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2.2 PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA SOCIAL

2.2.2 Princípio social democrático

A democracia é conceituada por Paulo Bonavides como “aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo do poder legítimo”212. Nesse modelo, existem espaços políticos para que o povo participe da tomada de decisões políticas, indiretamente através de representantes (República), diretamente através de mecanismos de participação popular, como cidadão ou através da sociedade organizada, decidindo e exercendo o controle social e jurídico do poder.

O princípio democrático no direito contemporâneo é visto como princípio-síntese que abarca os valores de todas as dimensões do direito: liberdade, igualdade e fraternidade. Conforme Paulo Bonavides incorpora os princípios da igualdade e da liberdade, abraçados ao dogma da justiça, configurando-se como um direito fundamental de quarta dimensão. Precedendo à “quarta dimensão” existem os direitos fundamentais de primeira dimensão

210 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 38

211 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 50-51.

212 BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade, com ênfase no federalismo das regiões. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 13.

(direitos civis e políticos que têm por titular o indivíduo em face do Estado), os de segunda dimensão (direitos ligados ao princípio da igualdade que engloba os direitos sociais, culturais e econômicos, os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo através do Estado social) e os de terceira dimensão (direitos da fraternidade - relacionados a temas referentes ao gênero humano tais como, desenvolvimento, paz, meio-ambiente, comunicação e patrimônio comum da humanidade). Os direitos de quarta dimensão, “não somente culminam a objetividade dos direitos das gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, remover a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira geração”. Tais direitos sobrevivem e “ficam opulentados em sua dimensão principial, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico”213.

José Joaquim Gomes Canotilho visualiza o princípio democrático como algo dinâmico, inerente a uma “sociedade aberta e ativa” que oferece aos cidadãos a “possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política e social”. Há uma transformação da República para uma sociedade livre, justa e solidária, com a finalidade de realizar a democracia em todos os seus aspectos, para promover o bem-estar, a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os cidadãos, bem como a efetivação de direitos econômicos, sociais e culturais mediante a transformação e modernização das estruturas existentes214.

Na democracia atual, o papel do “povo” tem se alterado de “ícone” para fonte de todo poder que legitima a autoridade e que se exerce nos limites consensuais do contrato social. Para Friedrich Müller “povo” pode ser analisado sob quatro sentidos: a) povo ativo; b) instância global de atribuição de legitimidade; c) ícone e d) destinatário das prestações civilizatórias do Estado. Povo ativo é o titular de nacionalidade (totalidade dos eleitores de um Estado) em conformidade com as prescrições constitucionais: “por força da prescrição expressa as constituições somente contabilizam como povo ativo os titulares de nacionalidade”. Como instância global de atribuição de legitimidade: o povo elege seus representantes que elaboram as normas gerais e abstratas que regem as ações e interesses do próprio povo. Como ícone, o povo passa a ser algo irreal, mitificado, algo tutelado abstratamente e inofensivo para o poder-violência. Como destinatário de prestações civilizatórias do Estado, o “povo” representa a totalidade dos efetivamente atingidos pelo

213 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 562-573.

direito vigente e pelos atos decisórios do poder estatal, como destinatário das liberdades civis e dos direitos humanos. Para o autor, o “povo” deve ser considerado como uma “realidade viva em um mundo concreto”. “Trata-se de „todo‟ o povo dos generosos documentos constitucionais; da população, de todas as pessoas inclusive das (até o momento) sobreintegradas e das (até o momento) excluídas”215.

Para José Joaquim Gomes Canotilho, o princípio democrático é um “princípio jurídico-constitucional com dimensões materiais e dimensões organizativo-procedimentais”. Materialmente fixa fins e valores (soberania popular, garantia dos direitos fundamentais, pluralismo de expressão e organização político democrática) e processualmente fixa regras e processos para o exercício da democracia, representando mais do que “um método ou técnica de os governantes escolherem os governados, pois como princípio normativo, considerado nos seus vários aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, ele aspira tornar-se impulso dirigente de uma sociedade”216.

É princípio complexo que reúne as premissas da teoria democrática representativa (órgãos representativos, eleições periódicas, pluralismo partidário, separação de poderes) e a teoria democrática participativa, que envolve a “estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controle crítico de divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos”. Nesse sentido tem-se “o reconhecimento constitucional da participação direta e efetiva dos cidadãos como instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático e aprofundamento da democracia participativa”217.

A democracia participativa propicia a participação dos cidadãos na tomada de decisões coletivas, através de inúmeros canais que proporcionam a aferição da vontade geral, em substituição aos velhos modelos em que há a incorporação do cidadão à máquina administrativa, como agente político ou servidor público. Nela, o Estado segue parâmetros pré-estabelecidos após ampla discussão dos interessados, sempre visando ao interesse geral sob a ótica dos principais envolvidos. A apresentação, debate e deliberação de propostas, bem como a discussão de ações alternativas, passam a ser utilizados cotidianamente, pois o cidadão participa direta ou indiretamente das ações. A “participação é o lado dinâmico da

215 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Trad. Peter Naumann. 6ª ed. São Paulo: RT, 2011, p. 51-112.

216 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional, p. 287-288.

democracia, a vontade atuante que, difusa ou organizada, conduz no pluralismo o processo político à racionalização, produz o consenso e permite concretizar, com legitimidade, uma política de superação e pacificação de conflitos”218.

Segundo José Joaquim Gomes Canotilho:

Com a consagração de uma inequívoca dimensão representativa do princípio democrático, a Constituição teve em conta não só a mudança estrutural desta dimensão nos modernos Estados, mas também a necessidade de dar

eficiência, selectividade e racionalidade ao princípio democrático (orientação de output). Afastando-se das concepções restritivas de democracia, a Constituição alicerçou a dimensão participativa como outra componente essencial da democracia. As premissas antropológico-políticas da participação são conhecidas: o homem só se transforma em homem através da autodeterminação e a autodeterminação reside primariamente na participação política (orientação de input). Entre o conceito de democracia como optimização de participação, a Lei Fundamental „apostou‟ num conceito „complexo-normativo‟, traduzido numa relação dialética (mas também integradora) dos dois elementos – representativo e participativo219. Para o autor, o princípio democrático é informador do Estado, “aponta para um processo de democratização extensivo a diferentes aspectos da vida econômica, social e cultural”, tais como o controle de gestão, a gestão democrática das escolas, a participação na administração local. Como princípio de organização cumpre a função de organizar o domínio político segundo o “programa de autodeterminação e autogoverno: o poder político é constituído, legitimado e controlado pelo cidadão (povo) igualmente legitimado para participar do processo de organização da forma de Estado e de governo”220.

A dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático se desenvolve com a proposta de participação igualitária dos cidadãos entrelaçando o princípio democrático com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam “fundamentos funcionais da democracia”. Por outro lado, os direitos fundamentais como direitos subjetivos de liberdade “criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático”, e como “direitos legitimadores de um domínio democrático asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantia de organização e de processos com transparência democrática (princípio maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral)”. Como direitos subjetivos às “prestações sociais, econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem

218 BONAVIDES, Paulo. Política e Constituição: os caminhos da democracia. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 510.

219 Direito constitucional, p. 288-290.

dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos”. Assim, os direitos fundamentais teriam uma função democrática, uma vez que o exercício democrático do poder: a) significa a contribuição de todos os cidadãos para o seu exercício; b) implica participação livre assentada em importantes garantias para a liberdade desse exercício; c) envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais221.

Enquanto princípio-síntese, o princípio democrático se encontra unido por laços fortes ao Estado social de direito, pois declara e garante os direitos fundamentais do ser humano (Estado de direito), a “participação democrática do cidadão na elaboração e aplicação deste Direito” (democracia) e se abre aos direitos sociais, econômicos e culturais (Estado social).

Segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha:

O Estado submete-se ao Direito, o qual tem a sua fonte efetiva no povo livre para elaborá-lo e eficiente para fazê-lo valer. A própria concepção de povo, juridicamente concebida, modifica-se, de um conteúdo ideal para uma concepção pragmática. O povo passa a ter realidade, rosto, voz: não é composto de santos, nem de ingênuos, nem de crédulos, nem de pessoas com criticidade e vocação única para a política e para o bem, mas com todas as falhas que são próprias do ser humano, que são de sua essência e que não devem torná-los, apenas por isso, inacessíveis ao Poder.

A liberdade individual, tanto quanto a igualdade jurídica e participação popular igual e livre no Estado somam-se para estabelecer uma nova realidade estatal, na qual a Justiça material e pronta, como justificativa, e a criação e garantia de condições de vida digna para todos os indivíduos, como fim do Estado, não aniquilem as liberdades públicas individuais nem solapem as relações sociais justas222.

O Estado social atua para ensejar o “desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural e a mudança social) e a realização de justiça social (é dizer, a extinção das injustiças na divisão do produto econômico)”223. Para José Joaquim Gomes Canotilho, a abertura da democracia para o social adota “novas premissas normativas da justiça econômico-social, caracterizadas por uma maior abertura para o „social concreto‟, por uma maior „normalidade social‟ desenvolvida ou implementada quer pelo Estado quer pelos cidadãos”224. A “realização da democracia econômica, social e cultural é uma consequência

221 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional, p. 290-291.

222 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública, p. 75

223 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, p. 55.

política e lógico-material do princípio democrático”, uma vez que o princípio da democracia econômica e social contém uma imposição obrigatória dirigida aos órgãos de direção política no sentido de “desenvolverem uma atividade econômica e social conformadora, transformadora e planificadora das estruturas socioeconômicas, de forma a evoluir-se para uma sociedade democrática”225.