• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2: Deveres do altar: aproximação religiosa e neutralidade política

3. Pressão espanhola e o “parágrafo interessante”

Leão XII estava bem informado sobre a situação dos movimentos emancipacionistas, pois havia pertencido à comissão de cardeais que deliberou a respeito do Chile e Argentina. Além disso, conhecia os memoriais dos arcebispos de Caracas e de Lima e não ignorava as notícias que Muzi enviava do Prata.

Quando foi pressionado pelo governo espanhol a publicar uma encíclica a favor do legitimismo de Fernando VII, Leão XII pensou em dirigir-se aos fiéis da América Espanhola, mas sem citar o nome do rei. O que Leão XII condenava, propriamente, não era a independência da Hispano-América em si, mas o modo violento e turbulento como se processava. O pontífice queria que o documento viesse representar uma tentativa de mediação entre as partes litigantes, mas o que se percebe é a insegurança da política pontifícia.

Como Leão XII sabia que nenhuma das partes aceitaria meio termo, viu-se forçado a fazer concessões a ambas, o que comprometeu o documento. Para não se indispor com os independentistas, não citou o rei, mas insinuou, mediante passagens bíblicas gerais, a devida subordinação aos soberanos postos por Deus e generalizou de forma excessiva o

9 CODES, Rosa María Martínez. La Iglesia Católica en la América Independiente. Madri: MAPFRE, 1992. p.

Capítulo 3: Reação legitimista e posterior volta à neutralidade: configuração da política pendular

caráter sangrento da revolução, uma vez que desde 1810 não havia surgido guerra civil entre patriotas e regalistas no Prata, por exemplo.

Antes, o papa havia prometido a Vargas Laguna a inserção de uma cláusula posta por Pio VII na encíclica de 1816 em relação ao clero hispano-americano na qual exaltava as virtudes de Fernando VII e recomendava aos súditos do ultramar que imitassem o exemplo de lealdade e obediência dos súditos espanhóis quando da invasão de Bonaparte. O breve que Leão XII escreveu a princípio não dispunha sobre tal parágrafo. Em seu lugar, o papa motivava a expedição do breve em razão dos desejos e demandas do rei, mudança que não foi compreendida por Vargas Laguna. O embaixador espanhol suplica ao pontífice para que incluísse o “parágrafo interessante”10 contido na encíclica de Pio VII de 1816, pois

o papa já se havia comprometido em incluí-lo.

Na primeira redação do documento, da qual se encarregou o monsenhor Paolo Polidori, evitava-se entrar na questão política, não se mencionando nem a Espanha nem o rei. Ao ver o documento, Vargas Laguna o qualificou como insultante e mobilizou os embaixadores da Áustria e da Rússia para pressionarem Leão XII a fim de acrescentar o tal parágrafo à encíclica. Após forte pressão, Leão XII cedeu e incumbiu a nova redação ao abade Francesco Capacini, que submeteu o “parágrafo interessante” a duas revisões até fazê-lo perder a tonalidade política11.

Diante das circunstâncias, o sumo pontífice mandou reunir os cardeais e os fez estudar o texto do primeiro breve – sem menção alguma à Espanha ou ao rei – e as duas

10 Vargas Laguna chama de “parágrafo interessante” o parágrafo que contém exortação de obediência ao rei

Fernando VII constante da encíclica Etsi Longissimo de Pio VII, em 1816.

11 No primeiro ajuste, conserva a exortação à obediência política, mas não se refere ao rei e sim às legítimas

autoridades, só mencionando a preocupação do monarca com o bem da religião e de seus súditos. Retira também o exemplo dos legalistas da Espanha. No segundo ajuste, o “parágrafo interessante” reduz-se somente à preocupação do monarca com seus súditos.

Entre o trono e o altar: política pendular da S. Sé no reconhecimento das independências hispano-americanas

modificações: uma proposta por Vargas e outra por Capaccini. Os cardeais foram unânimes em dizer, em seu parecer, que, se o papa pudesse desistir de suas promessas e não emitisse nenhuma encíclica ao episcopado hispano-americano, seria a melhor decisão, considerando que o contexto em que eles se encontravam no momento era muito distinto daquele de 1816, com Pio VII. Se, no entanto, a encíclica tivesse que ser publicada, convinha excluir o texto de Vargas que exortava ao rei e eleger o de Capaccini pois

“ha de evitarse con sumo cuidado decir cualquier palabra que pueda herir a gobiernos que, si bien ahora sean de hecho rebeldes, pueden ser en pocos años potencias reconocidas, y en las cuales, lo mismo que en otras, puedan conservarse y aún erigirse iglesias florecientísimas.”12 (Grifo meu).

Além disso, preocuparam-se com a possibilidade de não se reconhecer o breve como autêntico na Hispano-América. Nota-se que os cardeais tentaram manter a neutralidade política vaticana, seguindo o antigo esquema de assumir uma atitude política internacional apenas quando houvesse certeza de quem sairia vencedor. Mesmo com a observância a esses fatores, Leão XII acabou por entregar a Vargas Laguna o documento na forma desejada pelo governo espanhol13. Vargas Laguna havia aproveitado a comemoração

de um ano de pontificado de Leão XII para pressioná-lo diplomaticamente, por meio de uma mensagem de felicitação, dizendo que enviaria ao rei uma cópia do documento e que esperaria ordens da coroa. Demonstrando alto grau de comprometimento, o papa publicou o breve como desejado pelo embaixador espanhol após ameaça de esperar ordens da Espanha. Embora o papa não tenha retirado o breve, entregou-o sem atender a todas as expectativas de Vargas Laguna, isto é, sem a inclusão do “parágrafo interessante”.

12 LETURIA, Pedro. Relaciones entre la Santa Sede e Hispanoamérica. v. II. Caracas: Sociedad Bolivariana

de Venezuela, 1959. p. 256.

13 Dirigindo o documento a todos os bispos e arcebispos da América Espanhola e não só à América Meridional

Capítulo 3: Reação legitimista e posterior volta à neutralidade: configuração da política pendular

Apesar do documento atender aos anseios da coroa espanhola, não reproduzia o desejo do embaixador em Roma de forma fiel: ainda que fizesse elogios ao rei e citasse o exemplo dos legalistas da Espanha, omitia exortação expressa de obediência à coroa. Para o pontífice, tal exortação seria por demais comprometedora. É pouco provável que Vargas Laguna, com toda sua experiência e habilidade política, não tenha notado essa falta, mas aceitou o documento assim mesmo. É possível que tenha aceitado o breve da forma em que se encontrava, por não querer iniciar nova pressão sobre o papa, uma vez que a pressão exercida até então já tinha sido bem desgastante.

Após difíceis negociações, o embaixador espanhol em Roma admitiu o breve e o enviou no dia 30 de setembro de 1824 a Madri, deixando transparecer no seu ofício ao ministro de Estado o seu receio de que o documento não satisfizesse a Fernando VII. Ao chegar a encíclica às mãos de Fernando VII, o rei logo respondeu ao embaixador que desejava uma exortação mais expressa e direta à legitimidade monárquica. Todavia, o tão poderoso embaixador espanhol Vargas Laguna morria em outubro de 1824, o que paralisou as ações a favor da expedição do novo documento. Dessa forma, a coroa decidiu publicar o texto da encíclica em fevereiro de 1825 na Gaceta de Madri.

A imprensa liberal de Londres e Paris observara o caráter comprometido do documento, como os cardeais haviam previsto. O papa resolveu entregar o breve nei

termini combinati14, demonstrando seu comprometimento com a política espanhola e a

fraqueza para suportar a pressão do embaixador espanhol. O pontífice estava comprometido não só com a lealdade ao rei, com também a laços de amizade com Vargas Laguna. O cardeal Bernetti, em carta ao ministro de Estado de Fernando VII, escreveu que o papa

14 LETURIA, Pedro. Relaciones entre la Santa Sede e Hispanoamérica. v. II. Caracas: Sociedad Bolivariana

Entre o trono e o altar: política pendular da S. Sé no reconhecimento das independências hispano-americanas

sofria com ter que escolher seguir os deveres do seu ofício ou o desejo de conservar inalterada a preciosa harmonia entre a Santa Sé e a coroa espanhola, viva há tanto tempo15.