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CAPÍTULO 1: TRAJETÓRIA DO TRAILER NOS ESTADOS UNIDOS

1.1. Os primeiros trailers de cinema

O uso de trailers como um chamariz para o próximo espetáculo surgiu no início da década de 1910, nos Estados Unidos. No capítulo “Self-promoting story events: die Serienform und die Erfindung des Trailers” (em tradução livre, “Eventos de cinema que se autopromovem, o filme seriado e a invenção do trailer”), Hediger estabelece a origem norte-americana do formato (2001, p. 61-82). A documentação e a pesquisa de Hediger em arquivos foram, posteriormente, confirmadas pela pesquisa de Kernan (2004, p. 234). Embora tome o cuidado de ressalvar que a iniciativa do trailer pode não ter sido prerrogativa exclusiva do exibidor dos Estados Unidos, Kernan admite que não conseguiu localizar objetos fílmicos ou estudos que ofereçam uma alternativa à gênese norte-americana do trailer de cinema. Em nota, Kernan reconhece que estudos internacionais seriam valiosos para traçar paralelos sobre a trajetória do formato. Sendo a projeção de uma prévia da próxima atração uma iniciativa dos exibidores para vender mais ingressos, há de se considerar a possibilidade de objetos similares ao trailer terem surgido paralelamente em outros locais.

Foi nos Estados Unidos, contudo, que o trailer amadureceu em uma série de convenções compartilhadas entre indústria e público. A própria palavra utilizada para designar o formato no Brasil, desde os anos 1920 até a atualidade, é de origem norte- americana. Por estes motivos, para estudar a história do trailer no Brasil, é essencial saber como se deu a trajetória do formato nos Estados Unidos.

Podemos pensar que os precursores dos trailers nos programas foram as lanternas mágicas, que podiam projetar anúncios estáticos das próximas atrações. Os slides das lanternas mágicas podiam conter imagens estáticas de intérpretes e elementos significantes de sua cenografia, acompanhados ou não de texto, e eram projetados entre os programas (KERNAN, 2004, p. 27).

Os primeiros registros da promoção de filmes através de trailers datam de 1912. Kernan coloca que o primeiro trailer teria sido exibido em um parque de diversões em Nova Iorque, ao final da projeção do seriado 28 As aventuras de Kathlyn (The

28 Conceitualmente, existem distinções entre filmes em série (episódios autocontidos) e seriados (uma história

adventures of Kathlyn, Francis J. Grandon, 1912/13). A autora cita o depoimento de Lou Harris, chefe da divisão de trailers da Paramount durante os anos de 1960:

O primeiro trailer foi exibido em 1912 em Rye Beach, Nova Iorque, um parque de diversões similar a Coney Island. Na ocasião, foi estendido um lençol branco onde era projetado o seriado As aventuras de Kathlyn. Ao final do rolo, Kathlyn era jogada na cova dos leões. Depois disso, vinha a reboque [trailed] um pedaço de filme perguntando: “Será que ela escapará dos leões? Descubra no eletrizante episódio da próxima semana”. Daí a palavra “trailer”, uma publicidade para um filme que está por vir. Tentou-se chamar de prévias ou de prévia das próximas atrações, mas todos no negócio chamam de “trailers” 29 (entrevista concedida originalmente ao jornal Los Angeles Times,

Los Angeles, 25 out. 1966, p. 10, apud. KERNAN, 2004, p. 27).

Tomando como referência esta informação de Kernan, grande parte dos trabalhos norte-americanos em torno do formato cita As aventuras de Kathlyn como o primeiro trailer. Hediger também menciona este como um dos primeiros trailers exibidos. No entanto, o autor considera outra ficção seriada, O que aconteceu com Mary (What happened to Mary, Charles Brabin, 1912), realizada pela Edison Company, como o título para o qual foi realizado o primeiro trailer. Hediger menciona também o seriado Os perigos de Paulina (The perils of Pauline, Louis J. Gasnier, 1913), exibido no Loews Theater em Nova Iorque, como um dos primeiros trailers.

De início, o trailer não estava, como hoje, atrelado ao filme de longa duração, até porque este ainda não era o padrão do mercado. Os trailers de As aventuras de Kathlyn e O que aconteceu com Mary eram paratextos coerentes para programas seriados e espetáculos de variedades, com diversas atrações, que se estendiam ao longo de dias ou meses. Hediger coloca que a própria estrutura episódica e heterogênea dos programas do início do século, compostos de várias “atrações” (projeções, música, dança e teatro), constituiu um convite à produção de trailers. Os eventos de cinema, em seus episódios e intervalos, precisavam se autopromover, ou seja, informar ao público a sua continuidade, dali a duas horas ou um mês.

autocontidos dos filmes em série compartilham personagens, temas e o nome da produção. No que tange o trailer, portanto, embora existam diferenças nos filmes, a operação de vendas dos trailers é similar a de atrair o público para a próxima projeção. Hediger e Kernan utilizam o termo serial (seriados), mas os trailers originais por vezes utilizam o termo series (séries).

29 Do original, em inglês: “The first trailer was shown in 1912 at Rye Beach, New York, which was an amusement

zone like Coney Island. One of the concessions hung up a white sheet and showed the serial The adventures of

Kathlyn. At the end of the reel Kathlyn was thrown in the lion’s den. After this ‘trailed’ a piece of film asking ‘Does she escape the lion’s pit? See next week’s thrilling chapter’. Hence, the word ‘trailers’, an advertisement for an upcoming picture. They’ve tried calling them previews or prevues of coming attractions, but everybody in the trade calls them trailers”.

Os primeiros registros da exibição de trailers estão situados tanto em salas fixas quanto em espetáculos ambulantes, em um contexto muito próximo ao circo e ao vaudeville (KERNAN, 2004, p. 17-24). Nos anos iniciais do cinema, era prática entre os exibidores a inserção de letreiros e a remontagem de filmes para compor programas. Se a atuação do exibidor é importante para este período inicial do cinema de forma ampla, ela é também importante para o surgimento da prática dos trailers em específico. Como publicidade, a projeção de trailers foi um modo de expandir o negócio, uma iniciativa de anunciar as próximas atrações ao público frequentador dos espetáculos.

FIG. 1.1: Fotogramas do trailer de O que aconteceu com Mary. “O próximo incidente da série O que

aconteceu com Mary será exibido na semana que vem”. Fonte: HEDIGER, 2001, p. 79.

Alguns destes primeiros trailers continham imagens em movimento, como no caso do trailer do décimo quarto episódio do seriado As aventuras de Elaine (The exploits of Elaine, Louis Gasner, 1914). No entanto, muitos deles eram apenas intertítulos simples, como O que aconteceu com Mary e As aventuras de Kathlyn, acompanhados de imagens fixas do próximo episódio. Da leitura das descrições disponíveis sobre sua composição, eles não parecem se diferenciar plasticamente da promoção estática já feita pelas lanternas mágicas. Conceitualmente, talvez seja mais adequado pensarmos estes primeiros trailers como proto-trailers.

Estes anúncios junto aos filmes surgiram entre 1912 e 1914 com os seriados e rapidamente se popularizaram junto com as aventuras em série, que obteriam proporções de “fenômeno cultural” 30 (HEDIGER, 2001, p. 67). Conforme verificou

Ben Singer, em 1915 existiam nos Estados Unidos 60 revistas e jornais voltados às aventuras seriadas, com uma circulação total de 80 milhões de cópias mensais (SINGER, 2013, p. 235). A popularidade destes filmes contribuiu para estabelecer a

prática do trailer entre os profissionais do mercado e o desenvolvimento da linguagem da publicidade de cinema.

Nos Estados Unidos, os exibidores, interessados em expandir o negócio, empreenderam a articulação destas prévias das próximas atrações entre 1912 e 1914. Em 1915/16, concomitantemente ao estabelecimento do padrão do longa-metragem, a prática de produzir trailers com letreiros ganha popularidade. Por volta de 1915, os trailers passam a incluir com mais frequência cenas dos filmes, além das imagens fixas. Estes anúncios com imagens em movimento foram chamados, à época, de “animated heralds”, algo como “arautos animados”, e também de “scene announcements” (HEDIGER, 2002, p. 203), em português, “anúncios de cena”. Dentro do sistema do longa-metragem, a linguagem destes anúncios de cena logo se sofisticaria para compor o trailer de cinema.