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2. PRISÃO PROCESSUAL DECORRENTE DE SENTENÇA PENAL

2.1 Do Princípio da Presunção de Inocência

O princípio da presunção de inocência é a coroa de um estado democrático de direito. Todo o ordenamento jurídico penal orbita em sua volta. O ministro Nilson Naves, do Superior Tribunal de Justiça, em uma de suas decisões, com muita ousadia, disse que

presume-se que toda pessoa é inocente, isto é, não será considerada culpada até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, princípio que, de tão eterno e de tão inevitável, prescindiria de norma escrita para tê-lo inscrito no ordenamento jurídico. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 45.416/MG. Relator: Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA. 6ª Turma, Julgamento em: 03/11/2005, publicado no DJ de 10/04/2006 p. 304).

A ideia de presunção de inocência ganhou força “entre os postulados fundamentais que presidiram a reforma do sistema repressivo empreendida pela revolução liberal do século XVIII”. (GOMES FILHO, 1991, p. 9).

No entanto, existem estudos que apontam existir uma origem ainda mais remota da ideia de presunção de inocência, datada na antiguidade, no direito romano.

O advogado mexicano Oscar Uribe Benítez fez um estudo e esboçou algumas evidências sobre as origens da presunção de inocência na antiguidade. O advogado e professor de ciência penais, com base nos estudos do doutrinador

italiano Luigi Ferrajoli, expõe três fontes que demonstram a existência de uma presunção de inocência no direito romano. Benítez (2007, p.11)

asevera que el principio de presunción de inocencia proviene del derecho romano, basándose en tres fuentes, a saber:

a) Los escritos de Trajano: “Statius esse impunitum relinqui facinus nocentis, quam innocentem dammare” (Ulpianus, 10 de officio proconsulis, D. 48.19.5); (Es mejor dejar impune un delito, que condenar a un inocente)

b) La máxima de Pablo (69 ad edictum): “ei incumbit probatio qui dicit non qui negat. D. 22.3.2) (Le incumbe probar a quien afirma, no a quien niega); y em

c) Los brocárdicos medievales: “affirmanti non neganti incumbit probatio” y “actore non probante reus absolvitur”. (Le incumbe probar a quien afirma, no a quien niega. Si el actor no prueba, el reo debe ser absuelto).

Ainda, com base nos esboços históricos de Benítez, a primeira referência acima descrita é atribuída a Trajano, imperador romano entre os anos 98 e 117 d.C. A segunda referência é atribuída a Pablo, que em latim se refere a Iulius Paulus, jurisconsulto do século III d.C. As duas primeiras referências possuem como fonte o Digesto, também chamado de Pandectas. A terceira referência advém dos brocardos medievais, que eram fruto dos estudos acerca do direito romano realizados no período medieval. (BENÍTEZ, 2007, p. 11)

Com relação às origens modernas da presunção de inocência, não existem grandes discussões doutrinárias. É entendimento majoritário entre os estudiosos, a exemplo de Oscar Uribe Benítez, Perfecto Andrés Ibáñez, Fernando Brandini Barbagalo, Maurício Zanoide de Moraes, e Luiz Flávio Gomes, que as teorizações mais concretas sobre a presunção de inocência começaram a surgir na idade moderna. A revolução francesa foi indicada como o marco principal da presunção de inocência no mundo moderno.

Dessa revolução nasceram muitos dos direitos mais elementares do cidadão, e que hoje em dia estão insculpidos nas constituições democráticas contemporâneas.

Fruto da queda dos regimes totalitários e nascimento de uma nova era em matéria de direitos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,

positiva, pela primeira vez na história, uma série de direitos, dentre esses, expõe em seu artigo 9° a presunção de inocência, conforme preceitua

que todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei. (FRANÇA, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, art. 9°, 1789)

Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece em seu artigo 11, §1° que

toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. (ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 11, §1°, 1948).

O Brasil votou na Assembleia Geral da ONU, e por essa razão ratificou tacitamente a declaração. Porém, somente quarenta anos mais tarde é que a constituição positivou o princípio no ordenamento jurídico nacional.

É interessante observar que houve uma sensível modificação no sentido da presunção de inocência da declaração de 1789 para a de 1948. A primeira declaração, trouxe uma importante inversão no status do réu, que na época, possuía uma verdadeira presunção de culpabilidade, ou seja, era incumbência do acusado a prova de sua inocência. A segunda, carregou consigo a essência da primeira, a presunção de inocência pura e simples, e acrescentou alguns elementos processuais.

Batisti apud Barbagalo (2015, p. 38), ensina que

houve alteração na apresentação da presunção de inocência entre 1789 e 1948. A Declaração de 1789 centrou a presunção de inocência na punição do rigor desnecessário, mantendo um isolamento referencial do princípio, enquanto que, na Declaração de 1948, o princípio se fez acompanhar de um parâmetro temporal e de duas especificidades que antes dizem respeito ao processo do que ao princípio de inocência. Pode-se dizer que a presunção de inocência, como equilíbrio entre a garantia social e liberdade

individual assumiu logo o que veio a ser reconhecido como princípio político do processo.

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada na Nona Conferência Internacional Americana, em Bogotá, Colômbia, em 1948, também previa a presunção de inocência em seu artigo XXVI, in verbis: “parte-se do princípio que todo acusado é inocente, até provar-se lhe a culpabilidade”. Nesta declaração positivou-se, pela primeira vez na América, a presunção de inocência.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, também insculpiu o princípio da presunção de inocência em seu artigo 8°, inciso II, in verbis: “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. O Brasil aderiu ao referido pacto, promulgando-o por meio do Decreto n° 628, de 6 de novembro de 1992.

A título de informação, na Europa a Recomendação n° R (80) 11, de 27 de junho de 1980, do Comitê de Ministros, na 321° reunião, recomendou que os governos dos estados membros velassem pela observação de determinados princípios quando da aplicação da prisão preventiva. Dentre os princípios gerais a serem observados estava a presunção de inocência.

“Dada la presunción de inocencia en tanto no se demuestre su culpabilidad, ningún acusado deberá hallarse en situación de prisión preventiva, a no ser que las circunstancias hagan estrictamente necesaria dicha medida. Por tanto, la prisión preventiva deberá considerarse como medida excepcional y nunca deberá ser obligatoria ni utilizarse con fines punitivos”27.

No ordenamento jurídico pátrio, atualmente, a presunção de inocência está consagrada na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5°, inciso LVII, in verbis:

27 Recomendaciones y Resoluciones del Comite de Ministros del Consejo de Europa en Materia Juridica.

Ministerio de Justicia. Secretaria General Tecnica. Madrid, 1992. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=C8mU-

2HKLyMC&pg=PA361&lpg=PA361&dq=Recomendaci%C3%B3n+n+R(80)+11&source=bl&ots=0Zjk- wH7UK&sig=re8eXpmoRTPDP8_i_jFuLWWJHjA&hl=pt-

BR&sa=X&ved=0ahUKEwj5kqKfzcHUAhVChJAKHZxKA58Q6AEILjAB#v=onepage&q=Recomendaci%C3 %B3n%20n%20R(80)%2011&f=false>. Acesso em: 16 de junho de 2017.

“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Analisando os apanhados normativos colacionados é possível perceber a longa caminhada histórica pela qual passou o princípio da presunção de inocência, sendo positivado pela primeira vez após a Revolução Francesa do século XVIII, passando a ter seus fundamentos teóricos construídos desde então até chegar nas concepções doutrinárias mais contemporâneas.

Após tecidas essas considerações iniciais a respeito da presunção de inocência, sob o ângulo positivista, onde se pode ter uma noção de como este instituto passou a ser observado e recomendado pelos tratados e convenções internacionais, até os dias atuais em que é adotado pela legislação brasileira, passa- se ao estudo de sua dimensão teórica, buscando explicações sobre o seu significado e abrangência.

Considerar o acusado como sendo um inocente até que se prove o contrário, é um princípio basilar de um estado democrático de direito, dele não se pode esquecer sob pena de esquecer-se dos milhares de milhares de inocentes que tombaram pelo poder descontrolado dos crápulas tiranos. Esse entendimento surge como resultado da evolução histórica da humanidade. Esta, uma vez tendo experimentado o abominável da desolação por séculos de tiranias arbitrárias, decide impor limites e frear os abusos de poder cometidos pelos governantes poderosos contra os pobres, indefesos e impotentes governados.

Nesse sentido, Lopes Jr. (2014) ensina que a presunção de inocência

é um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável. Isso porque, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos.

Buscando as raízes teóricas do referido princípio, o magistrado espanhol Perfecto Andrés Ibáñez considera que as primeiras teorizações modernas vieram

com o iluminismo, em especial com o Marquês de Beccaria. Segundo Ibáñez (1997, p. 7) “lo certo es que su primera teorización moderna se produce teniendo como marco el pensamento jurídico de la Ilustración”.

A partir de então o pensamento jurídico sofreu significativas mudanças. Um dos expoentes do iluminismo jurídico, Cesare Beccaria (2015, p. 39), trouxe relevante contribuição doutrinária ao escrever que “un hombre no puede ser llamado reo antes de la sentencia del juez, ni la sociedad puede quitarle la pública proteccion sino cuando esté decidido que ha violado los pactos bajo que le fue concedida”.

Assim como Beccaria, outros doutrinadores escreveram sobre a importância da presunção de inocência como fundamento de uma nova concepção do status do indivíduo enquanto é processado sob acusação de praticar um fato delituoso. Essa nova construção doutrinária restou positivada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como já fora visto anteriormente.

O juiz da Suprema Corte Espanhola atribui uma dupla dimensão ao princípio da presunção de inocência. Ibáñez (1997, p.7) ensina que “actualmente, el principio de presunción de inocência tiene una doble dimensión. De un lado, es regla probatoria o regla de juicio y, de otro, regra de tratamiento del imputado”.

Em outras palavras, o jurista disse que a presunção de inocência, de um lado, é regra de absolvição caso, ao final do processo, não haja comprovação de que o réu tenha praticado determinado fato delituoso, da mesma forma que é incumbência do órgão acusador provar que tal fato foi praticado pelo réu. De outro lado, a presunção de inocência é regra de tratamento do réu, estabelecendo que esta deve ser efetivamente tratado como inocente durante todo o curso processual, até que haja uma sentença condenatória.

Segundo o jurista espanhol

en definitiva, lo expuesto hace ver cómo el principio de presunción de inocencia tiene para el proceso penal de inspiración constitucional uma significación realmente nuclear, de tal manera que muy bien podría decir se que el adecuado tratamiento de este último reclama

un correcto desarrollo y articulación institucional de todas las implicaciones del primero. Por eso, un buen diseño del proceso penal pasa por una adecuada organización de la presunción de inocencia. (IBÁÑEZ, 2005, p. 11)

Nesse sentido, corrobora-se o entendimento de Vegas Torres apud Lopes Jr. (2014) quando apontou

as três principais manifestações (não excludentes, mas sim integradoras) da presunção de inocência:

a) É um princípio fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal, estabelecendo essencialmente garantias para o imputado frente à atuação punitiva estatal.

b) É um postulado que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da ideia de que ele é inocente e, portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo (incluindo-se, é claro, a fase pré-processual).

c) Finalmente, a presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. É sua incidência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que a prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não ficar suficientemente demonstrada.

O autor ainda aponta que para haver efetiva presunção de inocência deve- se delegar a carga probatória totalmente ao acusador. Deve-se limitar a publicidade abusiva para que o acusado não sofra danos o estigma de sua imagem perante a sociedade enquanto ainda é, em tese, inocente. E, por fim, as prisões cautelares precisam ser aplicadas em casos extremamente necessários, e ainda assim, durante o tempo estritamente necessário, haja vista que essa espécie de prisão retira a liberdade de um indivíduo antes de sua condenação.

Oportunas as palavras do mestre Ibáñez (2005, p.10)

la presunción de inocencia es regla de tratamiento del imputado y regla de juicio. Y, en esa calidad, principio general necesariamente informador de un proceso de inspiración liberal-democrática.

Hoje em dia, pode-se perceber a importância do princípio da presunção de inocência para o mundo civilizado e democrático, uma vez que ainda lembra-se dos

tempos não muito distantes onde o modelo inquisidor, em sua sede insaciável, tragava inocentes.

2.2 Relação entre princípio da presunção de inocência e princípio da não

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