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4 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E MÉTODOS DE ANÁLISE

4.2 PROCEDIMENTOS OPERACIONAIS DA ANÁLISE TECNOFUNCIONAL

No que concerne à reconstituição das cadeias operatórias, analisar-se-ão os seguintes processos: aprovisionamento de matéria-prima, obtenção, confecção e abandono de suportes.

Na primeira fase da cadeia operatória, o aprovisionamento de matéria-prima, realizar- se-á uma análise centrada, principalmente, nos tipos de rocha ou mineral utilizados na produção dos objetos (LUCAS, 2014, p. 32). Os critérios a serem considerados são: a granulometria, a textura e a coloração. O objetivo principal de tal análise será o de reconhecer a estratégia de aprovisionamento dos materiais submetidos ao lascamento, através das preferências técnicas, representadas, em sua maioria, pela priorização de determinada matéria-prima, ou mesmo pelos tipos de volumes rochosos coletados. Contudo, para definir melhor esta estratégia de captação de materiais, far-se-á um pequeno reconhecimento de possíveis locais de exploração através de prospecção assistemática e de mapas temáticos da geografia e geologia, que permitirão apontar locais potenciais à oferta de matéria-prima, como os terraços fluviais, os colúvios, as formas residuais, as calhas de rios etc.

Na fase de obtenção de um suporte, a análise enfocará o momento em que são produzidos os suportes ou superfícies para os instrumentos. O suporte é, por sua vez, entendido como uma estrutura volumétrica com uma forma definida por propriedades técnicas

particulares, relacionadas a objetivos funcionais que envolvem morfologia, dimensões e características das superfícies (LUCAS, 2014, p. 32; LOURDEAU, 2010).

Estes suportes devem ser confeccionados em processos de debitagem, por meio da redução da massa útil dos núcleos, pela retirada de lascas que constituem os objetivos do lascamento, enquanto o núcleo é considerado um resíduo (VIANA et al., 2014, p. 145). Contudo, os mesmos podem ser também obtidos por meio da façonagem, ou de retiradas sucessivas, esculpindo ou moldando uma massa rochosa a partir de retirada de lascas até atingir o volume desejado ou peça façonada, o qual corresponde ao objetivo primordial do lascamento, enquanto as lascas são descartadas (LUCAS, 2014, p. 32; VIANA et al., 2014, p. 145-146). Todavia, ainda há uma terceira possibilidade para a obtenção dos suportes, que é o selecionamento de um bloco natural (LUCAS, 2014, p. 32) cujas características próprias sejam convergentes com as particularidades técnicas necessárias que permitam o artesão avançar diretamente à fase de confecção.

Na fase de confecção dos suportes será analisada a sua transformação, ou o momento em que as características necessárias para a sua funcionalização lhes são conferidas pelo trabalho do artesão (BOEDA, 1997). Essa fase de confecção que se segue após a debitagem ou o façonagem denomina-se retoques, e corresponde a uma série de retiradas com o objetivo de instalar um gume específico ou uma parte preensiva no instrumento (VIANA et al., 2014, p. 146).

Na execução de cada etapa de obtenção de suporte e de confecção, o homem aplica uma sucessão de gestos e coloca seu conhecimento técnico em ação (BOEDA, 1991). Cada conhecimento ou pensamento técnico é constituído por um esquema operatório, uma ideia preliminar, que agrupa os conceitos necessários para tornar a imagem pensada em objeto concreto (BOEDA, 1991; INIZAN et al., 1995). Por esquema operatório, entendem-se as soluções técnicas, ou diferentes conceitos e habilidades assimilados pelas sociedades humanas, representados por conceito, método, uma ou várias técnicas (INIZAN et al., 1995, p. 32). O conceito é entendido como uma estrutura mental que vai orientar toda a operação de lascamento, organizada de forma hierárquica em um conjunto de propriedades técnicas que será aplicado para obter um volume definido (BOEDA, 1997).

O método é compreendido como o agenciamento das sequências de gestos utilizados e obrigatoriamente precede um esquema conceitual conduzindo à obtenção de um objeto

específico (VIANA et al., 2014, p. 145; LUCAS, 2014, p. 36). Os métodos são ainda carregados de valor cultural, pois são apreendidos e transmitidos pelo grupo (INIZAN et al., 1995).

A técnica consiste nas particularidades de aplicação do método ensejadas por uma capacidade psicomotora e racionalizada de organização e sistematização de gestos, sendo representada pelo meio físico utilizado para o fracionamento dos volumes rochosos (VIANA et

al., 2014, p. 145). A técnica pode decompor-se ainda em três aspectos básicos: a) modo de

aplicação da força, se unipolar/percussão direta ou bipolar por “distenção” de fraturas entre dois polos, ou, mesmo, por pressão; b) tipo de instrumento de aplicação da força, se se trata de um percutor de orgânico ou rochoso/mineralógico; c) trajetória da aplicação da força, se retilíneo ou tangencial (LUCAS, 2014, p. 36). Contudo, nas técnicas de percussão direta, o gesto pode ser ainda diferenciado quando há diferentes locais de impactos, como, por exemplo, nos bordos da peça (percussão marginal) ou no interior dos planos de percussão (percussão interna).

Assim, para que haja o reconhecimento da técnica, observar-se-ão os seguintes critérios: o tipo de talão (liso, cortical, puntiforme, diedro, etc.) e sua espessura; e o tipo de percutor utilizado: se orgânico ou rochoso/mineralógico, cuja distinção se faz possível através da presença de lábio na linha anterior do talão; as características do bulbo e a morfologia das lascas (LUCAS, 2014, p. 37-38).

A fase de confecção será ainda complementada pela análise do esquema de utilização dos instrumentos, ou o momento no qual os mesmos são postos em funcionamento. Para tanto, considera-se cada instrumento como uma unidade analítica ou um pequeno sistema de partes inter-relacionadas de vetores de funcionalidade e que envolvem a sua própria estrutura e partes ativas. Assim, o instrumento é decomposto em três partes fundamentais, as quais se designam Unidades Tecnofuncionais (UTF), conjunto de elementos e/ou características técnicas que coexistem numa sinergia de efeitos (BOEDA, 1997, p. 31).

As três Unidades Tecnofuncionais são as partes preensivas (UTFp), receptivas (UTFr) e transformativas (UTFt) dos instrumentos (LUCAS, 2014, p. 35). A UTF preensiva corresponde à parte do instrumento que permite colocá-lo em ação, a qual se reconhece a partir da identificação de uma área reservada ao encabamento ou à conexão da mão do utilizador, de modo a viabilizar a sua utilização.

necessária para viabilizar o seu funcionamento, ou para submetê-lo à execução das funções que lhe foram designadas quando do seu projeto conceitual e produção. Já a UTF transformativa corresponde à parte ativa do instrumento, que entra em contato com a matéria trabalhada. A UTF transformativa é, portanto, o subsistema mais importante do instrumento cuja identificação é imprescindível, diferentemente das UTFp e UTFr que poderão se confundir dependendo das características técnicas dadas pelos artesãos aos instrumentos, quando da sua produção.

Para a análise desses potenciais funcionais, parte-se do pressuposto de que os instrumentos situar-se-iam ao final das cadeias operatórias, ou seja, representando os objetivos reais dos artesãos, como pontos de interseção entre as intenções dos artesãos e a função que lhes foram atribuídas (SORIANO, 2000) (LOURDEAU, 2006). Assim, o instrumento é definido como um artefato em ação, associado a um esquema de utilização próprio e inerente ao objeto e a seu utilizador, uma vez que em um segundo momento será posto em ação, graças à energia proporcionada pela mão (LOURDEAU, 2006, p. 695).

Assim, para que se possam evocar os potenciais funcionais dos instrumentos, analisar- se-á a superfície de contato do instrumento com o material trabalhado (UTFt), observando-se as particularidades locacionais – se proximal, mesial, distal, lateral esquerda ou direita etc.; a morfologia do plano de penetração e plano de contato – se plano, côncavo e convexo; os ângulos de cada plano com relação ao plano de base e a morfologia; e a delineação do gume.

Em seguida, analisar-se-á o contato da mão, ou qualquer outra parte do corpo do utilizador com o instrumento (UTFp) e a porção de conexão e transmissão de energia (UTFr) (que podem ser ou não independentes). Assim, informações sobre esses potenciais funcionais poderão ser alcançadas com base nos seguintes critérios: delineação tridimensional do fio cortante; ângulos dos planos de bico e de corte; características das superfícies; extensão e esquemas de confecção etc. (LOURDEAU, 2006, p. 695).

5 CONTEXTUALIZAÇÃO ARQUEOLÓGICA DE ALGUNS SÍTIOS DA PLANÍCIE