• Nenhum resultado encontrado

O cronotopo do ciclo do algodão seridoense e a tecitura estilística dos romances rurais de José Bezerra Gomes

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O cronotopo do ciclo do algodão seridoense e a tecitura estilística dos romances rurais de José Bezerra Gomes"

Copied!
211
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA

Willame Santos de Sales

O CRONOTOPO DO CICLO DO ALGODÃO SERIDOENSE E A

TECITURA ESTILÍSTICA DOS ROMANCES RURAIS DE JOSÉ

BEZERRA GOMES

Natal-RN

2019

(2)

Willame Santos de Sales

O CRONOTOPO DO CICLO DO ALGODÃO SERIDOENSE E A

TECITURA ESTILÍSTICA DOS ROMANCES RURAIS DE JOSÉ

BEZERRA GOMES

Tese apresentada no âmbito do

Programa de Pós-graduação em

Estudos

da

Linguagem

da

Universidade

Federal

do

Rio

Grande

do

Norte,

área

de

concentração Linguística Aplicada,

linha de pesquisa Estudos de

Práticas

Discursivas,

como

requisito parcial à obtenção do

grau de doutor em Estudos da

Linguagem.

Orientadora: Profa. Dra. Maria da

Penha Casado Alves

Natal-RN

2019

(3)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Sales, Willame Santos de.

O cronotopo do Ciclo do Algodão seridoense e a tecitura estilística dos romances rurais de José Bezerra Gomes / Willame Santos de Sales. - Natal, 2019.

209f.: il.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves.

1. José Bezerra Gomes - Tese. 2. Romances rurais - Tese. 3. Ciclo do Algodão - Tese. 4. Estilo - Tese. 5. Poética do Algodão - Tese. I. Alves, Maria da Penha Casado. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'33

(4)

A tese intitulada O cronotopo do Ciclo do Algodão seridoense e a tecitura

estilística dos romances rurais de José Bezerra Gomes, defendida, em 19 de

julho de 2019, pelo doutorando Willame Santos de Sales, foi aprovada pela banca examinadora constituída pelos professores:

____________________________________________________________ Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves – Orientadora

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

____________________________________________________________ Profa. Dra. Marília Varella Bezerra de Faria – Examinadora interna

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

____________________________________________________________ Prof. Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Junior – Examinador interno

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

____________________________________________________________ Prof. Dr. João Maria Paiva Palhano – Examinador externo ao programa

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

____________________________________________________________ Profa. Dra. Isabel Cristina Michelan de Azevedo – Examinadora externa à

instituição

(5)

RESUMO

Esta tese tem por objetivo central criar inteligibilidades acerca das implicações do Ciclo do Algodão seridoense na tecitura estilística dos seguintes romances de temática rural do escritor currais-novense José Bezerra Gomes: Os Brutos (1938), Ouro Branco (inédito) e A Porta e o Vento (1974). Para tanto, assume, do ponto de vista teórico-metodológico, os postulados do Círculo de Bakhtin, especialmente, as concepções de linguagem, de enunciado literário, de cronotopo, de vozes sociais, de estilo e de autor-criador. A pesquisa situa-se no escopo da Linguística Aplicada, em diálogo com a Literatura, e adota, como fundamento metodológico, o paradigma indiciário-interpretativista de base sócio-histórica. Durante o percurso investigativo, as análises dos três romances possibilitaram perscrutar diversas vozes sociais e diversos discursos estratificados, atravessados por (e refratários de) visões de mundo em constante embate dialógico e ideológico, os quais contribuem para a tecitura do estilo bezerriano nos romances, principalmente: 1) vozes defensoras do casamento e do modelo patriarcal de família e vozes contestadoras desses discursos; 2) imagens antagônicas de sertão, negação de estereótipos e assunção de descrições de sertão valoradas positivamente; e 3) dialogizações em torno do título das obras e a poetização da linguagem prosaica. A pesquisa revela, em sede de conclusão: 1) o gerenciamento e o acabamento dados pelo autor-criador ao coro de vozes e de discursos presentes nas obras imprime aos enunciados um tom social-individual, um posicionamento socioideológico-estilístico diferenciado frente aos discursos circulantes na cadeia discursiva de que fazem parte; e 2) essa tecitura estilística das obras é perpassada pelo ideário do cronotopo do Ciclo do Algodão seridoense, configurando o que se nomeou de Poética do Algodão.

Palavras-chave: José Bezerra Gomes. Romances rurais. Ciclo do Algodão. Estilo.

(6)

ABSTRACT

THE IMPLICATIONS OF THE SERIDO'S COTTON CYCLE UPON

THE STYLISTIC WEAVING OF JOSÉ BEZERRA GOMES RURAL

NOVELS

This thesis has as its central objective to create intelligibilities ascertaining the implications of the Seridó's Cotton Cycle on the stylistic weaving of the following rural themes novels from the Currais Novos' writer José Bezerra Gomes: Os Brutos (The brutes, 1938), Ouro Branco (White gold, most recent) and A Porta e o Vento (The door and the wind, 1974). For such, it is assumed, from the theoretical-methodological point of view, the postulates of the Bakhtin Circle, especially, the language conceptions, the literary statements, the chronotope, the social voices, the style and the author-creator. The research is situated on the scope of Applied Linguistics, in dialogue with Literature, and adopts, as methodological fundament, the indicial-interpretative paradigm of social-historical basis. During the investigative process, the analysis of the three novels allowed to search into several social voices and varied stratified discourses, traversed by (and refractories of) worldviews in constant dialogical and ideological clash, which contribute to the weave of bezerrian style in the novels, mainly: 1) defendant voices of marriage and patriarchal model of family and contestant voices of such discourses; 2) antagonistic images of sertão, denial of stereotypes and assumption of descriptions of sertão valued positively; and 3) the dialogical processes around the titles of such works and the poeticization of the prosaic language. The research reveals, in place of completion: 1) the management and the finishing given by the author-creator to the choir of voices and of present discourses on the works impress to the statements a social-individual tone, a differentiated socio-ideological-stylistic positioning facing the circulating discourses in the discursive chain they are part of; and 2) this stylistic weave of these works is permeated by the ideas of the Seridó's Cotton Cycle chronotope, configuring what is named as Poética do Algodão (Poetics of the Cotton).

Keywords: José Bezerra Gomes. Rural novels. Cotton Cycle. Style. Poética do

(7)

RESUMEN

IMPLICACIONES DEL CICLO DEL ALGODÓN SERIDOENSE EN LA

TEJEDURÍA ESTILÍSTICA DE LOS ROMANES RURALES DE JOSÉ

BEZERRA GOMES

Esta tesis tiene por objetivo central crear inteligibilidades acerca de las implicaciones del Ciclo del Algodón seridoense en la tejeduría estilística de los siguientes romances de temática rural del escritor currais-novense José Bezerra Gomes: Os Brutos (1938), Ouro Branco (inédito) y A Porta e o Vento (1974). Para ello, asume, desde el punto de vista teórico-metodológico, los postulados del Círculo de Bajtín, especialmente, las concepciones de lenguaje, de enunciado literario, de cronotopo, de voces sociales, de estilo y de autor-creador. La investigación se sitúa en el ámbito de la Lingüística Aplicada, en diálogo con la Literatura, y adopta, como fundamento metodológico, el paradigma indiciario-interpretativista de base socio-histórica. Durante el recorrido investigativo, los análisis de los tres romances posibilitaron escudriñar diversas voces sociales y diversos discursos estratificados, atravesados por (y refractarios de) visiones de mundo en constante embate dialógico e ideológico, los cuales contribuyen a la tejeduría del estilo bezerriano en los romances, principalmente: 1) voces defensoras del matrimonio y del modelo patriarcal de familia y voces contestadoras de esos discursos; 2) imágenes antagónicas de sertón, negación de estereotipos y asunción de descripciones de sertón valoradas positivamente; y 3) dialogizaciones en torno al título de las obras y la poetización del lenguaje prosaico. La investigación revela, en conclusión: 1) la gestión y el acabamiento dados por el autor-creador al coro de voces y de discursos presentes en las obras imprime a los enunciados un tono social-individual, un posicionamiento socioideológico-estilístico diferenciado frente a los discursos circulantes en la cadena discursiva de la que forman parte; y 2) esa tejeduría estilística de las obras es atravesada por el ideario del cronotopo del Ciclo del Algodón seridoense, configurando lo que se nombró de Poética do Algodão (Poética del Algodón).

Palabras clave: José Bezerra Gomes. Romances rurales. Ciclo del Algodón. Estilo.

(8)

À minha mãe, Maria do Céu dos Santos. Mais que uma mulher, uma fortaleza. Nunca serei capaz de imaginar alguém mais notável a quem possa dedicar esta tese.

(9)

AGRADECIMENTOS

1. À professora Dra. Maria da Penha Casado Alves. Por ter me acolhido como

orientando desde a graduação.

2. Ao professor Dr. Marco Antonio Martins. Por ter sido o primeiro a perceber

em mim um tino para a pesquisa acadêmica.

3. A todos os professores e a todas as professoras, desde o Ensino Fundamental (Neide, Dete, Elizabeth, Heloísa) até os mais elevados níveis da educação. Por terem compartilhado comigo seus valorosos

saberes.

4. À Fundação Cultural José Bezerra Gomes, de Currais Novos, e a seus servidores. Por terem me possibilitado acesso a materiais imprescindíveis à

minha pesquisa, incluindo o romance Ouro Branco, ainda inédito.

5. À Rosileide Maria dos Santos (in memoriam), professora e servidora da Fundação Cultural José Bezerra Gomes, em especial. Por ter me recebido

tão amorosamente ainda durante minha pesquisa de mestrado.

6. À minha companheira de discussões acadêmicas Tacicleide Dantas Vieira. Por tudo o que (sobre)vivemos juntos nestes tantos anos.

7. À minha banca de qualificação, composta pelos professores João Maria Paiva Palhano (sempre ele) e Wellington Medeiros de Araújo. Por terem

concordado em colocar suas experiências de pesquisadores a serviço do aprimoramento de meu trabalho.

8. À minha banca de defesa, composta pelas professoras Isabel Cristina Michelan de Azevedo e Marília Varella Bezerra de Faria e pelos professores João Maria Paiva Palhano e Orison Marden Bandeira de Melo Junior. Por terem se disponibilizado a analisar e a “julgar” minhas

pretensões de pesquisador.

9. À sociedade brasileira. Por ter custeado meus estudos desde sempre.

10. A todos e a todas que passaram por mim ou continuam ao meu lado. Por terem contribuído para que eu me tornasse a pessoa que sou hoje.

(10)

SUMÁRIO

1

1 SEMENTE: O ENCONTRO ENTRE OS AUTORES ... 12

2 SEMEADURA: A INTRODUÇÃO ... 20

2.1 OBJETO DE ESTUDO E JUSTIFICATIVA DA PESQUISA ... 21

2.2 QUESTÕES E OBJETIVOS DA PESQUISA ... 24

2.3 ESTADO DA ARTE ... 25

2.4 ORGANIZAÇÃO DA TESE ... 30

3 TERRA E INSUMOS: AS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS .... 32

3.1 PRIMEIRA APROXIMAÇÃO: O PARADIGMA INDICIÁRIO E O FAZER CIENTÍFICO NA LINGUÍSTICA APLICADA E NO CÍRCULO DE BAKHTIN ... 34

3.2 SEGUNDA APROXIMAÇÃO: A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM E A ATITUDE METODOLÓGICA DE CONSTRUÇÃO DE VERDADES PRAVDA ... 39

3.3 TERCEIRA APROXIMAÇÃO: O ENUNCIADO CONCRETO E A ANÁLISE DO ROMANCE COMO UM EVENTO DE LINGUAGEM SINGULAR E AXIOLOGICAMENTESATURADO ... 41

3.4QUARTA APROXIMAÇÃO:O CRONOTOPOEMBAKHTIN EA ANÁLISE DOS ROMANCES ... 43

3.5 QUINTA APROXIMAÇÃO: A HETERODISCURSIVIDADE DO ROMANCE E A ESCUTADASVOZESSOCIAISNELEESTRATIFICADAS ... 46

3.6 SEXTA APROXIMAÇÃO: O ESTILO EM BAKHTIN E A CONSTITUIÇÃO DE UMACATEGORIAANALÍTICA ... 47

3.7 SÉTIMA APROXIMAÇÃO: A AUTORIA EM BAKHTIN E A CONSTITUIÇÃO DE UMA CATEGORIA ANALÍTICA ... 50

3.8 OITAVA APROXIMAÇÃO: O CORPUS DA PESQUISA E A CONSTRUÇÃO DOS PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ... 53

4 PRIMEIRA EMERGÊNCIA: O ENUNCIADO LITERÁRIO E SUA IMBRICAÇÃO COM O MUNDO DA VIDA ... 56

1

Os títulos das seções e de algumas subseções desta tese fazem referência à nomenclatura

própria da cotonicultura. Em cada uma dessas seções e/ou subseções, forneceremos breves comentários sobre a terminologia empregada.

(11)

5 SEGUNDA EMERGÊNCIA: O CONTEXTO DA LITERATURA POTIGUAR ATÉ

O SÉCULO XXI ... 66

6 TERCEIRA EMERGÊNCIA: O CICLO DO ALGODÃO NO NORDESTE, NO RIO GRANDE DO NORTE E NO SERIDÓ POTIGUAR ... 75

7 QUARTA EMERGÊNCIA: O CONTEXTO DE JOSÉ BEZERRA GOMES ... 83

8 COLHEITA: AS IMPLICAÇÕES DO CICLO DO ALGODÃO SERIDOENSE NA TECITURA ESTILÍSTICA DOS ROMANCES RURAIS DE JOSÉ BEZERRA GOMES ... 89

8.1 PRIMEIRO BOTÃO FLORAL: IMPERATIVOS DE ANÁLISE ... 89

8.2PRIMEIRAFLOR:OESTILOBEZERRIANOEMOSBRUTOS ... 93

8.2.1 Diálogos entre vozes sociais: conservadorismo cultural versus posição particular de Sigismundo, tio Lívio, Jesus, seu João, seu Tota e Cícero Cacheado . 95 8.2.2 Diálogos entre imagens de sertão: sertão de morte e sertão de vida ... 103

8.2.3 Diálogos entre brutos: a arena semântica de combate e a poetização da prosa ... 111

8.3 SEGUNDA FLOR: O ESTILO BEZERRIANO EM OUROBRANCO ... 121

8.3.1 Diálogos entre vozes sociais: conservadorismo cultural versus posição particular de tio Terto, tia Úrsula e tio Ambrósio... 125

8.3.2 Diálogos entre imagens de sertão: sertão de morte e sertão de vida ... 132

8.3.3 Diálogos com o ouro branco: a metáfora da riqueza do algodão e a poetização da prosa ... 139

8.4 TERCEIRA FLOR: O ESTILO BEZERRIANO EM APORTAEOVENTO ... 147

8.4.1 Diálogos entre vozes sociais: a voz da tradição versus a posição particular de Santos – um silencioso e eterno embate ... 150

8.4.2 Diálogos entre imagens de sertão: o sertão de morte e o ser(tão) de vida .... 155

8.4.3 Diálogos entre “A porta” e “o vento”: a perfeita metáfora da arena de combate e a poetização da prosa ... 164

8.5 CAPULHO: O FIO TECEDOR DO ESTILO BEZERRIANO E A CONFIGURAÇÃO DE UMA POÉTICA DO ALGODÃO ... 168

8.5.1 Primeiro fio: o cronotopo ... 169

8.5.2 Segundo fio: o foco narrativo e os nomes dos personagens ... 171

8.5.3 Terceiro fio: as vozes sociais estratificadas ... 174

(12)

8.5.5 Quinto fio: os títulos das obras e a poetização da prosa ... 178

8.5.6 Sexto fio: a configuração da Poética do Algodão ... 181

9 CAROÇO: AS CONCLUSÕES ... 184

REFERÊNCIAS ... 197

APÊNDICE A – BREVE CRONOLOGIA DA VIDA E DA OBRA DE JOSÉ BEZERRA GOMES ... 203

APÊNDICE B – PRINCIPAIS INFORMAÇÕES SOBRE A OBRA OS BRUTOS, CORPUS DE ANÁLISE DESTA TESE ... 205

APÊNDICE C – PRINCIPAIS INFORMAÇÕES SOBRE A OBRA OURO BRANCO, CORPUS DE ANÁLISE DESTA TESE ... 207

APÊNDICE D – PRINCIPAIS INFORMAÇÕES SOBRE A OBRA A PORTA E O VENTO, CORPUS DE ANÁLISE DESTA TESE ... 209

(13)

1 SEMENTE2: O ENCONTRO ENTRE OS AUTORES

Eu quero minhas mãos, eu preciso das minhas mãos, para, com elas, milagres propagar.

José Bezerra Gomes, no poema Multiplicação

Tomo a palavra, ainda que de assalto, para dizer algumas ideias por minha própria boca. Se sou o tema da conversa, por que não falar nela também? Penso ter esse direito, o que me faz querer exercê-lo. Falo já na condição de morto – é bem verdade – mas o vigor de minhas palavras advém da atualização de seus sentidos. Sou muitas vozes reunidas em um só. É difícil calar a todas. Um dedo de prosa, portanto...

Desencantado em 09 de março de 1911, no sítio Brejuí – zona rural do município de Currais Novos, sertão potiguar – deixei muitos filhos, dos quais três estão aos cuidados do doutorando: Os Brutos, A Porta e o Vento e Ouro Branco, este último ainda sem registro oficial em cartório (e ainda sem nome definitivo), pois, ingrata, a vida não me concedeu tempo para tal providência. Encantei-me novamente, virei pó, em 25 de maio de 1982, em Natal – capital do Rio Grande do Norte – mas, segundo contam, permaneço inspirando prosa mundo afora. Parece verdade, a julgar por esta pronúncia.

Batizado José Bezerra Gomes, letrei-me em Ciências Jurídicas e Sociais, na Universidade de Minas Gerais, e dediquei-me à escritura de ensaio, poema, romance, peça teatral, monografia. Solteiro convicto, jamais me casei – preferi a boemia. Fui tachado de louco em minha terra natal, mas isso não me impediu de nela ser vereador e ganhar uma fundação, dessas para pessoas importantes, que leva meu nome.

Minha vocação paternal teve início em 1938, com o nascimento de Os Brutos, mas, depois deste, vieram A Porta e o Vento, em 1974, e Ouro Branco, cuja data de nascimento, como já disse, não foi ainda oficialmente registrada. Tive uma

2

Semente, em vegetais como o algodoeiro (Gossypium L.), é a estrutura que contém o embrião, sendo responsável pela dispersão da espécie pelo ambiente. No âmbito desta tese, a semente simboliza o embrião que dá origem a todas as discussões havidas no decorrer do trabalho.

(14)

vida bastante produtiva, muitos outros rebentos. Falei de mim, de minha terra, de minha cultura, de minha gente. Filhos meus (ou seriam frutos? Ou, quem sabe, flores?) têm como mote a paisagem e os dramas do sertão, os homens e as mulheres rurais e suas relações com a cidade. Também evidenciam os costumes sociais, os tipos humanos e algumas das angústias que nos afligem. Parecem, a princípio, histórias locais, mas podem ser muito mais que isso.

Talvez não tenha passado por minha cabeça a ideia de servir a estudos acadêmicos, de ser tema de dissertações e teses. Minhas intenções certamente foram outras, mas, se assim o querem, que o façam. Minha voz e minhas vozes estão para serem ouvidas. Estou aqui para dialogar. Só não me queiram emudecer, pois, mesmo eu-pó, minhas palavras sobrevivem e falam de mim, comigo e por mim.

Em sendo assim, com a palavra, o doutorando...

Não poderia iniciar esta tese sem que fosse pela voz (ainda que imaginária) do sujeito com quem mais tenho conversado nos últimos anos – e não foi assalto, José. É a justa homenagem a quem serve de mote a este estudo. É a forma de te devolver as mãos, como pedes no poema em epígrafe, para que possas propagar teus milagres. Nosso relacionamento, possibilitado graças à magia das palavras, a qual desconhece limites, vem ocorrendo desde 2011, quando, ainda na graduação em Letras, fui apresentado a você (permita-me tratá-lo assim). Passava da hora de materializar esse encontro, ainda que em palavras-ponte imaginárias. Como pesquisador implicado que sou, não temo ser julgado por essa licença, pois não poderia me furtar a pedi-la.

Em sendo assim, com a palavra, o pesquisador...

Embora não seja determinante na análise que pretendemos realizar neste trabalho, posto que não se pode confundir autor-pessoa (José Bezerra Gomes, homem encarnado) com autor-criador (consciência exotópica responsável pelo gerenciamento de todo o material constituinte da obra literária), é importante nos situarmos em relação ao sujeito (homem de carne e osso) que concretamente empunhou a caneta usada para rabiscar os primeiros rascunhos dos romances com

(15)

os quais pretendemos dialogar. Desse modo, apresentaremos, sucintamente, notas biográficas sobre o autor-pessoa.

José Bezerra Gomes nasceu em 09 de março de 1911, na zona rural de Currais Novos, interior do Rio Grande do Norte, mais precisamente na casa-grande de um sítio chamado Brejuí. Pertencente a uma família abastada, é descendente, segundo a tradição, dos próprios fundadores dos currais novos que deram origem à cidade. Seus pais foram Veneranda Bezerra de Melo Rocha e Napoleão Bezerra de Araújo Galvão, sendo ele o segundo filho do casal. Teve a oportunidade, de acordo com Souza (2011), de estudar as primeiras letras, ainda na fazenda, com uma tia e com um conceituado professor chamado Francisco Rosa. Em seguida, juntamente com seus irmãos Osvaldo e Napoleão, foi matriculado no Grupo Escolar Capitão-mor Galvão, na então Vila de Currais Novos, tendo ali concluído, em 1925, os estudos primários. Segue, então, para Natal, capital do estado, com o objetivo de continuar os estudos, desta vez, no ginasial do Atheneu Norte-Rio-Grandense, curso este realizado entre 1927 e 1931, período em que, preocupantemente (pelo menos para o diretor do Colégio, o professor Anfilóquio Câmara), dedicou-se a participar de movimentos estudantis de esquerda.

Em 1932, José Bezerra Gomes seguiu para a cidade Belo Horizonte, matriculando-se na Faculdade de Direito de Minas Gerais, instituição pela qual, em 7 de setembro de 1936, obteve o grau de bacharel em Direito. Na capital mineira, exerceu funções burocráticas na Secretaria de Tributação do Estado, mas não deu muita importância ao trabalho. Ainda segundo Souza (2011, p. 23), José Bezerra Gomes “frequentava a Academia de Letras, escrevia para jornais e entrava pelas noitadas da boemia, chegando certa vez a deixar o chapéu empenhado na recepção de um bordel”, o que, possivelmente, contribuiu para lhe conferir a fama de boêmio, bêbado e mulherengo. De volta ao Rio Grande do Norte, o doutor Gomes, como era chamado, tornou-se membro efetivo da Ordem dos Advogados do Brasil, embora pouco tenha exercido a profissão, e, em 1947, já em Currais Novos, tornou-se vereador, exercendo mandato atuante entre 1948 e 1953, especialmente militando na área da cultura e das atividades artísticas junto à infância e à juventude.

Em 1948, cinco anos após seu retorno de Minas Gerais, criou a Diretoria de Documento e Cultura da Prefeitura de Currais Novos; abriu biblioteca; iniciou um museu; ajudou a criar o serviço de radiodifusão e o cinema da cidade; participou da

(16)

fundação do aeroclube municipal, do qual foi diretor cultural e para o qual elaborou o estatuto; participou, em 1951, do I Congresso Brasileiro de Folclore, no Rio de Janeiro, promovido pelo Ministério da Educação do governo Getúlio Vargas, levando consigo um personagem famoso do município de Currais Novos, Basto dos Bonecos, para apresentar o teatro de João Redondo, reprisado a pedido do próprio presidente da República. Lamentavelmente, foi acometido por uma crise mental em pleno congresso e teve de ser levado de volta a Currais Novos, pessoalmente, pelo prefeito da cidade, Silvio Bezerra de Melo. Ainda em Minas Gerais, chegou a ser preso, acusado de pertencer a correntes comunistas, o que não se comprovou, tendo sido solto por pedido direto de sua mãe ao presidente Getúlio Vargas.

Durante o apogeu de sua atividade intelectual, José Bezerra Gomes participou de diversas agremiações. Segundo publicação da Prefeitura Municipal de Currais Novos/Fundação Cultural José Bezerra Gomes (1994, p. 9), intitulada José Bezerra Gomes: sua vida e obra, o escritor “foi membro efetivo do Instituto Genealógico Brasileiro, sediado em São Paulo, e membro fundador da Academia Potiguar de Letras, sediada em Natal, em 1957”, tendo pertencido, ainda, ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Era figura das mais importantes no meio intelectual, sendo “admirado e respeitado, mas também discriminado e ridicularizado, principalmente em momentos de instabilidade emocional, devido às suas constantes crises provocadas por problemas mentais” (SILVA, 2004). Souza (2011, p. 26) assim o descreve e a sua situação:

De estatura baixa, troncudo, cabeça arredondada, moreno, lábios finos, olhar tímido [...], era melancólico com variações; tendências à solidão, ao isolamento. Inteligência profunda, meditativo, dúvida, angústia, atividade constante. O poeta era um tanto hipocondríaco. O surto era anunciado pela ansiedade, o descontrole emocional, a deficiência do sono e a intensificação de atividades na máquina de datilografia.

Seu Gomes esteve hospedado no Hospital Colônia Dr. João Machado, onde recebia o tratamento clínico ministrado na época [...]. Dr. Gomes, doente, indiferente, confuso, Currais Novos ignorando-o, discriminando-o, apontando-o com vários dedos de zombaria [...]. Mudou-se para Natal, residindo à rua dos Pajeús, 1730, no Alecrim [...]. Superprotegido por Dona Venera, bem idosa, dedicada aos doces caseiros e às orações.

Com problemas de locomoção decorrentes de um acidente havido em Natal, no qual caiu em uma vala e quebrou as pernas, morreu muito tempo depois, antes

(17)

de sua venerada mãe, em 26 de maio de 1982, com 71 anos de idade. Sepultado na capital do estado, nela permaneceu até julho de 1994, quando, por ocasião da festa de Sant’Ana, em Currais Novos, foi trasladado para sua terra natal, lá permanecendo enterrado até hoje.

A obra de José Bezerra Gomes é composta por uma variedade de textos: artigos jornalísticos, ensaios, estudos históricos, estudos culturais, poemas, antologias poéticas, contos, peças teatrais, artigos de crítica literária e romances. Muitos desses materiais foram publicados em forma de livro, mas alguns o foram em jornais e revistas circulantes à época, e outros, como é o caso do romance (des)conhecido por Ouro Branco, sequer foram publicados até hoje.

Mais que um literato, um escritor de romances, de poemas e de contos, José Bezerra Gomes foi um estudioso da cultura, dos costumes, da história, da política e de muitas outras temáticas locais, regionais, nacionais e universais. Uma visita à Fundação Cultural José Bezerra Gomes, em Currais Novos – Rio Grande do Norte, comprova essa afirmação. Na biblioteca pessoal do autor, doada à Fundação e constante do acervo de livros e de objetos que lhe pertenceram, estão obras das mais variadas áreas do conhecimento, o que demonstra o interesse de José Bezerra Gomes pelo saber.

Centenas de livros podem ser encontradas na biblioteca aludida: textos teatrais, obras sobre direito, filosofia, legislação, economia, sociologia, crítica literária, literatura brasileira, história da literatura brasileira, literatura do Rio Grande do Norte, história geral, história do Rio Grande do Norte, geografia, literatura estrangeira, publicidade; livros sobre religião, antropologia, psicologia, arte, cultura, educação, retórica, estudos lítero-culturais, linguística, poesia; romances brasileiros, biografias, memórias, contos, novelas além de periódicos, anais, catálogos, cartas, antologias brasileiras, dentre outros. Isso sinaliza o quão variado pode ter sido o repertório de leituras de José Bezerra Gomes.

Também há, na fundação, um espaço dedicado à exposição de obras do autor já publicadas: os romances Os Brutos e A Porta e o Vento; o livro de poemas Antologia poética; a antologia de romances Obras reunidas: romances; estudos biográficos, históricos e culturais, como Retrospecção da vida do presidente Tomás de Araújo Pereira, Sinopse do município de Currais novos: monografia ilustrada,

(18)

Retrato de Ferreira Itajubá: ensaio de compreensão; e a peça Teatro de João Redondo, com pesquisa sobre a manifestação cultural popular.

Versatilidade à parte, dada a natureza de nossa pesquisa, aqui nos interessa, especialmente, o José Bezerra Gomes romancista. Gomes foi um homem de ideias avançadas para a sua época e, como vanguardista, não foi compreendido durante a sua existência, cabendo às futuras gerações reconhecer seu talento, sua importância. Foi um homem tão assustado com a possibilidade de perseguição que impôs a si dois tabus: falar sobre seu livro de estreia – Os Brutos – e expor sua filosofia política.

Seu romance de estreia, Os Brutos, de 1938, foi muito aplaudido pela crítica especializada do Rio de Janeiro, porém, sob os auspícios do governo de Getúlio Vargas, foi associado ao comunismo, em razão, provavelmente, do caráter contestador, seco e direto e com que tratou as questões do sertão, a paisagem física e os tipos humanos do Seridó bem como as relações de trabalho entre patrões e empregados. Estas eram posturas incomuns, na época, até mesmo para Natal, capital do estado, que dirá para a pequena e conservadora Currais Novos. Segundo Souza (2011, p. 24), Os Brutos “é um romance comparado a Menino de Engenho (1932), Cacau (1933) e São Bernardo (1934)”, romances, respectivamente, do paraibano José Lins do Rego, do baiano Jorge Amado e do alagoano Graciliano Ramos, que, reconhecidamente, enfocaram grandes questões nordestinas. Há indícios de que José Bezerra Gomes tenha lido esses autores: a obra de Graciliano Ramos supramencionada, por exemplo, consta no acervo pessoal do currais-novense; as dos outros autores não constam, mas existem outros títulos assinados por Jorge Amado e por José Lins do Rego.

O segundo romance publicado, Por que não se casa, Doutor?, de 1944, é, talvez, o mais autobiográfico de todos, burilado a partir de um drama da vida do escritor, qual seja, o sentimento de impotência, a desilusão e o tédio decorrentes dos anos em que estudou para obter o grau de bacharel em Direito, morando numa pensão familiar e trabalhando na burocracia estatal mineira. Diferentemente de Os Brutos, apresenta-se num cenário urbano, a Belo Horizonte dos anos 30, sendo outros os problemas e outras as questões abordadas.

No terceiro romance publicado, A Porta e o Vento, José Bezerra Gomes torna à paisagem do sertão seridoense, confrontando diversas realidades: campo e

(19)

cidade, tempo da fartura e decadência da fazenda, cultura do algodão e criação de gado, ciclo chuvoso e seca, o homem e a terra. Com a mesma linguagem que lhe foi peculiar nos outros romances, o autor escreveu este terceiro. Na visão de Guimarães (In: GOMES, 2005, p. 249), José Bezerra Gomes “segue os caminhos tradicionais do romance, sem recorrer a artifícios ou modismos”. Prossegue o autor:

Se em nenhum momento procurou inaugurar novas trilhas para o romance, José Bezerra Gomes ficará pelo sopro redimível da vida que anima seus personagens, pelo sulco de humanidade que atravessa esse livro, pela contiguidade de sua prosa com a poesia, por tudo isso que é a marca compulsiva que faz o verdadeiro ficcionista (GUIMARÃES, In: GOMES, 2005, p. 250).

Um quarto romance, Ouro Branco (ou seria Um olhar sobre a solidão da terra? Ou Um olhar sobre a terra em solidão?)3, em alusão à riqueza que foi o algodão para a região do Seridó potiguar, por razões quase incompreensíveis, ainda não foi publicado. O original dessa obra é guardado, hoje, em poder da Fundação Cultural José Bezerra Gomes. Supostamente, esse livro completaria a trilogia iniciada com Os Brutos e finalizada com A Porta e o Vento, o que, à semelhança de iniciativas de outros escritores nordestinos, configuraria um ciclo de romances alusivos a atividades econômicas vividas nos seus contextos socioculturais, a exemplo do ciclo da cana-de-açúcar, para José Lins do Rego, e do ciclo do cacau, para Jorge Amado. Por essa razão, assevera Guimarães (In: GOMES, 2005, p. 249):

Não tivesse a enfermidade secionado a atividade criadora de José Bezerra Gomes, na qual, pela força da idade, talvez fosse sua fase mais fecunda, ele estaria para o Rio Grande do Norte como José Lins do Rego para a Paraíba. E no mapa da Literatura Brasileira despontaria o Ciclo do Algodão.

Na esteira da produção literária bezerriana, devemos compreender os contextos históricos, econômicos, sociais, políticos e culturais que serviram de base para o autor. O Rio Grande do Norte, do final do século XIX até as oito primeiras décadas do século XX, vivenciou o chamado Ciclo do Algodão4, período em que a atividade algodoeira no Seridó se sobrepôs, de forma inconteste, à pecuária bovina, que, historicamente, foi a responsável pelo povoamento colonial daquela região. O

3

Na subseção 8.4 da tese, tornaremos a discutir esta questão do título do romance inédito.

4

Nesta tese, o Ciclo do Algodão seridoense será tomado como um cronotopo, na perspectiva bakhtiniana.

(20)

primado do algodão sobrepôs-se, ainda, à atividade açucareira do litoral potiguar, até então, tradicionalmente, a principal força econômica (e política) do estado. No período áureo, por exemplo, o Seridó chegou a ser responsável pela geração de 45% de toda a riqueza produzida nas terras potiguares, sendo o algodão, sozinho, o responsável por 32% do montante, segundo Femenick (2010).

Percebemos a produção literária bezerriana nesse contexto, isto é, em um arcabouço profundamente marcado pelas relações estabelecidas com o mundo da vida. Nossa empresa, cujos resultados são aqui apresentados, almeja, primordialmente, investigar como esses diversos contextos (históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais), que estamos sintetizando com a alcunha de “Contexto do Ciclo do Algodão seridoense”, orientaram e influenciaram a poética de José Bezerra Gomes, notadamente a tecitura estilística de sua prosa romanesca de temática rural.

Assim, tomando apenas a produção romanesca bezerriana, notadamente os romances de temática rural (Os Brutos, A Porta e o Vento e o ainda não publicado Ouro Branco), a partir do lastro teórico das ideias do chamado Círculo de Bakhtin5 e das bases conceituais da Linguística Aplicada, almejamos elucidar, linguística e discursivamente, as implicações do Ciclo do Algodão seridoense na tecitura estilística da prosa romanesca rural de José Bezerra Gomes. Ao final, pretendemos ter lançado alguma luz sobre o fenômeno linguístico-discursivo do estilo na perspectiva bakhtiniana, considerando, como dito, a análise dos romances de temática e ambientação rurais produzidos por José Bezerra Gomes.

5

O que se convencionou chamar, ultimamente, de Círculo de Bakhtin, segundo Faraco (2009), nada mais é do que um grupo de intelectuais, de diferentes formações, interesses e atuações profissionais, que se reuniam regularmente, entre os anos de 1919 e 1929, na antiga União Soviética. Dentre eles, destacaram-se o filósofo Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan I. Kanaev, a pianista Maria V. Yudina, o professor de literatura Lev. V. Pumpianski, o estudioso de música Valentin N. Volóchinov, o educador Pavel N. Medvedev, o professor de literatura Mikhail M. Bakhtin, entre outros. De acordo com Faraco (2009), atribuiu-se o nome de Bakhtin ao Círculo devido à crença de que sua obra foi a de maior

(21)

2 SEMEADURA6: A INTRODUÇÃO

Quem em meu barco embarcar em meu barco soçobrará [...] Princesas destronadas loucos repatriados [...] Sob a procela sobre o naufrágio Unos aportaremos

José Bezerra Gomes, no poema Arca

Na seção anterior, deixamos claro que não estamos sozinhos na semeadura desta tese. Estamos juntos: José Bezerra Gomes, Bakhtin, o leitor, eu e muitos outros. Abrimos esta seção reafirmando tal compromisso: onde quer que cheguemos com nossos esforços, “Unos aportaremos” (GOMES, 2017, p. 34). Princesas destronadas, loucos repatriados, loucos e repatriados, estamos prestes a embarcar, juntos, numa semeadura que poderá render bons frutos (ou seriam bons fios?) pela via do diálogo, por meio do cultivo da palavra. Nessa empreitada, consideramos a palavra como ponte que liga o eu ao outro e, assim, revestimo-nos desse espírito para apresentar esta tese, fruto imediato do trabalho dos últimos anos de nossa vida e resultado mediato de uma vida de admiração às palavras. Colocamo-nos, como pesquisador, na posição de ponte, isto é, de sujeito promotor de encontros entre sujeitos: um que fala e outro que ouve, cada um a seu turno, reciprocamente, sem emudecer um ao outro. Não podemos ter a pretensão de dar a última palavra sobre o assunto que estamos investigando e temos a plena consciência de que não somos sequer os primeiros a falar sobre ele. Intentamos, pois, neste nosso turno de voz, oferecer uma contribuição, nosso olhar e nossas impressões sobre a tecitura estilística em José Bezerra Gomes ou, precisamente, sobre as implicações do Ciclo

6

Semeadura é, no cultivo do algodoeiro, a etapa que vai do plantio da semente até antes do surgimento da parte aérea da planta (aquela que fica à mostra, sobre a terra). No âmbito desta tese, a semeadura simboliza os elementos mais basilares sobre os quais se assentam as discussões havidas no decorrer do trabalho.

(22)

do Algodão seridoense na tecitura estilística dos romances rurais de José Bezerra Gomes.

E, assim, concebendo a palavra como ponte que promove a interação entre pelo menos dois sujeitos, entregamo-nos à aventura de pesquisar um objeto (objeto?) falante, que não se cala diante de nós, mas, pelo contrário, insiste em conversar conosco e até em nos ajudar nos direcionamentos que devemos tomar. Um “objeto” que, verdadeiramente, está mais para sujeito. Na esteira dessa concepção, interessa-nos explicitar, preliminarmente, a noção de pesquisador que assumimos para, a partir dela, erguer esta nossa empresa investigativa. Antes de enfocar objeto, problema, objetivos e questões de pesquisa, consideramos fundamental apresentar tal noção, a fim de que fique claro qual o nosso lugar nisto tudo.

Conforme já sinalizamos, a noção do pesquisador que coloca em suspenso sua subjetividade para, adotando atitudes pretensamente neutras, explicar o objeto em suas relações de causa e efeito não tem lugar nesta pesquisa. Por entender que, diante de nós, está um “objeto” falante, não podemos assumir a perspectiva do pesquisador contemplador, passivo, inerte. Pelo contrário, temos de assumir que a relação estabelecida entre pesquisador e pesquisado deixa de ser do tipo sujeito-objeto e passa a ser do tipo sujeito-sujeito (FREITAS, 2002), numa perspectiva dialógica em que investigador e investigado (mesmo que este seja “apenas” o texto) são sujeitos em interação, vivos e dinâmicos. É essa a nossa visão de pesquisador.

2.1 OBJETO DE ESTUDO E JUSTIFICATIVA DA PESQUISA

Etapa importante a um trabalho de pesquisa é a delimitação do objeto de

estudo. No caso desta tese, o objeto são as implicações do Ciclo do Algodão

seridoense na tecitura estilística da prosa romanesca de temática rural do escritor potiguar José Bezerra Gomes. Em outras palavras, pretendemos investigar como a tecitura estilística, no autor, é perpassada por seu cronotopo, seu contexto sócio-histórico, econômico, político e cultural. A assunção de tal “objeto”, como é de se imaginar, pressupõe tomar emprestada a noção de estilo presente nas obras de Bakhtin e de outros autores do Círculo, especialmente Medviédev (2012) e

(23)

Volóchinov (2017), para os quais o estilo é pensado não somente em termos de aspectos composicionais do texto mas também (e principalmente) em termos das inter-relações, dentro de uma escala avaliativa, entre autor, herói7 e ouvinte da enunciação. Nessa perspectiva, grosso modo, cumpre-nos considerar que a tecitura do estilo em determinada obra e por determinado autor não é simplesmente uma questão isolada de escolhas individuais, mas está ligada, intrinsecamente, à vida social do discurso, às relações dialógicas que o discurso do referido autor estabelece com outros discursos (seus e de autores outros).

Nesse sentido, importa entender o modo como o Ciclo do Algodão seridoense perpassa a tecitura estilística bezerriana nos romances Os Brutos, Ouro Branco e A Porta e o Vento. Assim, pretendemos analisar os diversos elementos que contribuem para a tecitura do estilo bezerriano, à luz da concepção de estilo delineada por Bakhtin (2011, 2013, 2015) e por outros autores do Círculo, e considerando, ainda, os pressupostos teórico-metodológicos da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 2006; RAJAGOPALAN, 2006).

Posto, preliminarmente, o objeto, cumpre apresentar as justificativas da

pesquisa. Diversos fatores contribuíram para a tomada do objeto de nosso trabalho,

desde o interesse pessoal pelo assunto (ou herói) até a escassez de estudos na área, passando, ainda, pelo desejo de estudar um autor potiguar pouco conhecido do grande público. Não são muitos os estudos que situam o romance literário na perspectiva da estilística sociológica, principalmente, quando considerado o escopo teórico-metodológico da Linguística Aplicada (LA), em que a linguagem é tomada como uma prática discursiva, necessariamente dialógica, situada e intersubjetiva. Com isso, pretendemos oferecer uma contribuição teórico-prática para a construção do conhecimento nessa seara.

Além disso, o que nos move no intento de estudar tal objeto, considerando a delimitação proposta, é o desejo de dar continuidade às reflexões iniciadas na dissertação intitulada Dialogização de vozes: o fio construtor do estilo de José Bezerra Gomes no romance A porta e o vento, por nós defendida em 2014. Na ocasião, devido aos limites temporais e ao porte da pesquisa, tivemos a

7

Na perspectiva bakhtiniana, diferentemente da concepção corrente, o termo herói tanto pode referir-se à personagem romanesca que dereferir-sempenha papel excepcional em uma obra de ficção quanto ao assunto em torno do qual um texto se constrói. Na presente ocorrência, o termo assume este segundo sentido.

(24)

oportunidade de estudar apenas um romance do nosso autor. Nesta tese, vamos além: pretendemos lançar nosso olhar sobre três romances (Os Brutos, Ouro Branco e A Porta e o Vento), todos de temática rural, realizando uma análise mais profunda e dialógica que a primeira, confrontando e relacionando as três obras, considerando o contexto sócio-histórico, cultural, político e econômico de sua produção, e, assim, investigando a configuração estilística não apenas de um romance, mas de um projeto de dizer mais amplo (uma poética) do escritor José Bezerra Gomes.

Nessa perspectiva, o trabalho que ora desenvolvemos justifica-se, também, pelo mesmo motivo que se justificou a nossa dissertação, anteriormente referenciada, qual seja: a necessidade de dar voz a autores, até então, pouco conhecidos do grande público, como é o caso de José Bezerra Gomes, cuja produção, apesar de parecer pequena, quando se considera o número de obras publicadas, é bastante relevante no contexto do romance potiguar, em que a poesia sempre teve maiores representatividade e presença.

Além disso, o estudo da prosa romanesca de José Bezerra Gomes, nos termos aqui propostos, constitui-se numa atitude triplamente inovadora: primeiro, porque o situamos na perspectiva teórico-metodológica da Linguística Aplicada (LA), e não no campo dos estudos literários; segundo, porque nosso enfoque é o da estilística sociológica de Bakhtin, não o da estilística tradicional; e, terceiro, porque, em uma atitude política, optamos por dar voz a quem, via de regra, teve cerceado o direito de ser ouvido, no caso, o discurso de um autor do interior potiguar, que narra o interior, o sertão.

Finalmente, a presente pesquisa se justifica pela necessidade de aprofundar os estudos sobre estilo, na perspectiva da estilística sociológica bakhtiniana. Ainda são poucos os estudos dessa natureza, especialmente, se considerarmos o romance como corpus da análise. Nessa seara, algo se tem estudado sobre a poesia, mas sobre a prosa são escassos os trabalhos. Considerando que já empreendemos um estudo a esse respeito, por meio de uma dissertação de mestrado, entendemos poder dar continuidade às reflexões ali iniciadas, desta vez, com um rigor e uma profundidade maiores, tendo em vista a necessidade e a possibilidade de oferecermos uma contribuição teórico-prática mais significativa que a anterior.

(25)

2.2 QUESTÕES E OBJETIVOS DA PESQUISA

Diante da definição do objeto de estudo e da explicitação das justificativas da pesquisa, expomos as questões e os objetivos que elegemos para nossa empresa investigativa. A fim de evidenciar o encadeamento entre as primeiras e os segundos, optamos por apresentá-los de modo que à questão se siga o objetivo correspondente.

 Questão central

Sendo o estilo, no romance, entendido como gerenciamento de vozes e discursos inseridos num contexto sócio-histórico, econômico, político e cultural, quais as implicações do Ciclo do Algodão seridoense na tecitura estilística da prosa romanesca de temática rural de José Bezerra Gomes?

Objetivo central

Investigar as implicações do Ciclo do Algodão seridoense na tecitura estilística da prosa romanesca de temática rural de José Bezerra Gomes, tomando como corpus de análise os romances Os Brutos, Ouro Branco e A Porta e o Vento.

 Questão específica 1

Quais as principais vozes sociais e os principais discursos estratificados, dialogicamente, na prosa romanesca de temática rural de José Bezerra Gomes?

Objetivo específico 1

Cotejar, dialogicamente, as principais vozes sociais e os principais discursos estratificados na prosa romanesca de temática rural de José Bezerra Gomes e as relações que elas estabelecem entre si e com a voz do autor.

 Questão específica 2

Como as principais vozes sociais e os principais discursos presentes nos três romances tomados para análise se relacionam ao Ciclo do Algodão seridoense, atuando na e para a tecitura do estilo bezerriano?

(26)

Objetivo específico 2

Explicitar como as principais vozes sociais e os principais discursos presentes nos romances Os Brutos, Ouro Branco e A Porta e o Vento se relacionam ao Ciclo do Algodão seridoense, atuando na e para a tecitura do estilo bezerriano.

 Questão específica 3

Qual o posicionamento socioideológico-estilístico presente na prosa romanesca de temática rural de José Bezerra Gomes e como é possível diferenciá-lo frente a outros posicionamentos circulantes?

Objetivo específico 3

Configurar, a partir das obras em questão, o posicionamento socioideológico-estilístico diferenciado do autor frente aos discursos circulantes em sua época.

Para responder a essas questões e atingir esses objetivos, tomamos como fundamento o arcabouço teórico da obra bakhtiniana, notadamente as concepções dialógicas de linguagem e de estilo e os conceitos de enunciado concreto, cronotopo, autoria e vozes sociais. Essas noções são de fundamental importância à consecução desta pesquisa, constituindo-se em algumas das principais ideias sobre as quais as análises estão apoiadas. Por tais motivos, serão explicitadas na seção 3 desta tese.

2.3 ESTADO DA ARTE

“Não existe a primeira nem a última palavra” (BAKHTIN, 2011, p. 410). Assim, é inimaginável pensar que somos os donos ou o ponto de partida do primeiro ou do último discurso sobre a face da Terra, a não ser que admitamos as situações de um Adão mítico, o produtor da “palavra original”, ou de um cenário pós-apocalíptico sem sobreviventes, em que os discursos cessariam e, supostamente, deva ter havido uma “palavra final”. Qualquer outra hipótese carece de

(27)

verossimilhança. Apegamo-nos, na contramão disso, a Ponzio (2010, p. 11), segundo quem “é preciso uma palavra outra para encontrar o outro de si mesmo”. Desse modo, em vez de querermos ser o dono da palavra, ou seu produtor original, admitimos que apenas a tomamos em empréstimo, para, logo após a última página desta tese, devolvê-la ao mundo da vida real dos discursos.

Nesse sentido, evidentemente, reconhecemos que este não é o primeiro (tampouco será o último) trabalho de pesquisa a ter como herói a tecitura estilística em determinados autores ou a influência de contextos específicos na tecitura estilística de textos literários. Artigos, teses, dissertações e outros tipos de trabalhos acadêmicos têm abordado essas questões, de sorte que é preciso dizer: a pesquisa que aqui desenvolvemos é apenas um elo na cadeia de discursos acerca de estilo circulantes neste e em outros tempos. Obviamente, ela guarda sua singularidade e sua razão de existir, as quais expusemos na seção anterior, o que a tornam, sob determinado ângulo de visão, inédita e justificável. Alguns desses trabalhos se situam na área da literatura, abordando o estilo sob o enfoque da composição literária, aplicando-lhe, por consequência, as noções do aludido ramo de estudos; outros, porém, situam-se no campo da Linguística Aplicada, imprimindo ao estilo um enfoque discursivo e interdisciplinar.

Considerando, assim, essas ponderações, invocamos alguns dos trabalhos que lidam com a questão da tecitura estilística, sobretudo os que, à semelhança deste, adotam o enfoque da Linguística Aplicada, desenvolvidos por pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL/UFRN), do qual fazemos parte.

Faria (2007), em tese de doutoramento intitulada A construção estilística das identidades poéticas da cidade de Natal: um olhar bakhtiniano, realizou estudo em que buscou apresentar as identidades culturais da cidade de Natal, considerando as representações presentes no discurso de alguns poetas potiguares do século XX, a exemplo de Ferreira Itajubá, Palmira Wanderley, Jorge Fernandes, Lauro Pinto, José Bezerra Gomes, Celso da Silveira, Diva Cunha, Iracema Macedo, Paulo de Tarso Correia de Melo e outros. Tomando como base a teoria bakhtiniana em interconexão com outros autores dos chamados “estudos culturais” (especialmente, Stuart Hall e Néstor García Canclini), a pesquisadora conclui que a análise dos discursos poéticos revelou múltiplas identidades culturais para a cidade, desde uma Natal

(28)

ingênua e multicor até uma Natal rebelde e usurpada. Importante destacarmos que, à semelhança da presente tese, o estudo supracitado aborda a temática do estilo (e a da construção identitária) situando-a no campo da LA e tomando por base a consideração também de um corpus literário, mas, diferentemente, foca sua análise em outro tipo de enunciado concreto, qual seja, o poema. Em nossa tese, o foco é outro: o discurso prosaico romanesco de temática rural.

Outro estudo, ainda no âmbito do PPgEL/UFRN, que teve como foco a questão estilística, foi produzido por Palhano (2011), em trabalho de doutoramento intitulado Coerção e ruptura estilísticas na poesia potiguar: a construção do ethos inventivo do poeta Jorge Fernandes. Na aludida tese, o pesquisador tomou como ponto de partida a disseminação da imagem de poeta inventivo atribuída a Jorge Fernandes a partir da publicação, em 1927, do Livro de Poemas de Jorge Fernandes. Considerando a própria produção literária do referido autor bem como a de outros ícones da poesia potiguar, e também a impressão a seu respeito que se fez e que circulou na comunidade leitora, produtora e crítica potiguar, o estudo, a partir dos pressupostos teóricos bakhtinianos, em conjunto com a noção de ethos presente em Maingueneau, delineou um inventário das escolhas estilísticas individuais de Jorge Fernandes, as quais, em diálogo com os discursos de outros poetas, contribuíram para a circulação social de um ethos inventivo associado ao poeta. Mais uma vez, convém destacarmos: assim como no estudo de Faria (2007), este último apresentado também se situa no campo da LA, tomando como corpus de análise um material literário (novamente, o poema) e realizando uma discussão sobre coerção e ruptura estilísticas. A presente tese, por seu turno, como já anunciamos, propõe-se a lidar com outro tipo de enunciado: o romance.

Complementando o rol dos principais trabalhos acerca de estilo empreendidos no âmbito do PPgEL/UFRN, área de concentração Linguística Aplicada, trazemos à baila a dissertação de mestrado de Matias (2012), intitulada Um ser(tão) de vozes: o estilo e o acabamento estético na poesia de Patativa do Assaré. Ancorada nas noções bakhtinianas de estilo, vozes e relações dialógicas, a pesquisadora intentou, com seu trabalho, investigar basicamente duas questões: a configuração do estilo na obra de Patativa do Assaré e o acabamento estético dado pelo poeta à voz do outro presente em seus poemas. Como resultado de suas incursões no mundo patativiano, concluiu que o horizonte da poesia desse autor é

(29)

sempre povoado de muitos outros, seja o sertão, o outro poeta, o leitor, o caboclo sertanejo, o “dotô”, o Divino Criador, com os quais sempre dialoga, estabelecendo diversos tipos de relações, como, por exemplo, paráfrases e ironias. Como se pode notar, novamente, o trabalho guarda semelhanças com o que produzimos aqui, especialmente no tocante à inserção na grande área da LA, à natureza literária do corpus e à abordagem da configuração estilística. Porém, outra vez, elege como material de análise um corpus composto de poemas, o que evidencia a necessidade de estudos como o que intentamos empreender nesta tese, com foco no romance.

Além dos trabalhos citados, que abordam diretamente a problemática da tecitura estilística, alguns outros, ainda na seara do PPgEL/UFRN, trataram da obra de José Bezerra Gomes. É o caso, por exemplo, da dissertação de mestrado de Figueirêdo (2002), intitulada Nas veredas da tradição seridoense: uma introdução à leitura da obra de José Bezerra Gomes. Nela, a pesquisadora não tratou de estilo, mas buscou realizar uma análise geral da obra do poeta e romancista José Bezerra Gomes, destacando a correspondência entre o que chamou de “cultura da tradição” e “experiências modernas da região do Seridó”. Desta sorte, trata-se de uma fortuna crítica sobre o mencionado autor potiguar.

Do mesmo modo, outro estudo que caminha na direção de abordar algum aspecto da obra de José Bezerra Gomes (não necessariamente o estilo) é o de Silva (2005), intitulado Os brutos: tradição literária e a memória cultural do Seridó. Nesse trabalho, é bem verdade, a autora trata de uma questão eminentemente literária, inclusive, situada fora da área de concentração de Linguística Aplicada. De fato, a dissertação se situa no campo da Literatura Comparada, também integrante do PPgEL/UFRN, e encerra discussões sobre o ponto de vista do narrador no romance de estreia de José Bezerra Gomes, Os Brutos. A principal conquista da pesquisa foi a de que o discurso do narrador do mencionado romance possui um caráter ambivalente, o qual permite que o interlocutor presente não assuma um ponto de vista fixo diante do que narra. Do mesmo modo que o anterior, este último estudo, apesar de não tratar de tecitura estilística, ainda assim representa uma fortuna crítica sobre o autor a cuja obra nos dedicamos em nossa tese, motivo pelo qual consideramos trazê-lo a este rol.

Voltando ao âmbito dos trabalhos que versaram sobre estilo, na perspectiva sociológica proposta por Bakhtin, temos a dissertação de mestrado de Sales (2014),

(30)

intitulada Dialogização de vozes: o fio construtor do estilo de José Bezerra Gomes no romance A porta e o vento. Na verdade, esse estudo contém o embrião que nos despertou o interesse para investigar o objeto da presente tese e se insere na arena dialógica do grupo de pesquisa “Práticas discursivas na contemporaneidade”, o qual tem sido responsável por fomentar, no âmbito do PPgEL/UFRN, diversas dissertações e teses com fundamento teórico na obra bakhtiniana.

No aludido trabalho, dialogamos, especificamente, com um dos romances produzidos por José Bezerra Gomes e nos propusemos a responder, em última análise, a seguinte indagação: qual o posicionamento socioideológico-estilístico presente na obra A Porta e o Vento e como é possível diferenciá-lo frente a outros posicionamentos circulantes? As conclusões do estudo apontaram na seguinte direção: em A Porta e o Vento, é possível escutar diversas vozes sociais encarnadas, enxergar diversas formas de diálogo, visões de mundo em embate constante que, em razão do gerenciamento e do acabamento dados pelo autor, acabam por conferir-lhe um tom, um estilo peculiar frente aos demais discursos e estilos circulantes em seu meio. Os embates ideológicos mais evidentes são: a voz da tradição versus a voz particular do personagem Santos, no que respeita à instituição do casamento; o confronto entre imagens de sertão antagônicas – um sertão vivo (rico e fértil) em contraposição à noção estereotipada de sertão (pobre e estéril); e a dialogização em torno do título: a porta e o vento como metáfora de uma arena de combate e os indícios de uma poetização da linguagem da prosa.

Como se pode notar, há diversas palavras-outras que tratam daquilo que investigamos nesta tese. Não faria sentido, na perspectiva bakhtiniana, desconsiderá-las, uma vez que discursos são construídos em resposta a outros discursos. Nesse sentido, a resposta (momentânea) que pretendemos dar com a presente pesquisa envolve algo que nenhum dos seis estudos descritos anteriormente abordou, isto é, as implicações do Ciclo do Algodão seridoense na tecitura estilística dos romances de temática rural de José Bezerra Gomes. Ora, quando se estudou estilo (como nos três primeiros trabalhos citados) utilizou-se, como corpus de análise, o poema; quando se abordou o romance (caso dos três últimos estudos invocados), ou o herói não foi o estilo, ou o foi, mas sem considerar o conjunto dos romances de temática rural de José Bezerra Gomes. Com o fito de preencher tais lacunas, impomo-nos esta empresa investigativa. Dito de outro modo,

(31)

nosso discurso parte de palavras-outras. E é com base nelas que encontraremos a nós mesmos e a nossas próprias palavras.

2.4 ORGANIZAÇÃO DA TESE

Esta tese está organizada em nove seções: a primeira, intitulada SEMENTE:

O ENCONTRO ENTRE OS AUTORES, traz um prelúdio do trabalho e foi escrito,

com base em uma licença poética, por dois autores, nós e o autor dos romances que servem de corpus a nossa pesquisa. O objetivo é reconhecer a importância de dar voz ao outro e, principalmente, de ouvi-lo; a segunda seção, chamada

SEMEADURA: A INTRODUÇÃO, é o introito material do trabalho, que explicita a

concepção de pesquisador que subjaz a tese e o tipo de relação que se estabelece entre os sujeitos da pesquisa bem como apresenta o objeto e o problema central da pesquisa, as justificativas sobre as quais se fundamenta, os objetivos (geral e específicos) e suas correspondentes questões de pesquisa, o estado da arte e, por último, a descrição da forma de organização do trabalho; a terceira seção, intitulada

TERRA E INSUMOS: AS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS,

aborda a metodologia desenvolvida para a consecução da pesquisa, incluindo a inserção do trabalho na grande área da Linguística Aplicada, o paradigma interpretativista, a abordagem qualitativa de base sócio-histórica, os procedimentos para construção e análise dos dados, bem como o arcabouço que dá sustentação teórica à pesquisa, apresentando as concepções bakhtinianas mais basilares e necessárias à realização do trabalho; a quarta seção, intitulada PRIMEIRA

EMERGÊNCIA: O ENUNCIADO LITERÁRIO E SUA IMBRICAÇÃO COM O MUNDO DA VIDA, apresenta uma discussão sobre as principais características

definidoras do discurso literário e como se dá seu diálogo com o mundo da vida; a quinta seção, intitulada SEGUNDA EMERGÊNCIA: O CONTEXTO DA

LITERATURA POTIGUAR ATÉ O SÉCULO XXI, na esteira do tema da literatura,

traz uma panorâmica da produção literária havida no Rio Grande do Norte até a época de José Bezerra Gomes e, ainda, posterior a ela; a sexta seção, intitulada

TERCEIRA EMERGÊNCIA: O CICLO DO ALGODÃO NO NORDESTE, NO RIO GRANDE DO NORTE E NO SERIDÓ POTIGUAR, traz uma discussão sobre o

(32)

econômica especialmente do estado do Rio Grande do Norte bem como sobre a constituição desse contexto como um cronotopo; a sétima seção, nomeada

QUARTA EMERGÊNCIA: O CONTEXTO DE JOSÉ BEZERRA GOMES, traz um

panorama geral sobre os contextos da vida e da obra desse autor; a oitava seção, nomeada COLHEITA: AS IMPLICAÇÕES DO CICLO DO ALGODÃO SERIDOENSE NA TECITURA ESTILÍSTICA DOS ROMANCES RURAIS DE JOSÉ BEZERRA GOMES, corresponde ao espaço de análise e de discussão das

conquistas da pesquisa; finalmente, a nona seção, nomeada CAROÇO: AS

CONCLUSÕES, apresenta as considerações finais da pesquisa.

Até aqui, ocupamo-nos de delinear o que se espera da parte introdutória de uma tese, ou seja, as principais questões que subjazem a empreitada investigativa, as justificativas, o estado da arte, as questões de pesquisa, os objetivos, a contribuição que se pretende dar com as conquistas da pesquisa bem como o lugar teórico-metodológico no qual se situa a empresa. Uma vez explicitadas essas nuances, ainda que algumas delas embrionariamente, cumpre, na próxima seção, anotar, em maior profundidade, as discussões sobre a teoria e a metodologia concebidas para levar a cabo nossa colheita, digo, esta pesquisa.

(33)

3 TERRA E INSUMOS8: AS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Deem-me minhas mãos, que eu quero semear a terra. Com elas,

alumiarei o cego, [...]

e saciarei a fome do necessitado...

José Bezerra Gomes, no poema Multiplicação

No contexto em que vive, o agricultor é essencialmente um sábio. Pode não ser letrado, pode não ter aprendido “munta ciença”, como no dizer de Patativa do Assaré (2004, p. 25), mas é um sábio, capaz de interpretar sinais imperceptíveis aos olhos da maioria das pessoas. Para ele, a revoada dos pássaros e a mudança na direção ou na intensidade dos ventos podem significar chuva, seca ou indicar o momento ideal de começar a preparar a terra para o plantio. O agricultor é capaz de interpretar sinais emitidos pela natureza e fazer deles um “termômetro” para sua prática. Basta que se lhe deem as mãos para que ele possa semear a terra e saciar a fome do necessitado, como no poema de Gomes (2017, p. 29). Quem dera fôssemos todos nós capazes de algo semelhante.

No cultivo da terra, o agricultor sabe que não basta simplesmente enterrar a semente, esperar que ela brote e colher o fruto. Existe um longo caminho até que possa colhê-lo. É preciso um local com condições de temperatura e de pluviosidade adequadas à cultura que pretende plantar. É necessário escolher uma terra rica nos nutrientes certos para que a cultura se desenvolva. É imprescindível preparar a terra, ará-la, cuidá-la antes de enterrar a semente. É necessário até mesmo saber a profundidade correta a que se deve enterrar a semente para que ela possa brotar e vir a render uma boa colheita. Selecionar uma boa semente também é fundamental para o sucesso da cultura. As ferramentas de trabalho precisam ser selecionadas criteriosamente. Depois de nascida a planta, os cuidados prosseguem até que ela atinja a idade ideal para ter seu fruto apanhado dos campos. Uma vez colhido o

8

Terra e insumos são as bases que possibilitam o desenvolvimento de quase todas as culturas vegetais, englobando tanto o solo em que o vegetal é plantado quanto o maquinário e as ferramentas necessárias ao cultivo. No âmbito desta tese, a terra e os insumos simbolizam o fundamento teórico-metodológico sobre o qual se ergue nossa empresa investigativa.

(34)

fruto, exige-se uma guarda adequada. O processamento é só a última etapa antes de o produto tomar seu destino final, seja ele qual for.

Tal qual o agricultor, também nós pesquisadores precisamos desenvolver essa habilidade de enxergar os sinais emitidos, a todo instante, pelos nossos sujeitos de pesquisa. Precisamos ser capazes de encontrar as condições ideais para o cultivo e a colheita de nossos trabalhos acadêmicos. Não podemos esperar um resultado satisfatório se as etapas prévias não forem cumpridas com cuidado e dedicação. Em razão disso, comparamos o fundamento teórico-metodológico deste trabalho à relação do agricultor com a terra, à preparação do terreno para receber a semente que pretende plantar. É preciso saber escolher grão e terra corretamente; é preciso dosar o adubo, regar a semente, limpar o terreno durante o processo de crescimento da planta, para só então colher seus frutos.

Pomo-nos, aqui, portanto, na condição de agricultores a preparar o terreno para receber a semente. Nossa semente é o herói que desejamos ver brotar – as implicações do Ciclo do Algodão seridoense na tecitura estilística dos romances rurais de José Bezerra Gomes. São inúmeras as ferramentas e inúmeros os insumos (teóricos e metodológicos) que se nos apresentam para levar a cabo tal cultura, mas, assim como, há séculos, tem feito o agricultor, devemos escolher os mais adequados à preparação da nossa terra, a depender do fruto que pretendemos colher.

Imbuídos desse espírito agricultor, intentamos apresentar, nesta seção, o percurso teórico-metodológico que encerra o caminho percorrido para a consecução de nossa pesquisa. Como já dissemos, nosso trabalho insere-se na perspectiva de estudos da Linguística Aplicada (LA), em diálogo com os estudos literários, baseia-se nas concepções teóricas do Círculo de Bakhtin e adota um paradigma de investigação indiciário e interpretativista aliado a uma abordagem qualitativa de base sócio-histórica. Assim, para chegar às condições de cultivo mais acertadas (em outras palavras, à teoria e à metodologia mais adequadas à construção de nossas verdades contingentes), tecemos as considerações a seguir.

Referências

Documentos relacionados

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

Embora os resultados demonstrem que os profissionais estudados apresentam boas condições emocionais (dedicação), a redução observada nas dimensões vigor, absorção e escore

Taking into account the theoretical framework we have presented as relevant for understanding the organization, expression and social impact of these civic movements, grounded on

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Entre as atividades, parte dos alunos é também conduzida a concertos entoados pela Orquestra Sinfônica de Santo André e OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São

Endereço, telefone do local: Av. Apresentação da pesquisa. Para entender o papel da morfologia urbana no comportamento do usuário, é preciso analisar as reações a cada ambiente,

Ressalta-se também, no que diz respeito à gestão de pessoas, o desenvolvimento de um plano de carreira complementar ao anterior sistema de avaliação de desempenho, do sistema

da supracitada teoria no ordenamento jurídico brasileiro a partir de julgados do Supremo Tribunal Federal, em que esta teoria foi mobilizada pelos ministros como