• Nenhum resultado encontrado

Investigação empírica

CAPÍTULO 4 – DA PROBLEMÁTICA À METODOLOGIA

1. Problemática e objectivos do estudo

A saúde humana não pode ser dissociada do ser humano, o qual forma um complexo sistema com o meio ambiental e social com o qual as interacções são constantes e bidireccionais formando uma teia de complexidade que envolve a pessoa no seu nicho ecológico. A intervenção em saúde deve, pois, considerar os indivíduos inseridos nesse contexto cultural e social para que os significados se encontrem e orientem a satisfação das necessidades em saúde e o aumento da consciencialização e capacitação pessoal para a manutenção e melhoria da saúde.

Neste sentido, os profissionais de saúde têm responsabilidade na saúde dos indivíduos e das comunidades pelo que devem considerar a violência doméstica nas práticas clínicas pois, é considerada pela Organização Mundial de Saúde como um problema de saúde pública.

A dinâmica da violência conjugal provoca em muitas mulheres medo, vergonha e diminuição da auto-estima que lhes dificultam a iniciativa para abordarem essa experiência e por isso, vão tolerando ao longo de vários anos uma situação relacional que lhes vai provocando nefastas repercussões ao nível da saúde física e mental.

A escolha da problemática que pretendemos investigar foi ancorada no interesse pela influência do género na saúde e na área da comunicação em saúde, já que um percurso profissional como enfermeira na área da prestação de cuidados diferenciados e desde alguns anos na área da docência de enfermagem foi revelando a importância da comunicação como importante componente da prestação de cuidados às pessoas, famílias e comunidade. Assim, estes aspectos têm vindo a orientar o percurso académico desde o Mestrado em Comunicação em Saúde, no âmbito do qual realizámos um estudo baseado em histórias de vida e intitulado “Violência conjugal contra a mulher. Histórias vividas e narradas no feminino” (Calvinho, 2007).

O trabalho realizado permitiu-nos identificar que estas mulheres percepcionavam o impacto negativo da violência conjugal sobre a sua saúde mas, paradoxalmente, não

reconheciam as instituições e os profissionais de saúde como um recurso na situação de maus-tratos. O estudo revelou-nos ainda dificuldades destas mulheres no contacto com estes mesmos profissionais a quem recorriam para tratar do corpo (Calvinho,2007).

Apresentamos alguns resultados do nosso estudo, directamente relacionados com as repercussões da violência na perspectiva das mulheres e com a sua experiência com os profissionais de saúde, pois, foram estas constatações que nos orientaram para o desenvolvimento da investigação que sustenta esta tese.

A dinâmica da violência conjugal das dez mulheres estudadas teve uma trajectória contínua, com violência de tipo combinado e que se agravou em frequência e intensidade ao longo do tempo. Desta situação resultaram repercussões em diversas dimensões da saúde:

- Na integridade física (equimoses/hematomas/contusões; feridas corto-contusas; fracturas ósseas; dentes partidos; queimaduras);

- Na saúde psicossomática (alterações do sono; queixas álgicas; perda de desejo sexual; desmaios);

- Na saúde biofísica (risco obstétrico/aborto; risco de infecções sexualmente transmissíveis (IST); hipertensão; episódios de agravamento de patologia crónica);

- Na saúde mental (estado de ansiedade /depressivo; ideação ou tentativa de suicídio; depressões medicadas; stress pós-traumático; diminuição do auto-conceito e da auto- estima);

- Do bem-estar emocional (revolta, medo, sofrimento/ infelicidade).

Além das repercussões ao nível da saúde, houve ainda repercussões negativas também a outros níveis, nomeadamente: laboral; no desempenho parental; nas relações entre subsistemas familiares; no desenvolvimento afectivo dos filhos e no desempenho escolar dos filhos.

Apesar das constatações do impacto da situação sobre a saúde e no sistema familiar as mulheres evidenciaram dificuldades para solicitar o apoio dos profissionais de saúde, por vergonha e pelo comportamento controlador do agressor. Por isso, junto dos profissionais de saúde tinham atitudes de evitamento e de ocultação da situação mas

alegaram também falta de à-vontade com os profissionais de saúde para abordar o problema.

Das suas percepções sobre os profissionais de saúde evidenciaram-se as atitudes de desvalorização da situação de violência conjugal e a censura à mulher por ser agredida, com intervenções centradas no modelo biomédico. O encaminhamento para as casas- abrigo; o encorajamento e o encaminhamento legal foram intervenções de profissionais de saúde sobretudo nas situações graves de espancamento violento e de tentativa de suicídio. A preponderância do modelo biomédico parece continuar a orientar as práticas clínicas, mantendo uma intervenção assente na cisão corpo-mente e que não contextualiza o indivíduo no seio de um ambiente cultural e social próprio que contribui com factores protectores ou nefastos para a saúde (Calvinho, 2007).

Sensibilizadas por estes dados pretendemos dar continuidade ao estudo, ao nível do Doutoramento, centrando o foco de atenção nos profissionais de saúde que pela sua função social interagem com as mulheres vítimas de violência conjugal, com o intuito de revelar evidências científicas que contribuam para a formação de profissionais de saúde e que induzam mudanças e evolução das práticas clínicas.

A intervenção em saúde e, concretamente quando o problema é a violência conjugal, seja qual for o nível da prestação de cuidados, requer conhecimento do fenómeno e competências comunicacionais dos profissionais, para que seja estabelecida uma relação de confiança e empatia favorável à resolução do problema real, geradora de segurança e potenciadora de comportamentos favoráveis à saúde das pessoas e famílias e que as capacite para interromper o ciclo de violência.

Associadas a estas competências individuais são ainda necessárias condições nas organizações de saúde e uma actuação em rede que permita aos profissionais um conhecimento adequado sobre os recursos e procedimentos de apoio e encaminhamento das vítimas de violência conjugal.

A OMS (2002) recomenda a integração de módulos sobre a violência familiar, numa perspectiva de problema de saúde, nos currículos escolares dos cursos de Medicina e de Enfermagem.

A necessidade de formação dos profissionais de saúde para o atendimento a mulheres vítimas de violência conjugal tem sido evidenciada por diversos investigadores, para

que tenham conhecimento sobre o fenómeno, desenvolvam capacidades e atitudes adequadas ao rastreio eficaz e diagnóstico precoce e estejam capacitados para a intervenção com técnicas de aconselhamento(Davidson et al., 2001; Fernández Alonso

et al., 2003; Majdalani, 2005; Humphrey et al., 2011)

Um estudo realizado por Sugg & Inui (1992) na universidade de Seattle, com médicos de família, revelou as dificuldades dos mesmos na abordagem da violência na família:

- Falta de tempo para o fazer mas também o medo de ofender as clientes com a pergunta, a falta de preparação para abordar o tema (50%);

- Temor de não ter capacidade para controlar o comportamento da vítima (42%);

- Identificação com os clientes (39%);

- Medo do confronto com o imprevisto e possível descontrolo da situação (20%);

- Alguns questionavam a credibilidade da mulher (Fernández Alonso et al., 2003).

Lettiere, Nakano & Rodrigues (2008) desenvolveram um estudo com médicos e enfermeiros, no Brasil, que evidenciou que os mesmos, embora considerem que a violência contra a mulher constitui um problema social sério, não evidenciaram conhecimento suficiente para intervirem e saberem o que deveriam fazer, reconhecendo a falta de formação como uma das causas para uma prática profissional centrada num paradigma biomédico e fragmentada no atendimento da mulher. Revelaram ainda outros factores causais como a falta de equipas multidisciplinares e de estruturas de suporte e protecção, onde estejam incluídos, por exemplo, psicólogos.

As mesmas autoras apontam que um outro estudo realizado por Rodríguez-Bolaños (2005) com profissionais de saúde da Nicarágua, também evidenciou a falta de formação sobre o tema e ainda a falta de privacidade no atendimento; o receio do seu envolvimento nos aspectos legais; as preocupações com a própria segurança e o desconhecimento dos recursos de apoio à vítima na comunidade, como obstáculos à intervenção.

Os dados obtidos nestes estudos reforçam a necessidade de formação sobre violência familiar como problema de saúde e a desconstrução de estereótipos e preconceitos

culturais sobre a violência de género, inibidores para os profissionais da actuação necessária.

Silva (1995) e Ramos (2004) referem que a atitude profissional dos vários actores sociais como médicos, juristas, advogados, policiais e assistentes sociais se caracteriza pelo laxismo no atendimento, pela fragmentação da intervenção e pelo contributo para a perpetuação e banalização de um fenómeno social.

Ramos (2004) afirma que os estereótipos e os preconceitos têm o objectivo de controlar o ambiente de forma esquemática, simplificada e rígida, pelo que constituem um obstáculo à comunicação, dificultando a transmissão de mensagens e a sua correcta descodificação, inibem a percepção da realidade dos acontecimentos e influenciam negativamente as percepções.

Nesse sentido o auto-conhecimento dos profissionais, a compreensão dos contextos culturais e sociais, o desenvolvimento da capacidade de auto-reflexão e de descentração de si, são aspectos que a mesma autora aponta como necessários na formação dos profissionais de saúde.

“A comunicação é uma componente importante dos cuidados de saúde e pode constituir um bom avaliador da qualidade dos cuidados de saúde” (Ramos, 2004, p. 297-298).

Esta autora salienta que a frequente insatisfação dos utentes de cuidados de saúde está relacionada com as posturas comunicacionais dos técnicos, as quais devem ser reflectidas e alteradas para uma capacidade comunicacional interactiva, capaz de colocar em comum as significações da comunicação verbal e não-verbal e de permitirem um relacionamento empático e caloroso.

Associada à formação específica dos profissionais, é necessário salientar a importância dos decisores políticos e dos gestores dos serviços de saúde considerarem as condições dos serviços e empreenderem mudanças favorecedoras de uma actuação junto aos clientes mais adequada nas respostas ao nível da prevenção, do tratamento e da reabilitação (WHO, 2002; Fernández Alonso et al., 2003).

Diversos estudos e a Organização Mundial da Saúde (OMS) têm revelado e chamado a atenção para a violência conjugal contra a mulher como fenómeno complexo que tem repercussões sobre a saúde da mulher e condiciona o seu papel na família e na

sociedade. Urgem respostas adequadas dos profissionais e das equipas de saúde assentes num trabalho interdisciplinar, pois são estes profissionais os que estão na primeira linha de recurso e em sistemática interacção com as mulheres e as famílias. Esta equipa deve trabalhar em rede, de forma articulada e em verdadeira parceria multissectorial para que as mulheres sujeitas a violência possam dispor de intervenções e apoio eliminando a re- vitimação a que tantas vezes são sujeitas no percurso institucional que pretende ajudá- las.

Deste contexto de análise e de reflexão emergiu a pergunta de partida para este estudo:

Quais as implicações da representação social de violência conjugal contra a mulher, nas práticas dos profissionais da saúde?

Foi esta a problemática que nos orientou para delimitar as intenções do estudo em objectivos gerais e específicos que de seguida apresentamos.

Objectivos gerais do estudo:

- Conhecer as representações sociais dos profissionais de saúde, que contactam com mulheres vítimas de violência conjugal, sobre a violência conjugal contra a mulher;

- Analisar a articulação entre os diversos profissionais de saúde que atendem mulheres vítimas de violência conjugal.

Objectivos específicos:

- Identificar as representações sociais dos profissionais de saúde acerca da violência conjugal;

- Identificar a actuação dos profissionais de saúde na prevenção, diagnóstico e encaminhamento das mulheres vítimas de violência conjugal;

- Identificar os factores dificultadores da integração da violência conjugal nas práticas dos profissionais de saúde;

- Identificar factores facilitadores da integração da violência conjugal nas práticas clínicas dos profissionais de saúde;

- Identificar necessidades de formação dos profissionais de saúde, no âmbito da violência conjugal;

- Identificar se os profissionais de saúde se consideram um recurso para as mulheres vítimas de violência conjugal;

- Identificar o que os profissionais de saúde pensam sobre as repercussões da violência conjugal na saúde das mulheres;

- Identificar os conhecimentos dos profissionais de saúde sobre os recursos disponíveis no âmbito da violência conjugal contra a mulher.