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4. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.2. Processamento de CVS e de outros fraseologismos

Como aponta Wittenberg “As línguas são caracterizadas por fortes mapeamentos entre a estrutura de uma sentença e o seus significados”22 (2016, p. 69). Esse tipo de mapeamento canônico nos permite reconhecer uma série de padrões, como os exemplos encontrados no nosso corpus que foram classificados como Construções de Movimento Causado, Transitiva, Bitransitiva e Resultativa. As CVS, por sua vez, violam a uniformidade de um mapeamento canônico (WITTENBERG, 2016), já que por um lado, apresentam uma estrutura sintática de

superfície semelhante à de outras construções argumentais, mas por outro, sofrem influência da estrutura argumental do seu componente nominal. Os argumentos do verbo e do componente nominal são sobrepostos, num processo de compartilhamento de argumentos.

O argumento de que construções com verbo pleno e CVS não diferem no que diz respeito à sua estrutura sintática de superfície, além de ser comprovado por testes cognitivos como aponta Wittenberg (2016) e Wittenberg e Piñango (2011), fornece uma vantagem que poderia estar relacionada à economia semântica. Assim, não seria necessário processar individualmente uma nova forma combinada a um novo significado para cada CVS formada por substantivo deverbal. As CVS e construções com verbo pleno seriam armazenadas sob a mesma forma sintática, divergindo somente quanto à sua estrutura argumental semântica. Essa economia semântica estaria relacionada à forma como construções são organizadas no Léxico, já que, como apontam uma série de autores, entre eles Goldberg (1995) Rostila (2011) e Wittenberg (2016), é pouco provável que os falantes possuam listas infindáveis de construções distintas armazenadas no Léxico mental.

O desencontro no mapeamento sintático e semântico das CVS do corpus que seguem a forma da Construção Transitiva pode ser considerado não tão aparente, pois há um alinhamento dos argumentos do verbo-suporte e do verbo base, do qual o componente nominal deriva, como vimos no caso da CVS einen Antrag stellen. O verbo stellen, quando não é verbo-suporte, pode ocorrer com dois argumentos, um agente e um paciente, da mesma forma que o verbo beantragen, do qual o componente nominal deriva. No entanto, quando focamos nessas CVS como um todo, verificamos que os argumentos pacientes de CVS que seguem a estrutura das Transitivas não preenchem a lacuna da construção como um típico argumento tema, mas fazem parte do predicado da CVS, não existindo sem o verbo-suporte que a integra.

As CVS que seguem a estrutura de superfície da Construção de Movimento Causado, por sua vez, apresentam uma discrepância mais evidente: nessas construções há duas estruturas argumentais distintas ativas ao mesmo tempo: o componente nominal contribui com um argumento agente e um argumento paciente que participa da predicação conjunta com os argumentos causador, tema e alvo do verbo stellen. O evento expresso pela CVS como um todo, é, no entanto, processado como um evento transitivo, graças à estrutura argumental fornecida pelo complemento nominal.

Esse tipo de sobreposição de argumentos é facilmente identificado em CVS como unter Beweis stellen, unter Beobachtung stellen etc. O mesmo não é verificado em outras CVS. Na construção in Rechnung stellen, por exemplo, não há uma correspondência semântica entre o verbo rechnen e o substantivo Rechnung como parte integrante da CVS. Embora haja

correspondência morofológica entre verbo e substantivo, o verbo anrechnen é o mais adequado para recuperar o sentido da CVS. O mesmo acontece com a CVS in Frage stellen, que corresponde ao sentido expresso pelo verbo pleno hinterfragen. No caso da CVS zur Verfügung stellen, O sentido expresso pela CVS corresponde à expressão formada por adjetivo “verfügbar machen”. Em in Abrede stellen não é sequer possível encontrar correspondência com um verbo simples existente. Essa CVS é altamente fixa e o seu sentido é aprendido como um todo.

As CVS que seguem a forma das Construções de Movimento Causado não são homogêneas, o que permite questionar até que ponto a análise da estrutura argumental dos seus constituintes pode contribuir para a apreensão do seu sentido. Seguindo a visão de Athayde (2001), parece ser inevitável não adotar uma perspectiva baseada em um continuum no que diz respeito aos diferentes níveis de estabilidade lexical dessas CVS. Por um lado, teríamos construções mais fixas como in Abrede stellen. No outro extremo teríamos CVS como unter Beobachtung stellen, em que o substantivo mantém propriedades referenciais, e cujo verbo- suporte mantém traços semânticos que aproximam essa construção de construções formadas por verbo pleno. Entre os dois extremos, haveria gradações no esvaziamento semântico sofridos tanto pelo verbo quanto pelo componente nominal.

O processo de predicação conjunta está relacionado à estrutura argumental interna das CVS, o que não impede que essas estruturas possam integrar outras construções mais esquemáticas, que por sua vez, contribuem com uma estrutura argumental externa adicional. Assim, como já citado, uma CVS como zur Verfügung stellen, embora siga a mesma forma da Construção de Movimento Causado, pode ocorrer como parte integrante de uma Construção Bitransitiva, com a presença de um argumento recipiente, para quem a ação denotada pela CVS é direcionada.

A abordagem teórica proposta por Wittenberg e Piñango (2011) e Wittenberg (2016) permite uma análise plausível de estruturas complexas como as CVS deverbais, que são reforçadas a partir de testes cognitivos. Entretanto, essa forma de análise não é aplicável a outras construções. Como visto durante a análise, a hipótese da predicação conjunta para o processamento de CVS se restringe aos casos em que essas construções são formadas por um substantivo deverbal. Essa limitação não desqualifica a análise, pelo contrário, ela possibilita a formulação de uma característica definitória adicional para as CVS, a partir da sua forma de processamento. Em outras palavras, CVS deverbais poderiam ser caracterizadas como construções que são processadas levando-se em consideração a sobreposição dos argumentos do verbo e do componente nominal.

Como exemplos de construções que não puderam ser analisadas a partir da estrutura argumental do componente nominal podemos citar: die Weichen stellen, jemandem etwas vor Augen stellen, jemanden vor Gericht stellen, etwas an die/zur/ auf die Seite stellen, etwas auf den Kopf stellen e etwas auf die Beine stellen.

A construção die Weichen stellen pode ser considerada uma colocação altamente fixa, pois os seus termos ocorrem somente nessa combinação para expressar a ideia de mudança de posição do aparelho de mudança de via do trem. Além dessa leitura literal, die Weichen stellen pode assumir uma leitura figurada em contextos como o presente no corpus, em que expressa uma mudança de rumos metafórica.

Embora não tenha uma leitura prioritariamente literal, a construção zur Seite stellen pode ser entendida “como deixar de lado”. Mesmo nesse caso, a interpretação da construção deve ser entendida a partir da sua função em contextos culinários, que é de “reservar”. Essa construção, assim como suas variantes an die Seite stellen e auf die Seite stellen, possui uma leitura metafórica de “apoiar”.

As construções jemandem etwas vor Augen stellen, etwas zur Schau stellen; etwas auf den Kopf stellen e etwas auf die Beine stellen apresentam apenas uma realização, como expressão metafórica. Como aponta Tagnin (2013, p. 105), essas expressões se caracterizam pelo fato de ser possível reconhecer a relação entre o seu significado e a imagem à que elas se referem. Assim, podemos concluir que o significado denotado por essas construções pode ser considerado um evento metafórico de stellen (colocar) que, nesses casos, funciona como verbo pleno e expressa um sentido convencionalizado.

As imagens às quais as expressões metafóricas aludem podem ser facilmente reconhecidas. Um grupo de expressões faz referência à imagem de um objeto que é colocado em relação ao corpo, como em jemandem etwas vor Augen stellen e etwas zur/an die/auf die Seite stellen. As expressões etwas zur Schau stellen e jemanden vor Gericht stellen, embora não contenham membros do corpo em sua forma, também fazem, de certa forma, referência a algo que é colocado em relação ao corpo, já que algo que é exposto é colocado à frente daqueles que o observam, e a pessoa que é julgada é colocada à frente de um tribunal que, metonimicamente, pode ser entendido como as pessoas que participam da ação de julgar (juiz, júri). Por fim, nas expressões auf den Kopf stellen e auf die Beine stellen, é o próprio corpo que é colocado em uma nova posição.

Todas essas construções devem ser entendidas como estruturas que são armazenadas como um todo e, por tanto, podem ser consideradas instâncias mais lexicalizadas de outras construções mais esquemáticas existentes na língua. Segundo Goldberg (1995, p.81), esse tipo

de relação está intimamente ligado à cognição humana, já que uma construção mais produtiva e abstrata como a Construção de Movimento Causado seria mais fácil de ser aprendida e, justamente por ser uma construção produtiva, ela possibilitaria a existência de instâncias convencionalizadas (GOLDBERG, 1995, p.81).

Embora o objetivo da presente pesquisa não seja determinar uma definição para o fenômeno CVS, a análise dessas construções a partir da sua estrutura argumental nos permite identificar algumas características que as diferem de outros fraseologismos. Como citado nos capítulos dedicados à exposição do referencial teórico e da metodologia, optamos por adotar em um primeiro momento a definição de CVS proposta por Kamber (2008) para a catalogação dos dados. Na lista das CVS mais produtivas para o verbo-suporte stellen apresentada pelo autor, constam as construções etwas zur/an die/auf die Seite stellen, etwas zur Schau stellen e etwas auf den Kopf stellen, que consideramos no presente capítulo, como expressões metafóricas.

Ao nosso ver, considerar essas construções como expressões metafóricas se justifica, justamente, pelo papel desempenhado pelo verbo. Enquanto nas CVS o verbo stellen sofre esvaziamento semântico e o sentido global da construção sofre maior influência do significado e da estrutura argumental do componente nominal que a compõe, nas expressões metafóricas, o verbo se assemelha ao verbo pleno, contribuindo com significado e com a sua estrutura argumental para o sentido global da construção, que deve ser interpretada metaforicamente.

Essas diferenças entre CVS e expressões metafóricas possibilitam acrescentar ao contínuo proposto por Welker (2003) citado no capítulo 1. “Referencial teórico”, uma distinção relacionada à forma como o significado dos fraseologismos é processado. Em um dos extremos estariam as CVS deverbais, em que se verifica o processo de predicação conjunta, logo após, as colocações altamente fixas como die Weichen stellen, que possuem tanto uma leitura literal, quanto uma leitura figurada e, no outro extremo, as expressões metafóricas, como, por exemplo, etwas auf den Kopf stellen, cujo sentido é idiomático:

CVS deverbais colocações expressões metafóricas Figura 11Contínuo de lexicalização progressiva das CVS e outros fraseologismos

Como exposto no capítulo dedicado ao referencial teórico, Athayde (2001) também aponta distinções na composição do sentido das CVS deverbais em relação a outros fraseologismos, que a autora chama de fraseologias verbais. A principal diferença entre CVS deverbais e as fraseologias verbais estaria na formação do significado: enquanto o sentido de CVS seria composicional, o sentido das fraseologias verbais seria estabelecido de forma irregular e não composicional.

Diferentemente da visão da autora, a perspectiva teórica adotada na presente pesquisa, assume que o sentido de CVS não é considerado fruto de um processo composicional, mas da sobreposição de argumentos durante o processo de compartilhamento dos argumentos tanto do verbo-suporte, quanto do componente nominal. Tal processo não é composicional, pois não diz respeito somente à soma dos significados do verbo-suporte e do complemento nominal. Como salientado durante a análise, o sentido das CVS é resultado de uma reinterpretação das estruturas argumentais do verbo-suporte e do complemento nominal, que não são compatíveis entre si. Graças a esse processo seria possível processar uma CVS que segue a estrutura, por exemplo, da Construção de Movimento Causado, como em unter Beweis stellen, como um evento transitivo (beweisen). Nesse sentido, o nosso trabalho se difere do de Athayde (2001), por mostrarmos justamente quais seriam as relações que se estabelecem entre os constituintes, a partir da análise da sua estrutura argumental.