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No fim de fevereiro, Mathieu Dreyfus, por sugestão de seu cunhado, procurou M. Bernard Lazare, que o recebeu e afirmou acreditar na inocência do capitão Dreyfus. O jornalista Lazare redigira um artigo no L’Ècho de Paris, em dezembro de 1894, condenando o aproveitamento antissemita do episódio (DREYFUS, 1995). Este encontro pode ser considerado como um marco na luta pela liberdade de Dreyfus. Depois de Mathieu Dreyfus revelar a existência de um dossiê secreto e convidar Lazare para assumir a causa do irmão, como advogado, e, sobretudo, como jornalista, surgiu o primeiro dreyfusard que não será o único.

Alfred Dreyfus deixou a França em março, seu destino era a Guiana Francesa, especificamente o arquipélago Salut. Na sequência, foi transferido para a Ilha Royale, onde ficou até ser prisioneiro na Ilha do Diabo, onde foi alojado em uma cela de quatro metros quadrados, na qual ficou incomunicável por quatros anos, sendo vigiado permanentemente.

la notoriété par l'intelligence et la bonne conduite. Et les farceurs qui se prétendent les représentants des classes laborieuses conspuant un homme sorti des rangs du peuple […] dont l'élévation prouve […] la perméabilité extrême de notre société et l'ineptie de ceux qui déclarent ses commets fermés au peuple. (M. Felix Faure intime, 1895, p. 1)

O coronel Georges Picquart na Seção de Estatística

O coronel Picquart continuava convencido da culpabilidade de Alfred Dreyfus, quando substituiu, na Seção de Estatística, seu colega M. Sandherr, vitimado por uma paralisia. O substituto natural de Sandherr seria seu adjunto, o comandante Cordier, no entanto este não aceitou ser o titular da seção. O comandante Henry, que, conforme Bredin (1995), dirigia de fato a seção, sonhava com o cargo, todavia lhe faltava envergadura. O general Raoul de Boisdeffre (1839-1919), chefe do Estado-Maior persuadiu o novo ministro da guerra, general Émile Zurlinden (1837- 1929), que o comandante Picquart estaria apto para a pesada responsabilidade (BREDIN, 1995, p. 158).

Georges Picquart era de origem alsaciana. Seu pai, nascido na Alsácia, era um funcionário encarregado da cobrança de impostos, Sua mãe, igualmente alsaciana, era musicista, dela Picquart herdou o gosto pela música. A família pertencia a uma burguesia católica, tradicional e rigorosa. Aos trinta e três anos, Picquart era chefe de batalhão e professor na Escola de Guerra. Era um oficial inteligente, muito dotado e trabalhador, possuía um caráter tão discreto quanto complicado e qualidades intelectuais raras. Teve reconhecimento por sua competência e dedicação (BREDIN, 1995).

A via normal do trabalho de M. Picquart na seção o levou a descobrir um segundo caso de traição. Outro oficial traidor estava em liberdade. Sem nenhuma razão, colocando-se acima de seu dever, o coronel não contou nada a seus superiores, esse silêncio forneceu, mais tarde, elementos que ameaçaram sua carreira (REINACH, 1903, p. 247).

 Um novo personagem: Walsin-Esterhazy

Georges Picquart começou sua investigação. Descobriu, através do anuário militar, que o comandante Walsin-Esterhazy (1847-1923) fora designado ao 74º regimento de linha, na ocasião, aquartelado em Paris. O comandante Curé era seu conhecido e oficial superior deste regimento. Como possuía intimidade e o encontrava frequentemente, convocou-o ao ministério, tendo o objetivo de lhe fazer algumas perguntas sobre M. Esterhazy. Ouviu impressões que não eram em nada positivas. Na opinião de seu amigo, este indivíduo parecia levar uma vida dissoluta, jogar frequentemente na bolsa de valores e, consequentemente, estar sempre sem dinheiro.

M. Curé recordou-se de que Esterhazy procurava frequentemente obter informações confidenciais relacionadas à artilharia e a tiros e que, por duas vezes, havia sido escalonado para as escolas de tiros. Seu interesse pela artilharia era enorme, continuamente solicitava cópias de matérias, especialmente ao soldado Écalle. Resumindo: era intrometido, bisbilhoteiro e indiscreto. O Comandante Picquart pediu a M. Curé uma amostra da letra de Esterhazy, pedido de rotina, contudo ele lhe disse não possuir nenhuma e recusou-se a consegui-la pessoalmente (REINACH, 1903, p. 249).

Depois de ter se aconselhado com M. Henry, M. Picquart confiou a dois delegados especiais, destacados do Ministério da Guerra, a missão de fazer uma discreta investigação sobre Esterhazy. Segundo a investigação, o Benfeitor145

apresentava graves problemas financeiros; mantinha uma amante, Marguerite Pays; tinha diversos credores e era mau pagador; compartilhava a intimidade do oficial judeu Maurice Weil; mantinha relações com o jornalista Édouard Drumont; estava em negociações para fazer parte do conselho de administração de uma sociedade inglesa. O delegado destacou ainda que não se notava nada de suspeito em aspectos relacionados à questão nacional, somente que, há algum tempo, seu humor havia se tornado um pouco sombrio. Dias depois, o mesmo policial, ao acaso, encontrou Picquart e informou-lhe que M. Esterhazy havia sido visto, por duas vezes, entrando na embaixada da Alemanha. Durante o mês de maio, M. Picquart, ao encontrar o comandante Curé, na saída do Ministério, perguntou-lhe sobre o oficial Esterhazy e ouviu como resposta outra pergunta: “– Continua suspeitando dele?”, a resposta de M. Picquart foi contundente: “– Não tenho suspeitas, tenho certezas.” M. Curé lhe aconselhou: “– Seja prudente, tu tens um caso muito maior do que tu”146 (REINACH, 1903, p. 249)

Todos estavam mais precavidos depois do evento Dreyfus. As investigações pareciam ter sido em vão. Em agosto de 1896, M. Picquart aguardava informações sobre Esterhazy, as quais não chegavam. Nesse momento, escolheu relatar a seus superiores as suspeitas que repousavam sobre Esterhazy. Picquart decidiu escrever ao general Boisdeffre para solicitar uma entrevista urgente. Ambos encontraram-se na estação Lyon, dentro do carro do Estado-Maior. O chefe da Seção de Estatística

145 Pseudônimo dado a Esterhazy .

afirmou acreditar que acabava de encontrar outro traidor e citou o nome do oficial Walsin-Esterhazy. Este nome não significava nada ao chefe do Estado-Maior. Sem sofrer nenhum tipo de recriminação, foi autorizado a prosseguir com as investigações. Calmamente, o general Boisdeffre, autorizou M. Picquart a falar com o ministro da guerra.

O encontro de Picquart com o general Jean-Baptiste Billot (1828-1907), na ocasião, ministro da guerra, ocorreu no dia seguinte. O ministro, que estimava M. Picquart, o escutou com atenção e, aprovando sua prudência, recomendou-lhe prosseguir a investigação, mas não o autorizou a solicitar um exemplar da letra de Esterhazy. Apesar de não ter grande estima por M. Esterhazy, não desejava outro episódio Dreyfus (REINACH, 1903).

Enquanto isso, Esterhazy, depois de ter fracassado junto à companhia inglesa, empenhava-se para ser nomeado para o Ministério da Guerra. Para atingir seu objetivo mobilizou o deputado Jules Roche, que era vice-presidente da comissão do exército na Câmara, M. Roche escreveu ao ministro da guerra recomendando o oficial Esterhazy. O oficial Maurice Weil (1845-1924) também interveio a favor de Esterhazy. Ambos multiplicaram suas diligências e mantiveram farta correspondência. Obviamente, Picquart, que ordenou interceptar as cartas de Esterhazy, foi alertado em relação à correspondência de M. Weil e M. Roche, assim como M. Boisdeffre, chefe do Estado-Maior, e o general Billot, ministro da guerra. O ministro demandou que as cartas interditadas de Esterhazy fossem encaminhadas para a Seção de Estatísticas (REINACH, 1903).

No fim de agosto, seguindo orientações de seu superior, general Billot, M. Robert Calmon, chefe de gabinete do ministério, fez com que duas cartas de Esterhazy chegassem às mãos de M. Picquart: uma dirigida ao comandante Thevenet, amigo de Maurice Weil e vinculado ao gabinete de Billot; outra ao próprio M. Calmon – eram duas cartas com solicitações veementes. M. Picquart havia encontrado o exemplar que tanto procurava. Sua satisfação era evidente. Realizando a analogia entre a escrita de Esterhazy e a escritura do borderô, concluiu: “Isso não é mais semelhante, é idêntico”147 (REINACH, 1903, p. 290). A

evidência era enorme e a conclusão óbvia: o relatório não havia sido escrito por Alfred Dreyfus, era obra de Esterhazy.

Sempre metódico e prudente, o comandante Picquart tomou algumas precauções antes de relatar sua descoberta a seus superiores. Solicitou a um de seus auxiliares para fotografar as duas cartas de Esterhazy, cobrindo as partes do documento que identificavam tanto o expedidor como os destinatários. Em uma das cartas, ele solicitou que fosse trocada a expressão ‘Meu caro camarada’ por ‘Caro Senhor’: pois isto permitiria mostrar as cópias dos documentos sem revelar os destinatários148.

No fim de agosto, Picquart convocou o comandante Armand du Paty Clam. Mostrou-lhe as cópias preparadas previamente e o interrogou: “– O senhor vê alguma analogia?” “– Mas é a letra de Mathieu Dreyfus”. A peculiar resposta não oferecia a Picquart nenhum esclarecimento. Bredin (1995, p. 183) problematizou: será que du Pay evocava o sistema de Bertillon, o qual sustentava que o relatório escrito por Dreyfus havia sido forjado, em parte, por imitação da letra de Mathieu?

Dias depois, o chefe da Seção de Estatística chamou a seu gabinete M. Bertillon e mostrou-lhe as cópias das cartas de Esterhazy. O perito exclamou, sem hesitar: “– É a letra do relatório Dreyfus!” M. Picquart o questionou: “– Se eu lhe disser que foram escritas recentemente?” “ – Então, replicou o perito, os judeus exercitaram alguém, durante um ano, para imitar essa letra.” Essa tese seria retomada, mais tarde, de diversas formas, pelos partidários do oficial Esterhazy (BREDIN, 1995).

 A convicção do erro judiciário

O tenente-coronel Picquart terminara de se convencer: o relatório não fora escrito por Alfred Dreyfus, As palavras de M. Sandherr, ao deixar a seção, vieram-lhe à mente: “– O senhor somente precisará pedir ao comandante Henry o dossiê que foi passado aos juízes, na sala do Conselho. Ao abri-lo, encontrará, em seu interior, os documentos convincentes.” Quando M. Henry ausentou-se da Seção de Estatística, M. Picquart solicitou ao oficial que o substituiu o pequeno dossiê que estava no cofre de M. Henry. Com expectativa de encontrar fatos graves, M. Picquart foi surpreendido com ‘o nada’ que para a defesa era tudo. O documento

148 Lauth, subordinado de M. Picquart, foi encarregado tanto de fotografar as cartas como de fazer a alteração, ele explorou este fato no processo contra Picquart, afirmando que o chefe da Seção de Estatística agiu como um falsário, ao alterar as cartas de Esterhazy (BREDIN, 1995).

‘canalha D’ não podia ser aplicado a Dreyfus. A ‘carta Davignon’149 não dizia nada.

Repassando os papéis, M. Picquart relembrou os dias do processo, veio-lhe à cabeça a imagem de Dreyfus ao fundo do tribunal: o traidor ou o inocente? Após refletir durante várias noites, somente a certeza de que houve um grave erro judiciário lhe era conclusiva (REINACH, 1903, p. 290).

Tomado por suas convicções, redigiu um relatório ao chefe do Estado-Maior, o general Boisdeffre. Descreveu o conjunto dos elementos essenciais de sua investigação e anexou os respectivos documentos necessários à compreensão e à comprovação. Seus adversários, no entanto, o acusariam de falsificar e até mesmo de forjar o petit bleu para acusar Esterhazy.

Ao reunir-se com M. Picquart, o general Boisdeffre o escutou impassivelmente, demonstrando uma ligeira surpresa, mas, quando foi evocado o dossiê secreto, teve um sobressalto, perguntando-se, em voz alta, por que este material não havia sido queimado, conforme as orientações da época. Boisdeffre, no outro dia, orientou o tenente-coronel Picquart que expusesse o caso ao subchefe do Estado-Maior, general Gonse, pois desejava conhecer a opinião deste por julgá-la preciosa e séria.

O encontro de M. Picquart e M. Gonse ocorreu fora de Paris, pois este estava em licença saúde. Depois de ouvir, por duas horas, os relatos, somente pronunciou as palavras: “– Então, fomos enganados?”150 Orientou o chefe da Seção de

Estatística para não tratar os dois episódios como um só, para separá-los em caso Dreyfus e caso Esterhazy. Essa demanda não fazia sentido para M. Picquart: como tratar um sem citar o outro? Contudo, M. Boisdeffre referendou a opinião de M. Gonse. Os dois episódios seriam tratados, portanto, de maneira fragmentada (REINACH, 1903, p. 298-299).

Viva Esterhazy!

O julgamento do comandante Esterhazy ocorreu nos dias 10 e 11 de janeiro de 1898, os debates foram coordenados pelo general Charles Luxer, na ocasião, presidente do Conselho de Guerra. A discussão se as audiências deste processo

149 A carta Davignon, anexo 40 do processo contra Dreyfus, é uma correspondência escrita pelo coronel Panizzardi a seu amigo coronel von Schwartzkoppen, que a menciona o nome do tenente- coronel Davignon, encarregado da comunicação com os adidos militares.

seriam a portas fechadas ou não estava na ordem do dia e dividia opiniões.

O Le Temps (L'affaire Dreyfus: La question du huis clos, 1898) informou que não havia consenso entre os jornais. Le Petit Parisen declarou-se contra, assegurando que as ideias de justiça da sociedade moderna eram refratárias a todo e qualquer mistério: ‘a luz confere autoridade ao julgamento; a sombra, dúvida’. L’Aurore reclamou a publicidade dos debates: ‘faz dois dias que o processo teve andamento e ainda não se conhece o teor das acusações’. Le courrier du soir, por intermédio do advogado de Esterhazy, lembrou que os crimes de alta traição normalmente eram julgados a portas fechadas, mas cogitou uma solução com as portas parcialmente fechadas. Le Siècle demandou que os debates fossem públicos.

O Conselho de Guerra adotou a solução intermediária que o general Billot propôs: Esterhazy e as testemunhas civis seriam ouvidas em audiência pública, as testemunhas militares, o advogado Louis Lebois e os peritos, a portas fechadas. Para Bredin (1995), o essencial seria garantido pelo Estado-Maior: a imprensa não tomaria conhecimento do depoimento do Coronel Picquart, peça-chave para a defesa Alfred Dreyfus.

Em 10 de janeiro, depois de fazer entrar o público, as testemunhas civis e os militares, o general Charles Luxer ordenou que entrasse o acusado. Esta foi a primeira vez que Mathieu Dreyfus encontrou-se com Esterhazy, o autor do relatório que condenara seu irmão.

O interrogatório de Esterhazy foi executado com aparente normalidade. O acusado respondeu as perguntas com uma voz calma e seca. Desempenhando com desenvoltura o papel de guerreiro caluniado, concluiu declarando que tudo aquilo que dissera era tão verdade como sua inocência (REINACH, 1903). O público composto em sua maioria por oficiais não deixou de manifestar sua simpatia por Esterhazy.

Em contrapartida, o depoimento de Mathieu Dreyfus, ouvido como testemunha, sofreu, diversas vezes, interrupções por risos e gritos, especialmente quando Mathieu afirmou que defenderia seu irmão em toda e qualquer parte. O depoimento do senador Scheurer-Kestner foi escutado com atenção até o momento em que ele disse possuir a certeza de que não fora Dreyfus o autor do relatório. A sessão a portas fechadas foi instalada após os depoimentos de Marguerite Pays,

visivelmente aflita, e de Maurice Weil que nada declarou.

Assim, M. Picquart forneceu suas explicações a portas fechadas. Calmo, preciso, sem emoção aparente, relatou tudo o que sabia. Quando pronunciou o nome dos oficiais Billot, de Boisdeffre, de Mercier, o general Georges-Gabriel de Pellieux (1842-1900), calado até aquele momento, interveio, proibindo o depoente de envolver nomes importantes do Ministério da Guerra (BREDIN, 1995).

A hostilidade a M. Picquart era tão evidente que um dos juízes interpôs a pergunta se M. Picquart era o réu. M. Henry, em sua fala, atacou duramente o chefe da Seção de Estatísticas, uma violência premeditada, mas que M. Picquart soube muito bem responder. Sua precisão fez com que M. Henry se perdesse em relação a algumas datas, precisando o general Pellieux intervir.

Esterhazy escutava distraidamente, com um ar de espectador entediado que assistia a uma representação teatral de má qualidade (REINACH, 1903, p. 213). Após o pronunciamento de cinco horas do advogado de defesa, os juízes retiraram- se para deliberar. Em menos de cinco minutos, as portas foram abertas ao público e o general Charles Luxer pronunciou a sentença: “Por unanimidade, o comandante Esterhazy foi absolvido”. Os aplausos e os gritos eclodiram: “Viva o Exército!”, “Viva a França!”, “Morte aos judeus!”, “Abaixo o sindicato!” (ibid., 215)

De mil a 1500 pessoas estavam no entorno do Cherche-Midi, elas aguardavam aquele que triunfara, quando o viram sair da prisão, com as mãos estendidas. Uma voz forte se fez escutar: “Tirem os chapéus diante do mártir dos judeus!”151(ibid., 216). O julgamento de Esterhazy configurava-se como a extensão

ou o segundo julgamento de Alfred Dreyfus.