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8 COLHEITA: AS IMPLICAÇÕES DO CICLO DO ALGODÃO SERIDOENSE NA

8.5 CAPULHO: O FIO TECEDOR DO ESTILO BEZERRIANO E A CONFIGURAÇÃO

8.5.5 Quinto fio: os títulos das obras e a poetização da prosa

O quinto e último aspecto a ser considerado neste nosso esforço de sistematização de análises diz respeito aos movimentos realizados pelo autor- criador, nos romances estudados, para estabelecer relações dialógicas em torno do título das obras e sua tentativa de aproximação entre as linguagens da prosa e da poesia. Explicitamos esses diálogos nas subseções 8.2.3, 8.3.3 e 8.4.3. Cumpre- nos, agora, demonstrar como esses movimentos se relacionam ao contexto do Ciclo do Algodão no Seridó potiguar.

No campo dos gêneros literários, existem distintas formas de organizar a linguagem. Umas dessas formas pode diferenciar aquilo que tratamos por prosa e aquilo que encaramos como poesia (ou poema). Inclusive, é bom que ressaltemos, na Antiguidade Clássica, a linguagem prosaica, no campo da criação literária, não era valorizada, sendo o poema e a peça teatral as formas composicionais, os gêneros da literatura por excelência. Não se vislumbrava, portanto, o romance como um gênero literário.

Em razão dessa nuance, as primeiras narrativas foram construídas em versos, por meio de longos poemas classificados de épicos. Somente a partir do século XVIII, quando o modo de organizar narrativas em longos poemas entrou em desuso, surgiu a narrativa em forma de romance, bastante apreciada pelo grande

público, mas, consoante Bakhtin (2010b), não considerado como um gênero literário independente. A partir do século XIX, ainda de acordo com esse autor (2010b, p. 363), “surge um vivo interesse pela teoria do romance como gênero predominante da Europa”. A prosa literária, notadamente o romance, começava, a ser tratada como um gênero da literatura, com formas e conteúdos próprios.

Fato é que a linguagem do poema tem uma forma de organização peculiar: apresenta estrutura em versos, muitas vezes, rimados, os quais formam estrofes; produz um ritmo, uma melodia, ao ser declamado; faz uso de aliterações e assonâncias para criar determinados efeitos de sentido, dentre outros. Alguns desses procedimentos, inclusive, não são bem recebidos pela linguagem da prosa. Ocorre que o romance, gênero prosaico, tem a característica de ser um fenômeno pluriestilístico. Em razão disso, muitas linguagens e muitos estilos são recepcionados por esse gênero. Nos romances que estudamos, de José Bezerra Gomes, ocorre justamente isso. Vejamos.

O primeiro aspecto que discutiremos aqui se refere ao título das obras. Nos três romances, percebemos, esse elemento encerra ou promove relações dialógicas com aspectos internos e/ou externos às obras. Assim, em Os Brutos, há um embate semântico em torno da palavra “brutos”, vista por nós como um elemento linguístico- discursivo que aponta para a forma como alguns personagens são encarados por uma voz representante do discurso conversador. O sentido explícito de “brutos”, na obra, está associado ao fato de os empregados do Sítio Alívio serem oriundos do “oco do mundo”, não terem instrução e não serem “tementes a Deus”, conforme fizemos constar nas subseções anteriores. Não por acaso, brutos são os trabalhadores que atuam, sob regime de exploração, no cultivo do algodão. No entanto, em razão da forma como o autor-criador gerencia as diversas vozes evocadoras desses discursos, percebemos que, talvez, não sejam esses trabalhadores os verdadeiros brutos da narrativa. Talvez brutos sejam os exploradores. Configura-se, portanto, uma relação dialógica entre título e discursos internos da obra.

Em Ouro Branco, acontece procedimento semelhante. O título encerra uma metáfora para a riqueza que representou o algodão, chamado, naquele cronotopo, de ouro branco, em uma evidente associação entre o metal precioso (ouro) e a cor da fibra do algodão (branca). Fundem-se, assim, dois signos ideológicos para

metaforizar o discurso da riqueza, da abundância e da prosperidade econômica. São diversos os elementos na obra que apontam para essa direção, conforme analisamos, mas, se quisermos considerar o segundo título dado ao romance (Um olhar sobre a solidão da terra), também veremos que uma relação dialógica se configura. Nesse contexto, “a solidão da terra”, referida no título, dialoga com o abandono por que passou o Sítio Condado, em razão da falta de alguém capaz de gerenciar o plantio do algodão e, desse modo, aproveitar a riqueza do ouro branco. Qualquer que seja o título considerado, portanto, percebemos uma relação com o cronotopo do Ciclo do Algodão.

Em A Porta e o Vento, dissemos que os dois elementos constitutivos do título (a porta/o vento) representam uma perfeita metáfora da arena de combate que se instaura no enredo. A porta como uma metáfora para os discursos conservadores evocados na narrativa, ou seja, uma força de resistência pela manutenção do status quo, e o vento como um discurso dissonante, uma força dispersora, contestadora, que embate com as vozes, na análise da obra, tratadas como tradicionais. Como vimos, também essas vozes, tanto as sonantes com a cultura oficial quando as dissonantes, só subsistem e fazem sentido no contexto do Ciclo do Algodão. Fora desse cronotopo, tais vozes perderiam o colorido que lhes é dado nas obras.

Para finalizar esta subseção, resta-nos discorrer sobre a tentativa, promovida pelo autor-criador, de poetização da prosa. Ora, nas três obras analisadas, percebemos a recorrência desse movimento. Sem subjugar o potencial criativo do gênero romanesco, o autor-criador leva a voz da poesia para dentro da prosa por meio de vários personagens, alguns dos quais, de forma reiterada (em Os Brutos, o chofer Jesus; em Ouro Branco e em A Porta e o Vento, respectivamente, os alugados Zé e Xico), interagem utilizando, praticamente, apenas poemas e canções, sempre rimados. Não é de surpreender que a tarefa de poetizar a prosa tenha sido dada a personagens simples (um chofer e dois empregados temporários, capinadores). Isso evidencia, na nossa visão, a tentativa de demonstrar o caráter popular da poesia produzida no sertão. Basta nos lembrarmos dos repentistas, cordelistas e poetas populares, comuns em praças e feiras livres de cidades do interior do sertão e que despertam interesse e admiração do auditório.

Em resumo, pelas razões que expusemos, consideramos que tanto os embates dialógicos vislumbrados nos títulos das obras quanto a poetização da prosa

são movimentos relacionados ao Ciclo do Algodão. Em outra versão: eles só existem e são gerenciados pelo autor-criador, nos três romances, devido à emergência e à premência do contexto social, econômico, cultural e político representado por esse ciclo, esse cronotopo, contribuindo, assim, para definir aquilo que denominamos poética do algodão.