padrão, serem respeitados de igual modo, a fim de que não se cometa preconceito linguístico e social.

2.5 CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA O ENSINO