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8 COLHEITA: AS IMPLICAÇÕES DO CICLO DO ALGODÃO SERIDOENSE NA

8.5 CAPULHO: O FIO TECEDOR DO ESTILO BEZERRIANO E A CONFIGURAÇÃO

8.5.2 Segundo fio: o foco narrativo e os nomes dos personagens

O segundo aspecto presente nos três romances que, a nosso ver, precisa passar por esse movimento dialógico de interlocução e de aproximação diz respeito ao foco narrativo e aos nomes de alguns personagens das obras. Ora, em um primeiro momento, podemos pensar que esses elementos são aspectos meramente

literários, mas, na verdade, não são. Eles exercem, quando gerenciados pelo autor- criador, uma força discursiva considerável na constituição da obra e de seu estilo, ao menos nos três romances que tomamos para análise. Iremos explicitar cada um desses elementos, começando pelo foco narrativo.

Antes de discutirmos as categorias que tecemos para configurar o estilo bezerriano em cada um dos três romances, produzimos um breve resumo de cada obra, a fim de situar, ainda que minimamente, a discussão. Esses resumos estão postos no caput de cada subseção principal da análise (8.2, 8.3 e 8.4). Se os compararmos, constataremos o seguinte: os três romances são narrados em primeira pessoa, sendo que, em dois deles – Os Brutos e A Porta e o Vento –, o narrador participa ativamente da história como protagonista. Nesses dois romances, os narradores têm seus nomes revelados: Sigismundo e Santos, respectivamente. No outro romance – Ouro Branco –, o narrador, apesar de ser de primeira pessoa, apenas testemunha os fatos, não sendo o protagonista e nem mesmo tendo participação ativa na narrativa. De todo modo, os três romances são contados na perspectiva da primeira pessoa.

Somente essa decisão por narrar na primeira pessoa já seria uma recorrência a ser considerada, mas não é ela que mais nos chama a atenção. Na verdade, o que desperta nosso interesse é o fato de as três obras serem narradas, em primeira pessoa, na perspectiva de um neto. É isso o que, a nosso ver, guarda relação com a cultura sertaneja e com o Ciclo do Algodão. Ora, embora os romances apresentem um colorido de vozes, precisamos reconhecer, como fizemos anteriormente, que o cronotopo artístico-literário das três obras está localizado no sertão nordestino, mais precisamente, no Seridó potiguar, no período do Ciclo do Algodão. Assim, se consideramos a intercomunicabilidade entre o mundo da vida e o mundo da arte, teremos de admitir que, na cultura interiorana do Nordeste, mas não somente nela, a figura dos avós é muito relevante. Isso pode justificar a escolha do autor-criador por um narrador neto nas três obras, o que seria, no nosso modo de enxergar, uma implicação do Ciclo do Algodão no estilo dos romances analisados.

E acrescentamos: nas três obras, essa escolha pelo neto de um casal de idosos, patriarcas da família, para conduzir o enredo revela nem tanto a importância da figura do neto, mas, sim, a relevância que se pretende dar à figura dos avós. Uma das razões para isso é que, em muitas cidades, são os idosos (avós) que

sustentam a casa, sendo eles a única fonte de renda, advinda das aposentadorias. No sertão, onde as cidades são pequenas, eminentemente rurais e dependentes de benefícios pagos pelo governo aos idosos, a importância dos avós tende a ser ainda maior. Em duas das obras (Ouro Branco e A Porta e o Vento) que analisamos, um dos avós (na verdade, sempre o avô, o homem) morre em determinado momento da narrativa, o que acaba provocando uma mudança no rumo da história com a consequente deterioração das relações familiares em decorrência da falta da figura do patriarca. Na outra obra (Os Brutos), essa mudança no rumo da narrativa é também decorrente da atitude do avô do narrador, que nega ajuda à família. Em resumo: os avôs assumem papel de destaque nas três obras.

Em nosso entendimento, a escolha por um narrador-neto (e, consequentemente, a deferência à figura dos avós) evidencia, na verdade, o culto a Santana, avó de Jesus Cristo e elemento religioso fortemente presente na cultura seridoense. É ela, a padroeira das duas maiores cidades do Seridó (Caicó e Currais Novos), a nosso ver, a maior homenageada por essa escolha do autor-criador. Vemos assim, mais uma vez, a tecitura estilística das obras bezerrianas implicada pela intercomunicabilidade entre o mundo da vida e o mundo da arte e pelo fator religioso, bastante presente no cronotopo do Ciclo do Algodão seridoense.

Mas, além do foco narrativo, devemos considerar também os nomes dos personagens. Nos três romances que analisamos, os personagens, em geral, são reconhecidos por um nome ou prenome ao qual se acrescenta uma alcunha, um elemento linguístico-discursivo, que revela a função desse personagem na sociedade ou uma característica que o define. Normalmente, essa função ou característica do personagem dialoga com algum aspecto social, econômico, político ou cultural do Ciclo do Algodão seridoense.

Assim, temos em Os Brutos: João sacristão (em referência ao elemento religioso, bastante relevante na cultura seridoense), Chico carcereiro (em alusão à função que desempenhava no contexto social em que estava inserido), mestre Marcolino carpinteiro (em referência à profissão de carpinteiro que desempenhava, importante para a atividade agrícola de produção do algodão), Coronel João Alexandre e Coronel Zuza Bonito (em alusão à figura dos coronéis, tão presentes no sertão nordestino e ligados, em geral, a atividades agrícolas, como o cultivo do algodão).

Do mesmo modo, temos em Ouro Branco: Zé alugado (em referência ao trabalho temporário que realizava na lida do algodão, normalmente de limpeza), Pedro matuto (em alusão a pessoa do mato, sertanejo, agricultor, tropeiro), Lúcio maquinista (em referência ao profissional responsável pelos locomóveis empregados no beneficiamento do algodão), mestre Cândido carpina (em alusão à profissão de carpinteiro que desempenhava, importante para a atividade agrícola de produção do algodão) e Antônio Mé (em referência ao bêbado, figura típica de quase toda pequena cidade do interior).

Da mesma forma, temos em A Porta o Vento: Xico alugado (em referência ao trabalho temporário que realizava na lida do algodão, normalmente serviço de limpeza), Lúcio maquinista (em referência ao profissional responsável pelos locomóveis empregados no beneficiamento do algodão) e Pedro matuto (em alusão a pessoa do mato, sertanejo, agricultor, tropeiro). Vemos que alguns personagens têm os mesmos nomes e as mesmas funções que apresentam em Ouro Branco. Isso se explica pelo fato de os dois romances guardarem uma relação dialógica explícita, conforme elucidamos nas análises.

Ressaltamos que os personagens referidos acima sempre são tratados pelo nome acompanhado da alcunha, dada a importância que esse elemento caracterizador assume para a própria constituição do personagem. Diante disso, importa-nos dizer o seguinte: as escolhas realizadas pelo autor-criador, no que respeita à figura do narrador (sempre um neto nas três obras) e aos nomes de vários personagens (alusivos à função social desempenhada pelo “sujeito”), têm, no nosso modo de enxergar, uma relação dialógica direta com o cronotopo do Ciclo do Algodão, posto que fazem referência a elementos caracterizadores desse contexto social, econômico, cultural e político por que passou o Seridó potiguar em um dado período histórico. Tais escolhas, portanto, só existem, subsistem e se sustentam se considerarmos esse cronotopo. Dito de outro modo, o Ciclo do Algodão é que possibilita ao autor-criador realizar essas escolhas.