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Prefeito conclama comunidade a participar de um amplo programa de restauração de Blumenau Jornal de Santa Catarina, Blumenau, 11.08.1983.

Projeto Nova Blumenau: os usos do passado

86 Prefeito conclama comunidade a participar de um amplo programa de restauração de Blumenau Jornal de Santa Catarina, Blumenau, 11.08.1983.

seus “herdeiros”, os blumenauenses: ordeiro, trabalhador, progressista, criativo, forte, renovador, povo bravo, com garra, espírito empreendedor e espírito de luta:

(...) desfigurada e perplexa, nossa comunidade ordeira, trabalhadora e progressista se viu golpeada de surpresa (...) Para recomeçar teremos, como bravos pioneiros, de nos valer da garra e do inquebrantável espírito de luta da gente blumenauense, criativa, forte e renovadora (...) Será no espírito empreendedor do blumenauense, em sua fortaleza moral que haveremos de nos abrigar67

A história da Colônia Blumenau foi paralisada, congelada numa imagem romantizada e positivada, para atender a uma necessidade do presente. Esta referência ao passado, conforme Michael Poliak, “(...) serve para manter a coesão dos

grupos e das instituições que compõem uma sociedade (...)”66. O recurso ao passado

tem uma função ativa neste processo. Tal qual o romantismo do século XIX, cujo caráter nostálgico encobria uma exigência de natureza política, em Blumenau o governo municipal construiu uma memória que reelaborou a história, produzindo uma visão sacralizada do passado, para incutir na população uma obrigação “moral” de reconstruir a cidade. Sabe-se que a memória é seletiva, e aí reside o perigo de sua manipulação, pois a “memória coletiva é não somente uma conquista, é também um

instrumento e um objeto de poder”.89

Conforme Michel de Certeau, a circularidade do discurso só é possível quando

87 Ibidem.

88 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. p. 09.

89 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4‘ ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. P. 476.

ganha credibilidade e faz crer que está falando em nome do “real”. Para tanto, necessita-se lançar mão de uma crença que dê corpo à lei. Daí a necessidade de referência a testemunhas, a mártires ou a exemplos, para que estes a tornem digna de crédito. O “exemplo” do pioneirismo alemão referenciado nos discursos do Projeto Nova Blumenau é o recurso usado para dar credibilidade ao discurso. E este discurso só circula, porque já se tornou um “relato”, “um texto articulado em cima do real e

falando em seu nome, narrada por corpos”.90

Apesar do Projeto Nova Blumenau dizer-se portador do novo, a todo instante referia-se ao antigo, ao passado, à história. Fundamentava a necessidade da reconstrução, através da referência ao modo pelo qual os pioneiros alemães do século passado lidaram com as enchentes. Conforme Cornélius Castoriadis, “mesmo na

sociedade mais arcaica, o presente é sempre constituído por um passado que o habita e por um futuro que o antecipa. Trata-se sempre de um presente histórico91”. A

denominação “novo”, portanto, servia apenas para evidenciar a necessidade de superação da catástrofe e se retomar o ritmo econômico da cidade, daí a confecção de adesivos em letras góticas com os dizeres “Blumenau não pode parar” . Quer dizer, deveria-se continuar. O que de “novo” poderia ter esta cidade, se para reconstruí-la recorria-se à necessidade de imitar os antepassados? Há uma ilusão do “novo”. Portanto, paradoxal mostrava-se este “novo” pois que para fundá-lo, remetia-se a um momento já vivido: à época da Colônia Blumenau. O imaginário assim se constrói: ele

90 CERTEAU, Michel de. A maquinaria da representação. In: A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 241.

não só se utiliza de elementos já dados para produzir um outro, como dá a estes elementos uma nova forma; “(...) utiliza os elementos que aí estavam, mas a forma,

enquanto tal, é nova92’’. Portanto, o Projeto Nova Blumenau constituiu uma nova forma

de representação do blumenauense, calcada em elementos do passado.

O rio Itajaí-Açu periodicamente abandona seu leito normal, provocando transtornos, prejuízos e também a difusão de discursos. As enchentes acabaram tornando-se o mito fundador do imaginário da “Cidade do Trabalho”, uma vez que a cada inundação a cidade se reconstrói. Se o discurso fundador produz “a construção

do imaginário necessário para dar uma “cara” a um país em formação”93, o discurso da

persistência dos colonos frente às enchentes em Blumenau sempre serviu para realimentar o imaginário da “operosidade germânica” na cidade.

Este imaginário sempre precisou ser reelaborado para se continuar representando Blumenau como teuto-brasileira, por isso a constante referência ao mito fundador das enchentes. A relação que se faz entre história, pioneirismo e enchentes acaba por promover a construção de uma representação do “blumenauense” , como herdeiro das virtudes do colono alemão. Conforme Janaína Amado, “(...) memória e

história conjugam-se também para conferir identidade a quem recorda”94. Maria

Bernardete Ramos Flores já refletiu neste sentido: “Desde os tempos de colônia,

Blumenau, com uma longa história de enchentes, recorria sempre à esta tragédia para

92 CASTORIADIS, op. cit., p. 89.

93 ORLANDI, Discurso Fundador: a formação..., p. 17.

94 AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. In: Revista de História da Unesp. São Paulo, v. 14, 1995. P. 132.

fortalecer, animar e realimentar o imaginário de seu povo como trabalhador, conquistador de seu futuro95’’.

Com este mesmo objetivo, após as enchentes de julho de 1983, por ocasião da comemoração do aniversário da cidade, fez-se novamente referência à tragédia. O prefeito Daíto dos Reis aproveitou o festejo dos 133 anos da cidade para exaltar o “potencial de recuperação” da cidade. Conforme a edição do jornal, o prefeito:

(...) traçou um paralelo histórico entre as dificuldades recentemente sofridas por todo o povo blumenauense ñas últimas enchentes e as que adviram ao fundador da cidade após a chegada dos dezessete imigrantes alemães, ressaltando que tal qual o fundador da cidade, o povo blumenauense não esmoreceu frente às dificuldades que a natureza fez provar.96

Esta referência à colonização estabelecia uma visão homogênea do passado, com vistas à criação de um dever de se continuar o “progresso” desencadeado pelos imigrantes. A comemoração do aniversário da cidade não fugia ao que é comum a este tipo de evento: a rememoração. Comemorar significa trazer à memória. E o trazer à memória atende a necessidades do presente. A referência à persistência dos imigrantes, enquanto discurso fundador do Projeto Nova Blumenau, funcionava

“inventando um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente” ao mesmo

93 FLORES, María Bemardete Ramos. Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp. Letras

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