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1.1 TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICA

1.1.3 Trazendo ligeiramente o conceito de comunidade de fala

O conceito de comunidade de fala, também chamada de comunidade linguística por Pagotto (2006), é bastante relativo e seu enfoque dentro do aparato da sociolinguística depende de escolhas conceituais e metodológicas. Muitos autores se referem à dificuldade de definição desse conceito, tão caro para a sociolinguística (MILROY, 1982; ROMAINE, 1982; FIGUEROA, 1994; HUDSON, 1996; PAGOTTO, 2004; PATRICK, 2004, entre outros). A dificuldade recai no foco despendido à linha teórica, seja o enfoque social, linguístico, psicológico ou sociocultural. (SEVERO, 2008, p.2)

Para a sociolinguística é a comunidade de fala e não o uso individual da língua o locus de análise dos fenômenos de variação e mudança. A sistematicidade da heterogeneidade linguística só pode ser captada quando o contexto social em que a língua se situa é levado em consideração. Gumperz (1996, p.362) ressalta essa unidade de estudo quando afirma que o início da sociolinguística moderna é marcado pelo reconhecimento de que a correlação entre aspectos linguísticos e forças sociais e políticas deve considerar a comunidade de fala. Para Labov, comunidade de fala pode ser assim entendida:

A comunidade de fala não é definida por nenhuma concordância marcada pelo uso de elementos linguísticos, mas sim pela participação num conjunto de normas compartilhadas; estas normas podem ser observadas em tipos de comportamento avaliativo explícito e pela uniformidade de padrões abstratos de variação que são invariantes no tocante a níveis particulares de uso. De igual modo, por meio de observações do comportamento linguístico, é possível fazer estudos detalhados da estrutura de estratificação de classe numa dada comunidade. (LABOV, 2008 [1972], p. 150).

A noção laboviana de comunidade de fala pressupõe conceber língua como uma forma de comportamento social, cujos falantes proferem avaliações (mesmo que de forma inconsciente) quanto ao uso das formas variantes na dimensão espacial em que estão inseridos. Quando os falantes estão conscientes de certos usos acabam por emitir juízos de valor sobre as variáveis linguísticas e isso fica evidente pelas marcas sociais que são encontradas na comunidade, conforme Coelho et

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al (2015). Vale destacar o que os autores falam sobre o papel da avaliação das formas variantes:

A noção de comunidade de fala suscitou alguns questionamentos, relacionados principalmente ao papel da avaliação das formas variantes, que não se dá apenas conscientemente (como nos estereótipos), mas também inconscientemente (no caso dos marcadores e indicadores) e à sua operacionalização (por exemplo, existe um número determinado de formas linguísticas variáveis frente às quais os falantes teriam uma atitude uniforme que permita a identificação de uma comunidade de fala?). (COELHO et al, 2015, p. 68).

É a avaliação social que o falante tem sobre determinada variável que possibilita compreender em que nível se opera a consciência do falante sobre a língua. Para Labov (1972) há uma classificação que engloba essa avaliação social a que os falantes estão sujeitos, quais sejam: (i) os indicadores, que operam num nível inconsciente, dizem respeito aos elementos linguísticos sobre os quais haveria pouca força de avaliação, podendo haver diferenciação social de uso desses elementos correlacionados à idade, à região ou ao grupo social, mas não quanto a motivações estilísticas; (ii) os marcadores, que também permanecem abaixo do nível de consciência, correlacionam-se às estratificações sociais e estilísticas e podem ser diagnosticados em testes subjetivos; (iii) os estereótipos, que são formas socialmente marcadas e reconhecidas pelos falantes. Alguns estereótipos podem ser estigmatizados socialmente, o que pode conduzir à mudança linguística rápida e à extinção da forma estigmatizada. Outros estereótipos podem apresentar prestígio que varia de grupos para grupos, podendo ser positivo para alguns e negativo para outros. (LABOV, 1972)

Segundo Labov (1972), as atitudes sociais ou significado social das variantes é que definem o comportamento linguístico de uma comunidade de fala. Isso significa dizer que cada comunidade toma uma postura social, identitária em relação à língua, seja operando no eixo de prestígio, seja no eixo de estigma a uma variante. Pagotto (2006) alude que tais significados sociais

podem ser entendidos na dimensão espacial do processo de variação, quando costumam ser associados a dialetos definidos regionalmente;

podem ser entendidos na dimensão social, quando são associados a índices demarcatórios de grupos os mais diversos, tais como classe social, nível de escolaridade, tipo de emprego, idade, gênero, que têm a ver com os papéis sociais que os indivíduos desempenham nas relações sociais; ou têm ainda a ver com contextos de comunicação, definidos como os lugares em que tais papéis se confrontam. (PAGOTTO, 2006, p. 58).

A noção laboviana de comunidade de fala foi reelaborada por Guy (2001)9, o qual a constitui a partir de três critérios (i) há características linguísticas compartilhadas, (ii) possui densidade de comunicação relativamente alta e (iii) normas e valores compartilhados. O que delimita as fronteiras de cada comunidade não é somente a frequência de uso dos fenômenos em variação, mas sim aspectos gramaticais desses. A sala de aula (locus de análise deste estudo) se configura como uma comunidade de fala quando apresenta membros que possuem uma frequência alta de comunicação entre si e que compartilham características linguísticas e valores de juízo sobre os usos que fazem da língua, de maneira geral.

Para o autor, a comunidade de fala se articula em torno de aspectos linguísticos e sociais, quando o que distingue uma comunidade da outra se baseia em “diferenças em efeitos contextuais”. Para ele, as pessoas costumam falar mais facilmente com pessoas do mesmo bairro ou da mesma cidade e tendem a falar de forma parecida com seus pares. Contudo, isso só ocorre por conta da atitude e vontade do falante. Apenas o contato linguístico entre indivíduos não garante que falarão de maneira semelhante. Ainda, Guy afirma que a distinção de um indivíduo de outro na mesma comunidade se deve a fatores de ordem extralinguística, no âmbito das “diferenças no nível geral de usar ou não um fenômeno variável” (GUY, 2001, p. 8).

Uma comunidade de fala abriga o fenômeno da variação linguística quando os falantes comumente utilizam recursos na língua que possibilitam operar com “diversas maneiras alternativas de dizer a ‘mesma’ coisa” (LABOV, 2008 [1972], p. 221). Assim, é que para lidar com a variação linguística na comunidade de fala é preciso olhar os dados que são usados pelo falante em situações cotidianas, de menor

9 A definição de comunidade de fala que será assumida neste trabalho é a de Guy (2001).

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monitoramento, e relacioná-los a uma teoria e a um método que possam dar conta de compreender o funcionamento do objeto em estudo.

Na próxima seção, tratamos da concepção de Labov acerca da narrativa de experiência pessoal e sua relação com o conceito de vernáculo, um dos pressupostos básicos da teoria variacionista.