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2 ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA COMO

2.4 PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA – REDISTRIBUIÇÃO E DE RECONHECIMENTO

RECONHECIMENTO

Sen (2000) ao discutir os fundamentos da justiça a partir da liberdade considera os princípios teóricos por meio das suas respectivas bases informacionais, destacando dois elementos: o primeiro diz respeito a base informacional para juízos avaliatórios; e segundo se

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17 Demodiversidade é um termo inventado por Boaventura Sousa dos Santos e significa as diferentes formas que

refere as questões relativas a três teorias tradicionais de ética e justiça social, que envolvem o utilitarismo, o libertarismo e a teoria da justiça de Rawls. As três teorias consideram uma abordagem avaliatória, que pode ser caracterizada por uma base informacional, isto é, as informações relevantes são incluídas e excluídas para formar juízos ou para discutir uma abordagem alternativa da avaliação que enfoca diretamente a liberdade sob a forma de capacidades individuais.

As informações incluídas e excluídas, em uma perspectiva utilitarista baseiam-se nas utilidades, como o prazer, a felicidade ou a satisfação. As liberdades substantivas teriam um papel indireto por meio de seus efeitos sobre os números relativos à utilidade, interessando-se apenas a soma total de todos em conjunto. O utilitarismo clássico envolve informações relacionadas à felicidade e o prazer, enquanto que nas formas modernas do utilitarismo, a essência da “utilidade” é compreendida a partir da satisfação de um desejo ou algum tipo de representação ou comportamento de escolha de uma pessoa (SEN, 2000).

O utilitarismo forma sua base informacional a partir do somatório de três requisitos divididos em três componentes diferentes: a) “consequencialismo”, que envolve o julgamento das escolhas (ações, instituições, regras) e os resultados gerados, sendo que a melhor ação é aquela que resulta em uma maior utilidade se comparada às possíveis ações alternativas; b) “welfarismo”, que restringe os juízos sobre os estados de coisas às utilidades nos respectivos estados, toda escolha é avaliada em conformidade com as respectivas utilidades; e c) “ranking pela soma”, que trabalha as utilidades somadas conjuntamente pela obtenção de mérito agregado das utilidades sociais. Os três componentes da base informacional buscam julgar cada escolha a partir da soma total de utilidades geradas por meio dessa escolha (SEN, 2000).

As limitações da abordagem utilitarista são definidas a partir de três dimensões: a) indiferença distributiva, que não leva em consideração as desigualdades na distribuição de felicidade, focando apenas na soma total; b) descaso com os direitos, liberdades e outras considerações desvinculadas da utilidade; e c) adaptação e condicionamento mental, que não foca o bem-estar individual como base sólida. Os limites desta abordagem são relacionados ainda aos destituídos, a partir do momento que os mesmos tendem a conformar-se com sua privação pela pura necessidade de sobrevivência e podem não ter coragem de exigir alguma mudança radical (SEN, 2000).

A base informacional do libertarismo consiste na liberdade formal, conduta correta, avaliação da situação, não tendo interesse direto na felicidade ou na satisfação dos desejos. Na teoria da Justiça de John Rawls, a prioridade é a liberdade formal, que tem

precedência política sobre a promoção dos objetivos sociais. Os procedimentos buscam garantir os direitos, independente das consequências que deles possam advir. A questão crucial não é a total precedência, mas sim, se a liberdade formal garante o mesmo tipo de importância que a de outros tipos de vantagens. As abordagens da ética, economia do bem- estar e filosofia política podem ser analisadas a partir das informações que servem de base para juízos avaliatórios nas respectivas abordagens. Assim, ao analisar as abordagens avaliatórias do utilitarismo, do libertarismo e da justiça rawlsiana, destaca-se os méritos e limitações em cada uma destas estratégias (SEN, 2000).

Em Honneth (2003) a teoria da justiça está relacionada aos princípios morais que dependem do reconhecimento como condição da qual o sujeito consiga a sua autoestima. Com base nas teorias de Mead e Hegel, Honneth assegura que a vida social se efetua a partir do reconhecimento recíproco e os sujeitos só conseguem a auto relação prática a partir do momento que aprendem a conceber a interação com os seus destinatários sociais. A teoria do reconhecimento é dependente da organização e equiparação socialmente de uma esfera existente da sociedade. Todas as demandas que envolvem o conceito de justiça distributiva estão relacionadas às categorias normativas. O reconhecimento é uma categoria moral fundamental e o processo de distribuição é uma derivativa do seu conceito.

Honneth (1992, p. 188-189) assegura que o reconhecimento é uma questão ética e a negação do mesmo é prejudicial e pode impedir “[...] que as pessoas tenham uma visão positiva de si mesmas – uma visão que é adquirida intersubjetivamente”.

O reconhecimento corresponde a um processo integrado, que envolve três esferas distintas e interdependentes: o afetivo, o jurídico e a estima social. O reconhecimento afetivo está relacionado à reciprocidade amorosa nas relações primárias que envolvem fortes ligações emotivas entre pessoas, relação mãe e filho durante a primeira infância, relações de amizade, e relações eróticas entre os casais. O afeto necessita de satisfação ou correspondência, sendo explicada pela psicologia e psicanálise, que entendem as relações como autoafirmação individual. Entende-se por relações amorosas todas as relações primárias, que envolvem ligações emotivas fortes entre poucas pessoas. O amor representa a primeira etapa da teoria do reconhecimento recíproco, sendo necessária uma correspondência ligada ao sentimento de estima especial. O reconhecimento de uma pessoa depende da aceitação cognitiva da autonomia do outro, isto é, um duplo processo de uma ligação emotiva simultânea. Toda relação de “amor” está ligada a condição de atração e simpatia de forma recíproca (HONNETH, 2003).

O reconhecimento jurídico está relacionado ao direito civil, respeito e oportunidade de todos os indivíduos que vivem em sociedade. O indivíduo que não é respeitado pela sociedade, não tem reconhecimento e nem consegue reconhecer o próximo. O desrespeito pode provocar ainda reações emocionais que servem de base motivacional afetiva para lutar pelo reconhecimento. O direito ou o reconhecimento jurídico possui aplicação nas obrigações e deveres individuais e dos outros, sendo que só a partir disso é entendida a pessoa de direito. Todo sujeito humano é portador de direito e deve ser reconhecido como pessoa e membro da organização social, isto é, os indivíduos vivem em pé de igualdade. Se em um Estado o homem é reconhecido e tratado como livre e como pessoa, respeitando a vontade da lei, cria um ambiente universal onde os indivíduos se reconhecem (HONNETH, 2003).

O reconhecimento por estima social está relacionado à solidariedade, ao cuidar, compartilhar e doar. Significa o envolvimento do indivíduo com os problemas sociais, existe um eu e existe o outro, existe algo do outro que identifica em mim e que eu passo a reconhecer. O reconhecimento parte da diferença para a desigualdade. Cada esfera de reconhecimento implica formas diferentes de auto relação individual, autoconfiança, auto respeito e autoestima. No entanto, apesar de serem diferentes, envolvem um conjunto indissociável e interdependente, que não pode ser fragmentado nas políticas públicas. A ausência de uma destas três formas pode acarretar na falta de reconhecimento social do indivíduo, o que dificulta os mesmos a chegarem a um estágio de solidariedade (HONNETH, 2003).

Fraser (2007) em sua teoria de justiça enfoca oss dois princípios, redistribuição ligada à economia e reconhecimento ligado à cultura, que se disseminaram após a queda do socialismo soviético no final do século XX. As duas manifestações devem integrar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto às reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença. A justiça está acima das reivindicações éticas na busca da eliminação das disparidades ilegítimas entre as oportunidades conferidas aos agentes sociais. O reconhecimento não é uma categoria central da Sociologia e da Psicologia Moral, baseada apenas na auto realização individual, mas sim, como uma questão essencial da justiça, sendo explicado a partir de um padrão universal de justiça e de igual valor do ser humano.

A concepção ampla de justiça orientada para paridade de participação é universalista, inclui tanto redistribuição, quanto reconhecimento com foco na igualdade de valor na moral dos seres humanos. O entendimento de participação na vida social é ampliado e depende do reconhecimento das pessoas em sociedade. A luta por este modelo moral de

reconhecimento das minorias não invalida as manifestações que visam o campo econômico (FRASER, 2007).

Para estabelecer a paridade participativa são necessárias condições objetivas e subjetivas: as condições objetivas estão relacionadas à exclusão dos níveis de dependência econômica e desigualdade que impeçam a igualdade de participação, bem como a minimização das disparidades na renda, tempo de lazer, riqueza e recursos materiais; enquanto as condições subjetivas se referem à oportunidade para todos de atingir estima social por meio da institucionalização de valores culturais que expressem e garantam igual respeito e oportunidades para todos os participantes. Ambas as condições são importantes para aquisição da paridade de participação e formam uma concepção bidimensional de justiça (FRASER, 2007).

As forças da política progressiva dividiram-se basicamente em dois campos: redistribuição e reconhecimento. No campo da redistribuição ganharam destaque as organizações igualitárias, trabalhistas e socialistas, que tinham como escopo a equidade. No âmbito do reconhecimento é destacada a sociedade “amigável às diferenças” com foco no reconhecimento das minorias étnicas, “raciais” e sexuais, bem como a nacionalidade e a diferença de gênero que criou um novo paradigma normativo com o ser reconhecido no centro do processo. As relações nos dois tipos de força política são tensas e em muitos casos as lutas por reconhecimento estão dissociadas das lutas por redistribuição, um exemplo disso é o feminismo, que encara a redistribuição como um remédio para a dominação masculina (FRASER, 2007).

A política de redistribuição enfatiza as injustiças socioeconômicas e presume estarem enraizados na estrutura político-econômica, os sujeitos coletivos da injustiça são as classes sociais ou coletividades, os quais são definidos economicamente por meio das relações com o mercado ou com os meios de produção. As injustiças estão relacionadas à exploração do trabalho, a marginalização econômica e a privação de um padrão material de vida adequado. As políticas de reconhecimento referem-se às injustiças culturais, as quais estão enraizadas nos padrões sociais de representação, comunicação e interpretação. O remédio para a injustiça é a transformação cultural ou simbólica, e as vítimas da injustiça são definidas pelas relações de reconhecimento (FRASER, 2008).

Com o avançar das pesquisas, a política de reconhecimento é aproximada do campo da moralidade, o que rompe com o padrão antigo relacionado à “identidade”. O reconhecimento passa a corresponder à identidade cultural específica de um grupo (autoafirmação) e o não reconhecimento seria a depreciação da identidade por uma cultura

dominante, uma forma de subordinação institucionalizada, que viola a justiça. Esta proposta trata o reconhecimento como elemento central para aquisição de status social de um grupo, que percebe o sujeito como membro integral da sociedade com igualdade de participação (FRASER, 2007).

O reconhecimento e a participação popular são elementos de grande relevância:

[...] no âmbito das sociedades democráticas, já não é possível falar em processo de deliberação pública senão a partir da ideia de reconhecimento igualitário. O exercício democrático pressupõe tratar a todos como iguais independentemente das múltiplas identidades sexuais, raciais, étnicas ou religiosas. É neste sentido que o compromisso com o princípio da cidadania igualitária envolve a atribuição de iguais direitos a todos e só admite a alteração desse esquema se a distribuição desigual de direitos vier a beneficiar os mais desfavorecidos (CITADDINO, 2005, p. 2).

O reconhecimento das especificidades culturais enquanto política pública evidencia o alcance, a eficácia e a legitimidade das normas que o Estado nacional produz e busca efetivar. A linguagem pública pode mostrar as vidas marcadas por falta de dignidade. Os grupos minoritários obrigam o Poder Judiciário, a se posicionar e construir uma nova concepção de justiça, que passa pelo exercício simultâneo de reconhecimento de identidades e redistribuição na busca de igualdades. Os cidadãos só podem gozar de certas liberdades subjetivas quando exercerem a soberania popular e definem as normas e interesses que devem ser reconhecidos (CITTADINO, 2005).

Integrar redistribuição e reconhecimento é um desafio que significa envolver-se imediatamente em um nexo de difíceis questões filosóficas, que nunca se encontram. A distribuição situa-se no campo da moral e da política econômica, enquanto que o reconhecimento pertence à ética, de busca da felicidade pessoal, uma vez que exige o julgamento sobre o valor das práticas, características e identidades variadas. Não existe uma necessidade de escolha, sendo possível relacionar redistribuição e reconhecimento, sem cair na “esquizofrenia filosófica” (FRASER, 2007).

O debate sobre redistribuição e reconhecimento remeteu ao diálogo entre Fraser e Honneth ao tratar das interpretações de fenômenos culturais e sócio-políticos que afetam dinâmicas sociais nas práticas democráticas em prol da liberdade. Remeteu também a discussão sobre as políticas sociais com características neoliberais, já que as mesmas são voltadas para um grupo específico, o que nega o princípio da igualdade de todos perante o Estado e a lei ao implementar políticas afirmativas. O argumento neoliberal é que as políticas públicas ou sociais podem ser desiguais desde que o foco seja a minimização das desigualdades existentes. O maior perigo relacionado às políticas afirmativas é o Estado

adotar políticas mais diferencialistas na tentativa de reforçar identidades do que distributivas no sentido de combater as desigualdades sociais.

No caso específico das políticas públicas de esporte e lazer no Brasil implementadas pelo Ministério do Esporte são perceptíveis ações afirmativas direcionas ao um determinado público na tentativa de erradicação das desigualdades sociais e que se caracterizam como políticas sociais, como é o caso do Programa Esporte e Lazer da Cidade (PELC),18 que visa a garantia do direito social ao esporte e ao lazer a todos os cidadãos.

O PELC é caracterizado como uma política com foco na redistribuição e o Ministério do Esporte ainda é incipiente em políticas voltadas para o reconhecimento, com exceção dos Jogos dos Povos Indígenas, encontro esportivo cultural, que tem como objetivo promover o esporte físico-educativo como identidade das culturas, promoção da cidadania e aos valores. Vale destacar ainda que o reconhecimento remete ao sentimento de pertencimento aliada ao direito de acesso a espaços e equipamentos de esporte e lazer, assim os indivíduos necessitam participarem dos processos de decisões políticas para reforçarem o seu pertencimento.

Para finalizar o primeiro capítulo é de fundamental importância destacar que as políticas públicas de esporte e lazer precisam ser pensadas para atender tanto a redistribuição quanto o reconhecimento. As questões de economia e cultura são interligadas e devem ser pensadas no campo da gestão pública a partir de uma visão holística e intersetorial, que articule os diferentes agentes sociais para lidar com as questões de igualdade econômica e cultural. As ações políticas põem em questão os critérios para obtenção de uma sociedade justa, que contemple todos os direitos de um Estado democrático.

As questões apontadas acima estão diretamente relacionadas com a concepção de Estado, bem como com os níveis de participação da sociedade civil. Na próxima seção destacaremos a gestão pública, com destaque para os novos arranjos institucionais que são interdependentes do modelo de Estado adotado.

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18 O Pelc foi criado no ano de 2003 e teve como problema gerador a desigualdade de acesso ao esporte e ao

lazer. O programa é uma ação integrada entre o Ministério do Esporte e Ministério da Justiça com diversos outros setores e tem como objetivo democratizar e universalizar o acesso à prática do esporte recreativo e de lazer, reconhecer os dois campos como direitos sociais e viabilizar a participação e formação permanente. No capítulo 3 da presente dissertação será aprofundada a discussão sobre o programa.

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OS

“PALAVRÕES”

INTERSETORIALIDADE,