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Processos Geradores das Representações Sociais: Ancoragem e Objetivação

Celso Pereira de Sá (1998), em seu livro “A construção do objeto de pesquisa em representações sociais”, orienta como balizamento obrigatório na investigação em representações sociais o princípio da “transformação do não-familiar em familiar” através dos seus processos formadores: a ancoragem e a objetivação.

Embora proposto originalmente para dar conta de fenômenos em que algo de realmente novo — uma teoria, como a psicanálise, ou um fato, como a Aids — surge em um cenário social mais amplo, o princípio pode se aplicar a qualquer coisa que seja — ou em alguma ocasião tenha sido — nova ou estranha para conjuntos sociais específicos (SÁ, 1998, pp. 68-69).

Não é fácil transformar palavras não familiares, ideias ou seres em palavras usuais, próximas e atuais, diz Moscovici (2009). “Para dar-lhes uma feição familiar é necessário pôr em funcionamento mecanismos de um processo de pensamento baseado na memória e em conclusões passadas” (MOSCOVICI, 2009, p. 60). O primeiro mecanismo, segundo o autor, seria o de “ancorar” ideias estranhas, reduzi-las a categorias e a imagem comuns; o segundo, a “objetivação”, quando se materializa uma abstração, se reproduz um conceito em uma imagem.

A ancoragem é um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga em nosso sistema particular de categorias, e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriadas. Podemos usar como exemplo a tentativa dos cientistas de explicar a origem e as consequências do vírus Zika, enquadrando-o numa categoria de padrões convencionais e já conhecidos, como as doenças transmitidas pelo

mosquito Aedes aegypti — analogias também utilizadas pelos jornalistas quando tentam explicar o vírus e a doença.

A ancoragem seria como tentar parar um bote perdido em um dos pontos sinalizadores de nosso espaço social (MOSCOVICI, 2009). Então, em nosso entendimento, é também um dos recursos utilizados pelos profissionais do jornalismo quando fazem uso de metáforas para encaixar assuntos estranhos, ou não familiares, numa categoria que será aceita pelo “senso comum”. Ainda sobre o processo de ancoragem:

O assunto muda quando as ideias científicas são assimiladas por leigos. [...] No entanto, esta diferença entre o conhecimento vulgar e o científico não implica que o conhecimento popular não seja perfeitamente válido para o seu propósito: como um meio de entender e comunicar-se na vida cotidiana (WAGNER; HAYES; PALACIOS, 2011, p. 160, tradução nossa).

Os autores destacam a importância dessa “popularização da ciência” como um processo de assimilação que acomoda o novo segundo velhas características. Eles defendem que, de certa forma, as ideias são utilizadas na emancipação de novas tendências: “A cultura de uma pessoa lhe dá recursos simbólicos usados como núcleos no processo de construção de novos significados e representações” (WAGNER; HAYES; PALACIOS, op. cit., pp. 156- 157, tradução nossa).

Quando não somos capazes de avaliar algo, de descrevê-lo para nós mesmos ou para outras pessoas, experimentamos uma certa resistência ou um distanciamento em relação ao fato ou coisa. Para quebrar essa resistência, Moscovici (2009) aponta como o primeiro passo colocar esse objeto ou essa pessoa em uma determinada categoria, rotulá-la com um nome conhecido, o que os jornalistas fazem todos os dias para explicar fenômenos meteorológicos, desastres naturais, catástrofes, descobertas científicas, oscilações econômicas, etc. Para o psicólogo social, a representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação de categorias e nomes:

Categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele. Quando nós sintonizamos o rádio no meio de um programa, sem conhecer que programa é, nós supomos que é uma “novela” se é suficientemente parecido com P. quando P. corresponde ao paradigma de uma novela, isto é, onde há diálogo, enredo, etc. (MOSCOVICI, 2009, p. 63).

Classificar e dar nomes são dois aspectos da ancoragem: “O resultado é sempre arbitrário, mas, desde que um consenso seja estabelecido, a associação da palavra com a coisa se torna comum e necessária” (MOSCOVICI, op. cit., p. 67).

Segundo este autor, a teoria das representações sociais traz duas consequências: exclui a ideia de pensamento ou percepção que não possua ancoragem, pois seria impossível ter um sistema geral, sem vieses caracterizando diferenças normais de perspectivas entre indivíduos ou grupos heterogêneos dentro de uma sociedade; e os sistemas de classificação e de nomeação não são, simplesmente, meios de graduar e rotular pessoas ou objetos. “Seu objetivo principal é facilitar a interpretação de características, a compreensão de intenções e motivos subjacentes às ações das pessoas, na realidade, formar opiniões” (MOSCOVICI, op.

cit., p. 70).

Mais uma vez sentimos a necessidade de relacionar a teoria das representações sociais com as teorias do jornalismo. Para isso, recorremos a Martino (2009) quando discorre sobre o

framing effect ou o efeito de enquadramento, assunto abordado anteriormente:

Quando se está diante de uma informação, ela é enquadrada nos esquemas prévios de percepção do leitor. Esses esquemas, em uma definição simples, são o conhecimento das pessoas. Essas referências vêm de algum lugar, e essa é uma das premissas mais importantes do modelo do Efeito de Enquadramento: os esquemas de recepção da informação são igualmente construídos pela mídia (MARTINO, 2009, p. 42).

A mídia pode levar o leitor ou telespectador a associar as palavras a partir dos quadros de referência utilizados pelo senso comum. Para que o leitor ou telespectador entenda a notícia e forme sua opinião, é necessário que a informação nova esteja ligada a outras já conhecidas do leitor ou telespectador — isto é, deve ser enquadrada (framed) na moldura de referências anteriores, a um contexto (MARTINO, 2009).

Já objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, é reproduzir um conceito em uma imagem. A cultura — mas não a ciência — nos incita, hoje, a construir realidades a partir de ideias geralmente significantes (MOSCOVICI, 2009). Uma maneira mais clara de compreender a nossa tendência de objetivação seria analisar os fenômenos sociais como a adoração de um herói, a personificação das nações, raças, classes, etc. “Cada caso implica uma representação social que transforma palavras em carne, ideias em poderes naturais, nações ou linguagens humanas em uma linguagem de coisas” (MOSCOVICI, 2009, p. 78).

As representações têm a capacidade de tornarem o não familiar em algo familiar, sendo esta capacidade dependente da memória. Assim, quando a memória é acionada, ela impede que as representações sofram modificações súbitas, é como uma riqueza acumulada que nos protege e nos dá certa independência dos acontecimentos atuais.

Wagner, Hayes e Palacios (2011) dizem que a objetivação é uma subteoria sobre as convicções das pessoas acerca da relação entre suas crenças e um suposto mundo exterior. “O

imperativo pragmático do concreto na vida cotidiana é o que motiva essa metamorfose e faz com que uma idéia abstrata prévia faça parte dos objectos que povoam o mundo e os discursos cotidianos” (WAGNER; HAYES; PALACIOS, 2011, p. 161, tradução nossa).

Para Oliveira e Werba (2009), a objetivação é um processo pelo qual procuramos tornar concreta, visível, uma realidade. A imagem deixa de ser um signo e passa a ser uma cópia da realidade. Jodelet (2001) compreende que a representação social preenche certas funções na manutenção da identidade social, mas, quando a novidade põe em risco valores e modelos de pensamento, torna-se necessário recorrer a um trabalho de ancoragem e objetivação:

A ancoragem serve para a instrumentalização do saber, conferindo-lhe um valor funcional para a interpretação e a gestão do ambiente. Assim, dá continuidade à objetivação. A naturalização das noções lhes dá valor de realidades concretas, diretamente legíveis e utilizáveis na ação sobre o mundo e os outros (JODELET, 2001, p. 39).

Para Moscovici (2009), a ancoragem e a objetivação são maneiras de lidar com a memória:

A primeira mantém a memória em movimento e a memória é dirigida para dentro, está sempre colocando e tirando objetos, pessoas e acontecimentos, que ela classifica de acordo com um tipo e os rotula com um nome. A segunda, sendo mais ou menos direcionada para fora (para outros), tira daí conceitos e imagens para juntá-los e reproduzi-los no mundo exterior, para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido (MOSCOVICI, 2009, p. 78).

De certa forma, a ancoragem e a objetivação também são utilizadas pelos jornalistas para tentar explicar ao público os fenômenos estranhos e até inusitados que acontecem no dia a dia. Quando o telejornalismo funciona hoje, de certa forma, como a grande “praça pública” da sociedade (VIZEU, 2007) e o espaço onde se fortalecem as ideias de “laço social” e de poderoso fator de integração social (WOLTON, 1996), o telejornal passa a constituir uma forte representação de nossa população.

Corroborando essa assertiva, Coutinho e Guimarães (2008), no artigo “A representação do povo brasileiro no Jornal Nacional”, defendem que a cultura da mídia, nos seus diversos produtos, contribui para a identificação dos brasileiros como membros da família nacional:

A cultura da mídia articula-se cotidianamente com o contexto sócio histórico no qual está inserida, de forma a legitimar ou contestar ideologias, pensamentos, construções simbólicas, imaginários. Nessa perspectiva

poderíamos entender que os textos midiáticos contribuem para a construção do senso de pertença a uma comunidade nacional, bem como são estratégicos na legitimação ou transformação da memória coletiva que integra a identidade de uma nação (COUTINHO; GUIMARÃES, 2008, p. 2).

De acordo com Sá (1998), no que se refere à objetivação, talvez seja mais viável tentar evidenciá-la nos meios de comunicação de massa. Além de constituírem importantes fontes de formação das representações no mundo contemporâneo, é neles — na televisão, em especial — que melhor se configura a tendência à concretização das ideias em imagens. Essa afirmação só confirma o nosso desafio de entender como são construídas as representações sociais do Nordeste no “Jornal Nacional”. Apostamos que o telejornal da Rede Globo é fonte geradora de representações sociais, por isso campo fértil de investigação e significação simbólica para se entender como são construídas as imagens da Região no noticiário televisivo de maior audiência do País.

Sobre a imagem do Nordeste construída pela mídia, afirma Albuquerque Jr. (2013, p. 20): “A sensação que se tem quando deparamos com o que é mostrado na mídia, ou mesmo fora dela, como sendo a cultura nordestina, é de que o tempo parou para esta região [...]”. Nos capítulos a seguir, detalharemos a representação social do Nordeste apresentada nas reportagens produzidas pelo telejornal da Globo, mas antes faz-se necessário entender como aplicamos a metodologia para chegar às nossas análises.

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