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Nosso propósito central de pesquisa, conforme já revelamos, é investigar as implicações do chamado Ciclo do Algodão9 seridoense no processo de tecitura estilística da prosa romanesca de temática rural do escritor potiguar José Bezerra Gomes. Para tanto, utilizamos, como corpus, os romances Os Brutos, Ouro Branco e A Porta e o Vento, este último já tomado em empréstimo em nossa dissertação de mestrado.

Trata-se de pesquisa inserida na fronteira entre a Linguística Aplicada (LA) e os estudos literários; portanto, considera os romances (corpus de análise) como eventos de linguagem situados numa prática discursiva singular e concreta. Utiliza como referencial teórico, basicamente, as concepções do Círculo de Bakhtin, notadamente as discussões sobre cronotopo, autoria, estilo, enunciado concreto e vozes sociais. Cumpre, então, definirmos um escopo metodológico que se coadune com a proposta teórica que assumimos, uma vez que ambos são imbricados.

Nesse sentido, segundo Freitas (2007, p. 15):

A tradição empirista da pesquisa nas ciências humanas tem impedido muitas vezes uma maior aproximação e compreensão das questões propostas para estudo. A perspectiva sócio-histórica representa um caminho significativo para uma forma outra de produzir conhecimento no campo das ciências humanas. Ao compreender que o psiquismo é constituído no social, num processo interativo possibilitado pela linguagem, abre novas perspectivas para o desenvolvimento de alternativas metodológicas que superem as dicotomias externo/interno, social/individual. Ao assumir o caráter histórico-cultural do objeto de estudo e do próprio conhecimento como uma construção que se realiza entre sujeitos, essa abordagem consegue opor aos limites estreitos da objetividade uma visão humana da construção do conhecimento.

A admissão desse modelo alternativo de abordagem científica só teve lugar em razão da contestação do paradigma positivista de investigação científica, conforme observamos, atualmente, até mesmo nas ciências exatas. Como sabemos, mesmo os estudos linguísticos, aliás, como as Humanidades, em maior ou menor

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Período compreendido entre a segunda metade do século XIX e os anos de 1980, caracterizado pelo desenvolvimento social, econômico, político e cultural do Seridó potiguar e baseado na atividade agrícola algodoeira. Para mais informações, ver seção 6 desta tese.

grau, aderiram aos postulados positivistas, sem os quais a ciência parecia não ser ciência. Contemporaneamente, essa já não é uma verdade absoluta. “Segundo Bakhtin, é uma herança do racionalismo considerar apenas como ‘verdade’ a verdade-istina10. Isto implica defender que é possível buscar a verdade do particular, do acontecimento, do singular, do irrepetível” (GERALDI, 2012, p. 27), tarefa à qual nos dedicamos nesta tese.

Uma ciência preocupada em estudar o particular, em detrimento das generalidades, “preferirá dizer coisas significativas e substanciosas com prejuízo da cientificidade (no sentido moderno de ciência) a dizer trivialidades garantidas pelo método preconizado dos processos científicos (da indução ou da dedução)” (GERALDI, 2012, p. 27). Por esses motivos, aliamo-nos ao paradigma interpretativista de base sócio-histórica, tendo em vista que, no nosso modo de ver, é o mais adequado, dada a particularidade de nosso objeto, a nos levar a conquistas significativas e não triviais, conforme discutimos anteriormente.

Uma questão que norteia a pesquisa interpretativista é a particularidade de o acesso ao fato investigado ser feito de forma indireta, por meio de interpretação dos vários sentidos que o constituem. A intenção é, longe de uma padronização da realidade (resultante de uma postura positivista), promover a captação da multiplicidade de sentidos que o homem atribui ao mundo social ao constituí-lo (MOITA LOPES, 1994). Assim, é a necessária intersubjetividade, decorrente do tipo de relação que estabelecemos, como pesquisadores, com o nosso objeto de estudo que vai nos possibilitar com ele dialogar, a fim de, muito mais que descrevê-lo, interpretá-lo e compreendê-lo. Se tomarmos como interlocutor (corpus de análise) o texto, um evento verbal, um fenômeno de linguagem (como é o caso do romance literário), mais ainda se nos impõe o imperativo de optar por uma abordagem interpretativista, haja vista que, como no dizer de Moita Lopes (1994, p. 332), é a “que me parece mais adequada para tratar dos fatos com que o linguista aplicado se depara, além de ser mais enriquecedora por permitir revelar conhecimentos de natureza diferente devido ao seu enfoque inovador”.

10 “A verdade-istina é aquela que se obtém por sucessivas abstrações; são verdades construídas no

interior de uma teoria em que se constrói um modelo abstrato de explicação do objeto” (GERALDI, 2012, P. 25).

Quanto à abordagem metodológica, optamos por aquela de vertente qualitativa, dada a especificidade do nosso sujeito de estudo e o empreendimento interpretativista que precisamos realizar para alcançar as conquistas da pesquisa, além, é claro, da fundamentação teórica na qual nos sustentamos. Tratando desse assunto, Bogdan e Biklen (1994) especificam as cinco características da pesquisa qualitativa:

A. A fonte de dados é o texto (no nosso caso, romances) no qual o acontecimento

(as implicações do Ciclo do Algodão na tecitura estilística dos romances rurais de José Bezerra Gomes) emerge.

B. As questões formuladas para a pesquisa não são estabelecidas a partir da

operacionalização de variáveis, mas se orientam para a compreensão do fenômeno em toda a sua complexidade (vide questões de pesquisa, articuladas com os objetivos, na seção 2, subseção 2.2 desta tese).

C. O processo de construção dos dados caracteriza-se pela ênfase na

compreensão, valendo-se dos mecanismos da descrição e da explicação, procurando sempre as possíveis relações dos eventos investigados numa integração do individual com o social, o que se coaduna, perfeitamente, com a consideração do necessário tom social básico do estilo. Isso quer dizer que, apesar do fato de estarmos analisando a influência do Ciclo do Algodão na estilística de José Bezerra Gomes, é inescusável admitirmos que esse “estilo individual”, necessariamente, constitui-se a partir de um diálogo com outros tons circulantes na cadeia discursiva de que o romance faz parte (pressuposto da estilística sociológica).

D. O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa, porque, sendo

parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa, o que ressalta a sua subjetividade. O pesquisador é, na verdade, um construtor da realidade pesquisada, dada a sua capacidade de interpretação, e seus valores influenciam desde a seleção do problema, passando pelas teorias, até os métodos de análise, conforme admitimos no caput da seção 2 desta tese.

E. O critério que se busca na pesquisa não é a precisão (ou a cientificidade, na

coaduna com algo que discutimos na seção 3.2 desta tese, isto é, a intenção investigativa de construir verdades pravda.

Considerando, pois, esse cenário, é interessante trazer à baila um construto teórico-metodológico que nos parece útil à empresa investigativa que ora desenvolvemos. Trata-se do paradigma indiciário, ou, mais especificamente, da utilidade do paradigma indiciário para a promoção dos estudos em LA bem como dos seus pontos de proximidade com os modos de fazer pesquisa preconizados pelo Círculo de Bakhtin.

A discussão sobre o paradigma indiciário é uma proposta de Ginzburg (1989), o qual mostra como, por volta do final do século XIX, emergiu silenciosamente, na seara das ciências humanas, um modelo epistemológico que saía do âmbito da contraposição entre racionalismo e irracionalismo. Promovendo um confronto entre os métodos de Giovani Morelli (crítico de arte italiano), Sigmund Freud (psicanalista austríaco) e Arthur Conan Doyle (escritor escocês, criador do personagem Sherlock Holmes), Ginzburg intentou mostrar como o novo paradigma desafiou os modos de fazer ciência vigentes à época.

O método morelliano, desenvolvido para atestar a autoria e a autenticidade de obras pictóricas, consistia em observar os pormenores das pinturas (aproximando-se do modus operandi do personagem Sherlock Holmes), em vez de observar a obra como um todo. Tal método acabou influenciando Freud antes mesmo da concepção da Psicanálise, levando o próprio psicanalista a admitir conhecer o método de Morelli. Para Freud, as ideias de Morelli representavam a proposta de um método interpretativista centrado nos resíduos, nos dados marginais, considerados reveladores, mas, até então, desprezados pela ciência.

A aproximação das propostas desses personagens (Morelli, Freud e Doyle/Holmes) levou Ginzburg a admitir que, nos três casos, entrevê-se um modelo semiótico – sintomas (Freud), indícios (Holmes) e signos pictóricos (Morelli) –, de modo que, no final do século XIX, começava a se firmar, nas ciências humanas, um paradigma indiciário baseado na semiótica.

A ideia central desse paradigma remete ao método de Zadig (personagem criado pelo filósofo iluminista Voltaire) e à metáfora do homem-caçador (primitivo, intuitivo, atento aos sinais, às pistas). De Zadig, aproveita-se a capacidade de

atentar para as mínimas diferenças entre seres que, aos olhos da maioria, pareciam iguais. Do homem-caçador, traz-se o fato de que, provavelmente, foi o primeiro a narrar fábulas, haja vista ser o único capaz de enxergar pistas, interpretá-las e criar um cenário de sucessão de eventos.

Nesse diapasão, em um cenário de visões de ciência conflitantes, abrem-se duas vias comumente: 1) sacrificar o conhecimento do elemento individual em detrimento da generalização; ou 2) privilegiar o conhecimento das características gerais relegando as nuanças do elemento individual ao segundo plano. Talvez fosse preciso um novo formato para as ciências humanas, uma terceira via. E tal formato emergiu a partir de duas constatações: a decadência do pensamento sistemático- positivista e a admissão de que os indícios poderiam ser capazes de revelar visões de mundo.

Passou-se, então, a se admitir que o rigor científico é inatingível e até mesmo indesejável. Dever-se-ia buscar, na verdade, o rigor flexível. Nesse contexto, entram em jogo o faro, o golpe de vista e a intuição; não a intuição suprassensível dos racionalismos dos séculos XIX e XX, mas aquela baseada nos sentidos (para ajudar na visualização das pistas semióticas que poderão ajudar a compreender o fenômeno investigado).

Como podemos notar, o paradigma interpretativista de base indiciária guarda uma relação estreita com a ideia do agricultor que consegue enxergar e entender os sinais da natureza para nortear sua conduta. Desse modo, tal qual o homem- caçador, tal qual o homem-agricultor, também nós, pesquisadores das ciências humanas, cujo “objeto” de estudo, em última análise, é o ser humano, precisamos aprender a perscrutar as pequenas pistas deixadas por nós (eu e outro) pelo caminho, sempre num movimento dialógico com vistas a uma compreensão acurada do fenômeno que decidimos estudar.

Contemporaneamente, essa abordagem de pesquisa encontra guarida nas ideias defendidas por Moita Lopes (2006; 2009) e Rojo (2006). Segundo esses autores, as verdades epistemológicas são contingentes, e todos nós estamos fadados a viver essa contingência, de modo que se busca, no campo da LA, a construção de uma epistemologia que ultrapasse as fronteiras disciplinares e escape da ideia de narrativa única e universal. Em consonância com isso, esses autores propõem um modo de fazer pesquisa pautado em um paradigma questionador do

primado da cientificidade que se materializa na ideia de verdade absoluta, conforme lembra Oliveira (2013).

Sendo assim, na produção do conhecimento em ciências humanas, não há como deixar de fora do processo investigativo questões atinentes aos sujeitos, ao tempo histórico, às condições de produção dos textos, à ideologia, às relações de poder, à ética. Todos esses são elementos que, nessa área do conhecimento, convergem para a elaboração de verdades flexíveis e contingentes, em contraposição às verdades do modelo científico racionalista.

É exatamente nesse ponto que a metáfora do pesquisador-agricultor ou do pesquisador-caçador, isto é, a ideia central do paradigma indiciário converge para o modo de fazer pesquisa com base nas ideias do Círculo de Bakhtin. Ora, uma das críticas mais contundentes de Bakhtin dizia respeito à imposição científica de produção de verdades únicas, universalizantes (ou verdades istina, como nomeou) em detrimento da produção de verdades contingenciais (chamadas de pravda). Dito de outro modo, se o “objeto” (na verdade, o sujeito – ser humano) da pesquisa é situado, concreto, ideológico, inacabado, como seria possível (ou desejável) produzir verdades únicas, universais e estanques? A produção desse tipo de verdade só seria possível no contexto de um teoreticismo, isto é, no âmbito de uma ciência que dissocia a atividade de pesquisa e o pesquisador e suas condições materiais de existência concreta, algo que, para Bakhtin, é absolutamente indesejado.

A assunção desse eixo teórico-metodológico central nos direciona para algumas questões importantes na consecução de nossa pesquisa, como as concepções de linguagem, de enunciado concreto, de autoria, de vozes sociais, de relações dialógicas, de estilo (ou estilística sociológica), de historicidade bem como a relação entre cultura (e todos os seus aspectos constitutivos) e literatura. Algumas dessas questões são abordadas nesta seção; outras, em seções posteriores.

3.2 SEGUNDA APROXIMAÇÃO: A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM E A ATITUDE