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4 ENCONTRO DE VOZES I: CONSONÂNCIAS, DISSONÂNCIAS E

4.2 PRIMÓRDIOS DA FUNDAÇÃO DA TERAPIA OCUPACIONAL NO

A metáfora da árvore e a Terapia Ocupacional.

A terapia ocupacional foi desenvolvida como uma árvore há quase 100 anos. Sua semente foi germinada de diferentes áreas de conhecimento e disciplinas, e plantada em terra de clima social e político adverso. Nos primeiros anos, sua semente estava brotando e gerando as primeiras raízes que permitiram absorver nutrientes autorizados a produzir seu próprio alimento, a ocupação. Posteriormente, foi o desenvolvimento de uma haste, que estabeleceria a sua fundação, em 1917. Continuou a crescer, formando as primeiras ramificações, e com elas as primeiras folhas e fundamentos próprios da disciplina.

Com o passar do tempo, e, uma vez formado o tronco, as folhas se multiplicaram suficientemente elevado, esta árvore aumentou sua ramificação orientando-se para diferentes campos de ação, cada vez mais complexos e específicos. Este processo aconteceu de tal forma que algumas das suas folhas se "distanciaram" do tronco, esquecendo o princípio constitucional. Além disso, após a floração e polinização subsequente, algumas sementes atingiram outros países, onde novas árvores e outras ramificações foram geradas, e com ela, novas folhas e identidades locais e modos de fazer terapia ocupacional.

Atualmente, embora haja um consenso sobre o que é uma árvore, e neste caso, a terapia ocupacional, claramente existem muitas espécies, ou tipos de intervenções diferentes. Na verdade, até em uma mesma espécie, podem ocorrer algumas ramificações que são desconhecidos para si mesmos, porque se encontra "aparentemente" em um lugar muito longe do tronco. Este seria gerado por desconhecer a sua história, ou de onde provem ou quem foram os precursores do seu crescimento, ou quem semeou a semente do seu nascimento. É essencial, portanto, que esse ramo, conheça como se chegou até onde está e de que maneira (JARA, 2013).

Embora o objeto deste estudo esteja circunscrito na trajetória da Terapia Ocupacional enquanto profissão de nível superior, considero oportuno contextualizar, ainda que brevemente, o cenário em que surgiu a “ramificação” da Terapia Ocupacional no Brasil. Sua fundação é decorrente da quantidade de entidades e serviços de reabilitação que surgiram e que demandaram a criação de cursos de formação em Terapia Ocupacional e Fisioterapia, bem da influência do Movimento Internacional de Reabilitação (MIR).

Na segunda metade do século XIX, foram fundadas as primeiras instituições brasileiras, voltadas para o atendimento de pessoas com incapacidades físicas e sensoriais e em sofrimento psíquico nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo,

Minas Gerais e Pernambuco. Essas instituições impulsionaram o desenvolvimento da profissão e tiveram participação importante no atendimento de pessoas com deficiência. Em 1854, o imperador Dom Pedro II criou o Asilo dos Inválidos da Pátria, para atender os feridos e mutilados na guerra, o qual funcionou até 1976 para brigar deficientes físicos carentes. Para o atendimento de pessoas com deficiências sensoriais e hanseníase, foram criados, no Rio de Janeiro, em 1854, o Instituto Benjamin Constant, outrora denominado Imperial Instituto dos Meninos Cegos, e em 1857, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. Neste mesmo ano o Imperador Dom Pedro II, criou, em São Paulo, o Instituto Padre Cícero, destinado ao atendimento dos deficientes visuais. Em São Paulo, no início do século XX, destinado ao atendimento dos deficientes visuais, foi fundado o Instituto Padre Cícero. Nessa época, também foram criados os hospitais de lázaros para o isolamento dos doentes acometidos pela hanseníase. Nas primeiras décadas desse século, a assistência aos deficientes era viabilizada por instituições filantrópicas, à exceção das políticas públicas voltadas para o isolamento compulsórios dos deficientes e doentes mentais (SOARES, 1987; MAIOR, 1997).

Para o atendimento de doentes mentais40, em 1852, no Rio de Janeiro, foi fundado o Hospital Dom Pedro II. No mesmo ano, São Paulo inaugurou o Asilo Provisório dos Alienados da Cidade de São Paulo. Esses hospitais foram criados para atender aos doentes mentais de todo o país e passaram a receber os indivíduos considerados insanos que foram retirados das cadeias e enfermarias das Santas Casas. O atendimento era realizado sob a ótica do Tratamento Moral41, e as

ocupações propostas eram oficinas de alfaiataria, marcenaria, sapataria, flores, fiação de estopa, atividades similares às atividades urbanas da economia nacional. Em 1898, foi fundado, em São Paulo, o Hospital Juqueri (posteriormente denominado Franco da Rocha), com 1.400 alqueires, destinado a atender toda a demanda de alienados. Dirigido por Franco da Rocha e, mais tarde, por Pacheco Silva, introduziu sob a denominação de Praxiterapia, o tratamento por intermédio do

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Denominação utilizada à época.

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Modelo de tratamento proposto por Philip Pineal, baseado nos princípio da filosofia humanista e nos ideais da Revolução Francesa: “Liberdade, Racionalidade e Humanidade”. Propõe a substituição do tratamento realizado por meio de confinamento asilar e em castigos e punições corporais por uma assistência humanizada, em que os pacientes estariam livres das prisões e das punições corporais. Além disso, utilizava a ocupação como procedimento terapêutico baseada na crença de que a ocupação exercia um papel organizador, disciplinador e estruturante que contribuía para a recuperação do paciente.

trabalho, no qual se destacavam as atividades agrícolas. Em 1911, no Rio de Janeiro, foram fundadas duas colônias, uma destinada ao público masculino, a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá; e outra, o Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro, destinado ao público feminino. A tônica do tratamento era a ocupação por meio de atividades agrícolas e oficinas diversas, como marcenaria, tipografia, artesanato, desenho e escrita, costura, entre outras (SOARES, 1987).

Em 1929, o alienista Henrique de Oliveira Matos, escreveu “Labortherapia nas Affecções Mentaes”, tese inaugural da Cadeira de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) – um marco da produção científica brasileira, baseada na experiência realizada no Hospital Juqueri. No mesmo ano, em Minas Gerais, foi introduzida na rede estadual de ensino a educação especializada para crianças com deficiências mentais e problemas emocionais, ficando a cargo de Helena Antipoff (psicóloga russa), convidada a participar da equipe responsável pela formação e supervisão de professores para atuar na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico. Além de desenvolver um importante trabalho na formação de recursos humanos, também fomentou a criação de entidades na sociedade civil para prestar atendimento às pessoas com deficiência mental (SOARES, 1987).

Na década de 1930, em Pernambuco, o neuro-higienista Ulisses Pernambucano criou o serviço de Assistência ao Psicopata. Ulisses introduziu no Nordeste a ocupação terapêutica, iniciando a Praxiterapia em um sistema pioneiro de atenção ao doente mental, que integrava os três níveis de atenção à saúde (prevenção, promoção e reabilitação) e era dinamizado por equipes multiprofissionais com ações institucionais e comunitárias extra-hospitalar. O serviço era constituído por um ambulatório, o primeiro instituído no Brasil; um serviço aberto, um serviço de Higiene Mental; um Hospital Psiquiátrico para casos agudos; um Manicômio Judiciário e duas Colônias Agrícolas para pacientes crônicos, uma masculina em Barreiros e outra feminina em Recife, mais tarde denominada Colônia Ulisses Pernambucano. Na colônia masculina, predominava o trabalho agrícola, e os doentes moravam em casas por eles construídas, cultivavam suas roças, pescavam e forneciam farinha para outros hospitais do estado (SOARES, 1987).

Outro importante marco que merece destaque é a criação, na década de 1940, do serviço de Terapia Ocupacional em Engenho de Dentro/RJ, sob o comando de Nise da Silveira, psiquiatra que desenvolveu importante trabalho na área da Terapia Ocupacional. Relutante às práticas da Psiquiatria da época, recusou-se a

aplicar eletrochoque nos pacientes e, por isso, foi transferida para o trabalho de Terapia Ocupacional, na época, pouco valorizado pelos médicos. Nise transformou o modo de atendimento, ampliando as atividades oferecidas, incluindo ateliês de pintura e modelagem, e interessou-se pelo atendimento aos pacientes agudos, superando, assim, a visão vigente de destinar a ocupação apenas aos pacientes crônicos. Nise da Silveira ministrou diversas edições do Curso Elementar de Terapia Ocupacional a fim de instrumentalizar os monitores que com ela trabalhavam (SOARES, 1987).

Na década de 1930, Helena Antipoff criou o Movimento Pestalozzi do Brasil, oriundo da iniciativa de pedagogos na criação de modelos de educação especial para crianças com deficiência mental. Assim, ações desse movimento, rede filantrópica de ensino e iniciação profissional separada do ensino regular, estenderam-se a Minas Geais (1932), Rio de Janeiro (1945), Niterói (1948) e São Paulo (1954). Esse movimento ganhou o apoio dos professores e dos pais das crianças com deficiência mental. Nessa mesma lógica, na década de 1950, surgiram as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes). No Rio de Janeiro, em 1954, foi fundada a Apae, por Henry Broadbent e Dona Beatrice, pais de uma criança com Síndrome de Down (BARROS, 2009; MAIOR, 1997).

A assistência na área da Reabilitação surgiu no pós-guerra, a partir do MIR, e, no Brasil, atendia aos acidentados e sequelados do trabalho e, principalmente, à demanda surgida em decorrência da epidemia de poliomielite, doença grave que atingia todas as classes sociais. Nesse contexto, surgiram os centros de reabilitação. Em 1954, no Rio de Janeiro, foi criada a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR) (1955); o Instituto Brasileiro de Recuperação Motora; o Centro Nossa Senhora da Glória (1958), destinado à recuperação de pacientes neurológicos, e a Associação Fluminense de Reabilitação (AFR) (Niterói, 1958). Em São Paulo, surgiu a Associação de Amigos da Criança Defeituosa (AACD), em1952, com o objetivo de tratar vítimas de paralisia infantil, e o Instituto Nacional de Reabilitação (Inar), vinculado à Faculdade de Medicina da USP (BARROS, 2009; MAIOR, 1997).

Nascimento et al. (2006), ao abordar a profissionalização da Fisioterapia em Minas Gerais, apontam que os rudimentos dos recursos fisioterapêuticos de massagem e hidroterapia surgiram na década de 1940 nas termais mineiras. Esses recursos, inicialmente não utilizados com fins de tratamento, tinham como objetivo a

manutenção da saúde, cujo conceito, à época, estava relacionado à aparência física, aos hábitos saudáveis e à higiene pessoal.

Na década de 1950, um grupo de ortopedistas do Hospital Baleia, inicialmente treinavam as irmãs de caridade42 para o atendimento no serviço de reabilitação, pautado no modelo americano de reabilitação pós-guerra, com foco na reabilitação de lesões traumáticas. Em 1952, foi criado um serviço voltado para crianças em tratamento de tuberculose óssea e poliomielite. Esse hospital ganhou, então, reconhecimento, tornando-se referência em Minas Gerais. Valendo-se desse status, os médicos voltados à medicina física e à reabilitação propuseram a criação de um hospital especializado no atendimento de pessoas com deficiência física. Nasceu, assim, o Hospital Arapiara, destinado à reabilitação física infantil e adulta (NASCIMENTO et al., 2006) e que desempenhou um papel importante na formação de terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas, como veremos mais adiante.

Os dados de Pernambuco aparecem en passant na literatura, Barros (2009 p. 39) assim se refere: “Em Pernambuco, foi criado o primeiro centro de reabilitação no mesmo ano” (quando se refere à criação do Centro de Reabilitação Sara Kubitschek em Brasília, em 1960). Em Maior (1997, p. 5), encontramos a seguinte referência: “além de importantes centros na Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Sul”.

Nesse contexto, iniciou-se o processo de construção da profissão e a formação dos primeiros terapeutas ocupacionais no país. Não havia, nesse momento da história da profissão, ações direcionadas à formação de professores. O surgimento da profissão emergiu da necessidade de profissionais no mercado, para o que eram necessários cursos de formação, embora, em um primeiro momento, trate-se de um ensino técnico para uma profissão técnica. A profissão em nível superior, bem como a formação de professores para o ensino superior, é permeada pelo momento histórico e pelas características de cada região em que se instala.

A seguir, passo a apresentar as reflexões sobre as narrativas organizadas em torno do Eixo Orientador I: Consonâncias, dissonâncias, ressonâncias na trajetória da Terapia Ocupacional como profissão de nível superior no Brasil. Esse eixo (Figura 2) congrega duas dimensões, das quais decorrem as categorias emergentes: Dimensão I – Trajetória de formação profissional (Categorias emergentes:

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Movimento internacional de reabilitação; Cursos de Formação em Terapia Ocupacional; Ingresso na profissão e Identidade profissional); e Dimensão II – Trajetória na profissão (Experiência profissional na Terapia Ocupacional e Militância na profissão).

Figura 2 – Eixo orientador I: Consonâncias, dissonâncias, ressonâncias na trajetória da Terapia Ocupacional como profissão de nível superior no Brasil

Fonte: Elaborada pela autora (2016).