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CAPÍTULO I O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: PANORAMA

3. Evolução do Debate

3.1. Primeira fase: Liberdade salvo Simulação

Na primeira fase, isto é, da liberdade salvo simulação, tem-se em pauta uma liberdade absoluta, no sentido de que o contribuinte é totalmente livre para agir, desde os atos apresentem, cumulativamente, em seu planejamento, as seguintes três características: (i) precedam o fato gerador; (ii) sejam lícito; (iii) não envolvam simulação.

A simulação de que se trata nesta primeira fase é o instituto do Direito Civil, conforme trazida no artigo 167 do Código Civil brasileiro de 2002, já importado do Código Civil de 191697, a seguir transcrito:

                                                                                                                         

95 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 3a. Ed. São Paulo: Dialética, 2011. 96 Idem, Ibidem, p. 133.

97 Art. 102. Haverá simulação nos atos jurídicos em geral:

I. Quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas das a quem realmente se conferem, ou transmitem.

II. Quando contiverem declaração, confissão, condição, ou cláusula não verdadeira. III. Quando os instrumentos particulares forem antedatados, ou posdatados.

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

§ 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado. (grifos acrescidos)

Deve-se acrescentar que a simulação nesta fase do debate é a que se considera vício da vontade. Em seu modelo clássico, a simulação existe quando há uma dissonância entre uma vontade real e uma vontade aparente, isto é, por ênfase, uma diferente da outra. Esta é a visão predominante na primeira fase, apoiada na doutrina civilista francesa, cujo contexto era de garantir a vontade individual protegida em face ao poder do rei, introduzida pelos revolucionários na época da Revolução Francesa.

Assim, um ato ou negócio jurídico de planejamento tributário que escape às três condições mencionadas enquadra-se na liberdade de agir do contribuinte ou, em outras palavras, é oponível ao Fisco, se questionado pelas autoridades administrativas. Com esta concepção amparada nos valores de um Estado liberal clássico, a elisão é considerada uma proteção do cidadão à postura do Estado de opugnação indesejada ao patrimônio particular. Além da liberdade absoluta, alguns princípios decorrem diretamente da visão do planejamento tributário em sua primeira fase de debate, quais sejam: legalidade estrita, tipicidade fechada e proibição da analogia. Como o planejamento é considerado uma forma de defesa do patrimônio individual contra o Estado, o primeiro é o da legalidade estrita, pois é a medida exata que o cidadão aceitou ser agredido. Por isso, não basta a legalidade, ela tem de ser estrita nesta fase.

Para tanto, uma tipicidade fechada se faz indispensável, uma vez que, apenas diante de tipos fechados na hipótese legal, é possível se basear no que está previsto em lei, para livremente planejar os atos e negócios dentro das possibilidades de oponibilidade ao Fisco do desenho da operação, na eventualidade do contribuinte ser questionado.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Art. 103. A simulação não se considerará defeito em qualquer dos casos do artigo antecedente, quando não houver intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposição de lei.

Art. 104. Tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os contraentes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros. Art. 105. Poderão demandar a nulidade dos atos simulados os terceiros lesados pela simulação, ou representantes do poder publico, a bem da lei, ou da fazenda.

Além desses, nesta fase o Direito Tributário é posto em posição equivalente à do Direito Penal, com a liberdade como valor equiparado ao da propriedade. Assim, como no Direito Penal há a proibição à analogia, igualmente ocorre no Direito Tributário, em matéria de planejamento. Se a autoridade administrativa aproveitar-se da figura da analogia para incluir situações não enquadradas como caso de simulação, estar-se-ia em confronto com a legalidade estrita, a tipicidade fechada e ainda a liberdade absoluta do contribuinte organizar a própria vida. Por outro ângulo, o intérprete é apenas alguém que apenas descreve o que está previsto na legislação, não agregando nenhum elemento exterior ao jurídico para a análise dos fatos e das consequências, neutro em valoração.

Este é o contorno principiológico da primeira fase do debate sobre o planejamento tributário no Brasil, em que o contribuinte pode se aproveitar das lacunas do ordenamento tranquilamente, sem razões quaisquer para o Fisco desconsiderar as operações e responsabilizar penal e tributariamente os articuladores. Ou seja, é uma fase em que a elisão tributária é uma figura de atos, negócios, causas e finalidades perfeitamente aceitáveis e oponíveis.

A visão apresentada nesta primeira fase gerou algumas consequências que são refletidas até hoje no sistema tributário brasileiro. A primeira foi a estratégia em massa de se estruturar operações essencialmente formais, mas sem consideração de substância e efeitos econômicos, para estarem em atendimento ao que a liberdade, a legalidade estrita, a tipicidade fechada e a proibição da analogia permitem, contagiando a elisão tributária com uma análise meramente formalista e permissiva.

A segunda consequência foi a denominada “inflação normativa”, o crescimento desmedido na quantidade de normas tributárias no país, deteriorando pela expectativa de transitoriedade o valor da própria norma, que inclusive, passa a não ter adesão social, também pela consideração de excesso, de repugnância à precariedade no retorno da prestação estatal e da possibilidade de sempre adesão a programas de parcelamentos especiais.

Para melhor ilustrar esta inflação na produção normativa de cunho tributário ainda presente atualmente, o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação liberou um estudo98 em outubro de 2015, em comemoração aos 27 anos da Constituição com estatísticas sobre as

                                                                                                                         

98 AMARAL, Gilberto Luiz do; OLENIKE, João Eloi, AMARAL, Letícia Mary Fernandes do. Quantidade de

Normas Editadas no Brasil: 27 anos da Constituição Federal de 1998. Instituto Brasileiro de Planejamento

Tributário – IBPT, Curitiba, 2015. Acessível em:

https://www.ibpt.com.br/img/uploads/novelty/estudo/2272/QuantidadeDeNormas201527AnosCF01102015.pdf , em 18/01/2017.

normas tributárias. Do estudo, extrai-se que no Brasil, nestes 27 anos, foram editadas 352.366 normas tributárias, das quais são 30.680 federais, 103.867 estaduais e 217.819 municipais.

A partir destas estatísticas, tem-se que, em média, foram editadas 31 normas tributárias por dia ou 1,29 norma por hora. Se considerados apenas dias úteis, foram 45 por dia útil ou 1,87 por hora útil. Além disso, demonstrando a transitoriedade desta enxurrada de normas, tem-se que, das 352.366 normas tributárias editadas, 24.515, ou 6,9% apenas estavam em vigor na conclusão do estudo, em 30 de setembro de 201599.

A terceira consequência, em decorrência da anterior, é a alta complexidade do sistema tributário brasileiro, de modo que o brasil se apresentou recentemente como o país que mais consumiu tempo, pela complexidade apresentada, para cumprimento das obrigações tributárias no mundo100. Ineditamente, todavia, o mesmo estudo em parceria da PwC com o Banco Mundial em 2017 apresentou uma redução em 22% o tempo, ou seja, diminuiu de 2600 para 2.038 horas por ano para cumprimento101, decompostas de acordo com a categoria de tributação, conforme o gráfico a seguir102:

                                                                                                                         

99 Idem, Ibidem.

100 http://www.forbes.com/sites/joeharpaz/2013/12/17/brazil-ranked-most-time-consuming-tax-regime-in-the- world/#5b4e4aeb2fdf

101 Independentemente do progresso percebido, o Brasil ainda encontra-se no topo do ranking de tempo para

compliance101. A razão da mudança para o caso foi a maturidade que alcançou nestes 10 anos de implementação

do Sistema Público de Escrituração Digital – SPED -, nascido oficialmente com a edição do Decreto 6.022 de 22 de janeiro de 2007, hoje leading case internacional de prestação de informações ao Fisco, seja em âmbito federal, estadual ou municipal no Brasil101. Embora progressos tenham sido dados recentemente, a visão instituída na primeira fase do debate sobre planejamento tributário teve a forte contribuição de nos transformar no sistema tributário mais complexo do mundo, como pode se depreender dos dados apresentados.

  Gráfico 1 - Horas para cumprimento das obrigações tributárias103

Por fim, a quarta consequência foi a precariedade do ordenamento, que perdeu coerência ao se instituir, quase que para cada caso um novo microssistema normativo. Estima- se que atualmente existam, aproximadamente 8,7 milhões de sistemas tributários disponíveis para enquadramento no Brasil104, interpretados por mais de 200 milhões de contribuintes, demonstrando essa precariedade e indicando as incontáveis possibilidades de intersecção normativa para agravar a situação do planejamento tributário, principalmente, se levada em conta as premissas estabelecidas na primeira fase do debate.