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Capítulo 2: Deveres do altar: aproximação religiosa e neutralidade política

8. Significado da missão Muzi

No que diz respeito ao caráter interno da missão, para Consalvi e o papa Pio VII a missão não continha nenhuma significação política, nem pública nem secreta. Representava mais uma atitude de amenização da situação hispano-americana, esfriando os ânimos, ao mesmo tempo que se provia espiritualmente o Novo Mundo e a Santa Sé ia tendo mais noção sobre o verdadeiro o estado da Igreja americana. A isenção política da missão foi reafirmada e reforçada por Consalvi com insistência. O porta-voz de Pio VII temia que o envio do vigário apostólico fosse interpretado, na Europa e na América, como autorização de independência e como fim definitivo do padroado real. A tentativa de dar à missão uma roupagem puramente espiritual refletia-se no próprio título dado a Muzi, que não foi o de núncio ou de internúncio (título dado aos agentes diplomáticos do papa junto a governos reconhecidos).

Pode-se dizer, todavia, que o conteúdo político da missão Muzi residia no desejo da Santa Sé oficializar sua neutralidade no cenário internacional. Não é possível acreditar que o envio de um vigário apostólico à América tivesse caráter “meramente espiritual”23, que convinha às necessidades do Novo Mundo, sem comunicação com Roma.

É também interessante para a Santa Sé reafirmar, de forma pública, sua função de

23 LETURIA, Pedro. Relaciones entre la Santa Sede e Hispanoamérica. v. II. Caracas: Sociedad Bolivariana

Entre o trono e o altar: política pendular da S. Sé no reconhecimento das independências hispano-americanas

provedora espiritual desvinculada de assuntos políticos, ao menos quando a discussão sobre tais assuntos se dava no meio de incertezas e inseguranças.

Em contrapartida, de acordo com a carta que Cienfuegos envia a O’Higgins e que o novo governo difunde por todos os Andes, percebia-se a intenção política do enviado chileno. Cienfuegos via nessa missão a manifestação de benevolência do papa para com a independência, que não seria contrária aos preceitos religiosos – visão essa que iria fazer fervilhar as lutas emancipacionistas. Espalhou-se a idéia de que o papa reconhecia nos movimentos de independência a semente da religião e do evangelho, estando seguro com relação às independências. Mas se a missão Muzi não representava um passo político a favor da emancipação, também não vinha como observadora e espiã da Santa Sé, envolvida na restauração do poder real na Espanha, como se propagou em Buenos Aires.

A diferença de percepção sobre o objetivo da missão entre a Santa Sé a Hispano-América não pode ser explicada apenas enfocando o desejo político que, em verdade, o Chile tinha para com as relações com o Vaticano. Cienfuegos tinha seu projeto pessoal. Como voltou sem nenhum título consagrado pelo papa, como queria, tentou ao menos mostrar a vitória de sua embaixada24. Não que ele não tivesse percebido os objetivos

da política de Consalvi, mas os apresentou como concessões papais. Fazendo isso, criou dificuldades para as futuras relações com Muzi e com as autoridades civis, o que foi um dos fatores essenciais no fracasso da missão papal enviada ao Chile.

Muzi vinha para a América com extensos poderes para atacar a origem dos problemas de jurisdição dos cabidos, párocos, governadores eclesiásticos e superiores religiosos (de legitimidade duvidosa em razão das revoluções hispano-americanas), ao

24 HENDRICK, Frances. Artigo: “The first apostolic mission to Chile”. Hispanic American Historical Review

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mesmo tempo que tinha poderes para realizar dispensas matrimoniais, secularização de religiosos, redução dos dias festivos, além de poder absolver hereges públicos e dogmatizantes, conceder indulgências, oratórios e uso do santo crisma25. Além de todos

esses poderes, ainda lhe foram conferidas mais três faculdades importantes: i) o legado poderia conceder a bula da cruzada usada na forma dos tempos coloniais; ii) nomearia por si mesmo, e de acordo com o governo e aquiescência do bispo de Santiago, três vigários apostólicos que consagraria como bispos in partibus e iii) permitiria ao chefe de Estado o uso do padroado na apresentação para cargos inferiores ao episcopal, pois nesses não se reconhecia o padroado26.

Assim, Muzi saiu de Roma como enviado papal não só do Chile, como também do Prata e, em razão da carta de Lasso de la Vega relatando a deplorável situação da Igreja na Colômbia, estenderam-se suas faculdades por toda a América Espanhola. Contudo, recomendou-se parcimônia em seu uso, só atendendo a quem chamasse, fazendo com que esses países não perdessem a ligação com o centro da unidade católica estabelecido em Roma. Vale ressaltar o cuidado que se teve em aconselhar respeito aos cabidos e bispos legítimos, até com abstenção de seus poderes, caso em alguma daquelas repúblicas insurgentes estivesse conservado o governo espanhol ou tivesse a possibilidade de ser restaurado.

Dessa sugestão podem-se tirar duas conclusões. A primeira, que a Santa Sé temia que qualquer atitude precipitada, ante as oscilações dos acontecimentos, tornasse sua

25 Ibidem, p. 657.

26 LETURIA, Pedro. Relaciones entre la Santa Sede e Hispanoamérica. v. II. Caracas: Sociedad Bolivariana

de Venezuela, 1959. p. 186 -188.

HENDRICK, Frances. Artigo: “The first apostolic mission to Chile”. Hispanic American Historical Review (HAHR). v. 22, n.˚ 4, p. 657. November. 1942.

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posição internacional difícil no caso de a Espanha recuperar seu poder. A segunda, que a habilidade do vigário deveria ser muito grande. Deveria contar com um sentido de estratégia e oportunidade para perceber onde o poder espanhol resistia ou podia ser restaurado, o que é provável que Muzi não tivesse.

É certo que os chilenos se haviam adiantado a todos os hispano-americanos no pedido de uma legação para o Chile. Mas, com essa missão pública ao Chile, Muzi levava outra mais secreta, porém não menos direta e desejada, para a Argentina. Como se disse, Muzi sai como enviado papal ao Prata. A Argentina estava vinculada ao Chile cultural, geográfica e estrategicamente, o que despertou o interesse da Secretaria de Estado em buscar um meio de resolver o problema da Igreja argentina. Como a missão teria que passar por Buenos Aires para chegar ao Chile, Consalvi achou a oportunidade ideal para solucionar o problema argentino sem a necessidade de enviar outro vigário para isso.