4.3 UNIDADE TEMÁTICA 2
4.3.1 Processo de ensino-aprendizagem na Preceptoria
Essa unidade temática emergiu dos aspectos apontados pelos participantes da
pesquisa, de como se configura o processo de ensino-aprendizagem na Preceptoria, nos
cenários de prática SUS. Os estágios, pelos quais os preceptores fazem referência
constituem-se principalmente na relação aluno-preceptor, na Rede de AB.
Com relação aos estágios mencionados neste estudo, compreendendo os cursos de
enfermagem, medicina, nutrição e serviço social, há características heterogêneas citadas
pelos participantes entre as modalidades de estágio, em especial quanto à carga horária e o
dimensionamento de alunos.
“Então tinha, 4 ou 5 passaram comigo, no máximo, no mínimo que passaram foram 4,
acho, ou 3. E aí, a gente se dividia em duas salas, dois [alunos] atendiam em uma e dois
[alunos] em outra [...].” (P18)
“[...] eles [alunos] fazem quatro semanais [...].” (P14)
“Então eu tinha ... eu tava com duas acadêmicas [...].” (P8)
No Brasil, as DCN consistem em documentos legais, cujo atributo é fornecer
orientações para a elaboração dos currículos que devem ser necessariamente adotadas por
todas as instituições de ensino superior (BRASIL, 2001a). As falas dos participantes denotam
a versatilidade que as IES dispõem quanto à elaboração de seus currículos para os cursos de
graduação, incorporando assim especificidades de cada núcleo do saber.
Quanto à carga horária dos estágios, o referencial vigente esclarece que não deverá
exceder a 20% da carga horária total do curso (BRASIL, 2007a; BRASIL, 2009). A partir da
publicação em 2014 das DCN para o curso de Medicina, a recomendação diverge das demais,
pois faz referência ao percentual de carga horária de estágio específico e obrigatório no SUS,
na AB e em serviços de Urgência e Emergência, tal como citado abaixo:
§ 2º A carga horária mínima do estágio curricular será de 35% (trinta e cinco por cento) da carga horária total do Curso de Graduação em Medicina.
§ 3º O mínimo de 30% (trinta por cento) da carga horária prevista para o internato médico da Graduação em Medicina será desenvolvido na Atenção Básica e em Serviço de Urgência e Emergência do SUS, respeitando-se o mínimo de dois anos deste internato (BRASIL, 2014a, p.11).
Dentre os objetivos das novas DCN está a ampliação da oferta de cursos de medicina
no País, bem como o acréscimo no número de profissionais formados, de modo a atender as
necessidades emergentes de saúde no País, no campo do SUS. Tal reformulação faz parte da
Lei 12.871/2013
24, descrito por meio do:
Art. 1º - É instituído o Programa Mais Médicos, com a finalidade de formar recursos humanos na área médica para o Sistema Único de Saúde (SUS) e com os seguintes objetivos: [...] III - aprimorar a formação médica no País e proporcionar maior experiência no campo de prática médica durante o processo de formação (BRASIL, 2013, p.1).
Nesse sentido, independentemente dos programas de estágio apresentarem
características diversas, o principal objetivo permanece o mesmo, ou seja, o de propiciar aos
estudantes a vivência e prática do que lhes foi ensinado teoricamente em sala de aula
(ZABALZA, 2014).
24
Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013 - Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências.
No contexto da pesquisa, diante dos dados gerados pelas entrevistas, observa-se que o
profissional de saúde preceptor que recebe e acolhe esse acadêmico pertence ao mesmo
núcleo profissional do curso onde o aluno está inserido. Apenas, 11,1% (n=2) dos preceptores
mencionam ter acompanhado acadêmicos de distinto curso da área da saúde em relação à sua
formação.
25“[...] acompanho também estagiário de psicologia [risos] também. Que não tem
psicólogo aqui. A gente tem quatro estagiários de psicologia que a gente também está sempre
orientando eles.” (P7)
“[...] alunos que já vieram pra campo de estágio sem um preceptor direto daquela
área de formação, daquele curso, né. [...] eles não tinham um preceptor da mesma categoria
profissional deles no local de estágio pra orientar, então eles vinham, observaram, faziam as
atividades deles, planejavam, discutiam com a equipe enfim [...].” (P12)
Na formação acadêmica, com relação aos estágios, observam-se os limites existentes
diante da tendência da formação voltada para o núcleo profissional. A formação em saúde,
segundo Miranda et al. (2015), nos modelos educacionais atuais é uniprofissional, pois as
práticas ocorrem envolvendo apenas estudantes de uma mesma profissão.
A educação interprofissional (EIP), como proposta de mudança nesse paradigma, vem
sendo discutida nos últimos trinta anos, nos Estados Unidos e Europa (BATISTA, 2012). No
Brasil, ainda que de maneira tímida, apresenta experiências que vem ao encontro a EIP, como
exemplo, cita-se: “Unifesp, campus Baixada Santista, implantou, em 2006, um currículo
integrado interprofissional abrangendo seis cursos da saúde, orientado pela educação
interprofissional para o trabalho em equipe e prática colaborativa” (CÂMARA et al., 2016,
p.10).
A prática de currículos nos moldes da EIP, “tira de cena” a formação uniprofissional,
com foco em um único núcleo do saber, em favor do trabalho interprofissional, do trabalho
em equipe, com vistas ao cuidado integral do ser humano. Nessa perspectiva é apontada pelos
preceptores da pesquisa, a relevância do trabalho em equipe.
“[...] não só assim basicamente trabalhamos em equipe tentamos assim otimizar a
melhor maneira os trabalhadores no sentido de levar adiante as demandas e os programas
desse pequeno paciente do atendimento da gestante ao pré-natal. [...] a gente sabe que só o
profissional assim, o médico ele não é capaz de dar conta ele vai, digamos assim no seu
núcleo de ação, a enfermagem tem condições de trabalhar bem melhor assim com os grupos
25 O valor apresentado refere ao acompanhamento de alunos de outros cursos de graduação em estágios para além da categoria profissional do preceptor, no decorrer do período letivo. Não foram computados os dados isoladamente dos profissionais de saúde preceptores que integraram os programas de reorientação da formação do MS, como por exemplo, o PET-Saúde.
que vai ter o coletivo. Então, acho que é importante assim, também ter essa troca entre os
núcleos de outras profissões.”(P4)
“Não, eu acho que se a gente conseguisse fazer, inclusive, cada vez mais junto, né? O
estagiário de nutrição, o professor, o preceptor de enfermagem com o de nutrição, com o
médico... quanto mais a gente conseguir agregar, porque é isso, assim... quando tu vê na
prática, tu tá trabalhando uma saúde coletiva de campo junto com todos mesmo, né? Porque
tu vai ter espaços de campo e núcleo, como a gente diz né, o núcleo é quando tu tá
desenvolvendo atividade exclusiva do enfermeiro, mas campo não, campo é grupo, é
interconsulta, é discutir caso, é avaliação da ferida, que eu preciso da nutrição olhando
junto, do serviço social muitas vezes estar ajudando em uma questão da rede social, tudo
isso, né, então se fosse uma coisa coletiva as pessoas se entenderiam mais, né? Acho que pra
gente da saúde coletiva, que já tá na prática, é mais fácil... eu sei que de repente pra que está
numa instituição de formação, que é tudo em pacotinho, né? Tudo em quadradinho, deve ser
mais difícil pensar isso, é por isso que se a instituição de ensino se organizasse, todos os
professores que fizessem que fossem responsáveis por estágios ou pela parte teórica, por
algumas disciplinas da saúde coletiva, se reuniriam a cada dois meses, discutiriam juntos
com o preceptor de prática, campo de estágio, avaliação, planejamento, tudo isso... só
qualificaria os dois serviços, né? E principalmente a formação do aluno, né? Que tá em jogo,
então...“(P16)
Cabe repensar a saúde coletiva como um campo científico, em que a
institucionalização dos saberes e organização em práticas ocorre mediante a conformação de
núcleos e de campos (CAMPOS, 2000). Entende-se que o núcleo demarcaria a identidade de
uma área de saber e de prática profissional e o campo, um espaço de limites imprecisos onde
cada disciplina e profissão buscariam em outro apoio para cumprir suas tarefas teóricas e
práticas (CAMPOS, 2000, apud CAMPOS, 2000, p.220)
26.
O achado nesse estudo é que as atividades de campo, ou seja, disciplinas que possam
abarcar diferentes cursos atuando conjuntamente nos cenários de prática ainda são
deficitárias. Sugestões para as IES são apontadas pelo preceptor, no intuito de um trabalho
colaborativo, de campo, com envolvimento entre os cursos e entre professores e preceptores.
Dos serviços da rede de APS participantes da pesquisa, há somente um relato sobre trabalho
multidisciplinar realizado na própria unidade de saúde, envolvendo alunos de diferentes
cursos.
”[...] tenho acadêmicos do curso de enfermagem, né e tem a vivência dos outros
acadêmicos dos cursos de outros cursos da saúde, né, então, como a gente faz esse trabalho
multidisciplinar, eles têm outros preceptores de acordo com cada área de atuação, mas que
fazem também essa discussão em equipe, então a gente tem esse relacionamento também com
outros acadêmicos de outros cursos né, além dos acadêmicos de enfermagem. ” (P12)
26 Campos GWS 2000. O anti-Taylor e o método Paidéia: a produção de valores de uso, a construção de
sujeitos e a democracia institucional. Tese de livre-docência. Campinas/SP, Faculdade de Ciências Médicas da
Verifica-se um movimento, uma interação entre os acadêmicos de diferentes áreas no
campo de prática, na perspectiva de impulsionar alguns processos. Concebe-se, assim, esse
exemplo como fato isolado, sendo a atuação do preceptor por núcleo profissional. Quanto às
práticas formativas, na perspectiva de inserir como parte dos currículos das universidades, há
sugestões de modelos semelhantes ao adotado pelos programas de reorientação da formação,
tais como PET-Saúde.
“No fim das contas, assim, é difícil de tu, quem não é do PET não, são muito poucos
alunos que tem contato com aquelas vivências com aquelas sabe, tentar ampliar isso e fazer
do estágio uma coisa mais parecida com o PET, entende. O estágio comum, não é sempre que
vai ter o PET, é um programa é uma coisa que vem e volta e, ás vezes, não volta nunca. ”
(P15)
Programas de reorientação da formação, iniciados desde o ano de 2005, como exemplo
o PRÓ - Saúde, surgiram com fins de fortalecer as ações ensino-serviço (envolvendo os
cursos de enfermagem, medicina e odontologia) e de aproximar a formação dos futuros
profissionais em conformidade com as reais necessidades da população.
A evolução dos Programas no País ocorreu de maneira gradual, no ano de 2010 surge
o PET-Saúde (BRASIL,2010). Para Rodrigues (2012) o PET-Saúde vem proporcionando o
exercício do trabalho interdisciplinar, fomentando ações de campo, levando os profissionais a
saírem de seus núcleos de conhecimento e a reconhecerem seus limites de ação.
No presente estudo, 43,4% (n=23) dos sujeitos informam ter participado de algum
programa de reorientação da formação. Entende-se que os editais dos programas possuam
critérios quanto à escolha dos projetos participantes e quanto ao quantitativo de bolsas a
serem disponibilizadas aos preceptores, tutores e monitores. Entretanto, por outro lado,
acredita-se como estratégia potencial que os princípios adotados pelos programas possam ser
multiplicados a outros cenários de prática, a outros preceptores, independentemente de ter
participação direta/vínculo aos programas, de modo a unificar e qualificar as atividades de
preceptoria no município.
Nessa perspectiva, recentemente foi lançado pelo governo federal o PET-Saúde
Gradua SUS (Edital 2016/2017). O município campo dessa pesquisa submeteu projeto, que
foi selecionado, com 24 bolsas aprovadas (BRASIL, 2016b).
O processo de ensino-aprendizagem entre preceptores e acadêmicos, foco desse
estudo, tem como cenário a AB. Conforme a política nacional, a AB é desenvolvida por meio
do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob a forma de
trabalho em equipe (BRASIL, 2012a).
“[...] na Universidade acho que é complicado, se fala muito em multi, e
interdisciplinaridade, mas não se vê sabe de fato assim, como a gente acaba tendo que
aprender a fazer isso depois que se forma, né. [...] o PET era bem bacana nesse sentido
assim, no fim das contas os estágios curriculares, todos muito específicos na área e a gente
não saia muito do quadradinho assim, às vezes, então era legal nesse sentido assim, foi bem
bom.“ (P15)
A fala do preceptor traz a reflexão sobre sua própria formação com ênfase na
especificidade, como também os anseios da prática profissional após a conclusão da
graduação com relação a questões do trabalho em equipe. A problematização da formação em
saúde quanto ao trabalho multi e interdisciplinar no plano da teorização, longe das práticas, do
trabalho vivo em si, é posteriormente aprendida no contexto da prática profissional. Nessa
perspectiva, aponta-se a necessidade de esclarecer alguns conceitos.
A descrição geral multidisciplinar “evoca uma simples justaposição, num trabalho
determinado, dos recursos de várias disciplinas, sem implicar necessariamente um trabalho de
equipe e coordenado” (JAPIASSU, 1976, p.72). Assim, delibera-se que a ausência de
articulação não é sinônimo de ausência de relação (IRIBARRY, 2003).
Conforme Japiassu (1976) a intensidade das trocas entre os especialistas e o grau de
integração real das disciplinas denomina-se interdisciplinaridade. Ela é caracterizada por
objetivos múltiplos e com a coordenação procedendo de um nível superior. Nesse sentido, a
exigência do trabalho em equipe significa olhar para além do trabalho multidisciplinar, no
sentido de estabelecer relações dialógicas horizontais com foco no cuidado integral do
usuário.
Nessa perspectiva, diante da dimensão e multiplicidade dos problemas em saúde,
aponta-se:
Que o campo de saberes e práticas da clínica é parte fundamental no debate sobre a organização da produção da saúde, associado aos outros saberes, sem excluir nenhum campo específico. Estudada a complexidade dos problemas de saúde, somente é possível resolvê-los, contando também com multiplicidade de saberes e fazeres (MERHY, FRANCO, 2003, p.317).