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Para discorrer sobre o ato de comunicar saúde num país como o Brasil é preciso compreender o sistema de saúde e sua forma organização e gestão. Isto porque não é incomum gerir o que é público como se privado fosse utilizando, inclusive, modelos e estratégias que funcionam para o empresarial, mas apresentam falhas e desafios quando aplicados para o âmbito público e governamental, em especial, na área da saúde. Leal Nunes (1986) aponta que essa prática acaba ocasionando a desorganização do serviço público é uma característica secundária do sistema político do coronelismo, que infelizmente ainda se encontra nos serviços.

Quando a saúde foi reconhecida como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988) no texto constitucional, o povo ainda esperaria para ter o Sistema Único de Saúde (SUS). Ele surgiu dois anos depois com a publicação da Lei Orgânica da Saúde em 1990, na qual foram determinadas as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes.

A disposição preliminar do Título II da Lei esclarece que constituição do SUS dá-se pelo conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. No que se refere à sua organização, a legislação explicita que deverá ocorrer de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente.

Desse modo, a gestão do SUS é realizada pelo Ministério da Saúde (MS) no âmbito federal e, pelas Secretarias Estaduais (SES) e Municipais de Saúde (SMS), nos estados e municípios. Há ainda as Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite (CIT e CIB), nas quais os gestores negociam e pactuam aspectos operacionais do Sistema. Os Conselhos de Saúde Nacional, Estaduais e Municipais são órgãos colegiados compostos por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, que atuam na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde nas instâncias correspondentes. Os Conselhos Nacionais de Secretários Estaduais (Conass), de Secretarias Municipais (Conasems), juntamente com suas representações por Estados – Conselho de

Secretarias Municipais de Saúde (Cosems), por fim, são entidades representativas que tratam de matérias referentes à saúde.

Ao se considerar a descentralização da gestão da saúde no Brasil, é um raciocínio óbvio que o mesmo ocorra com a comunicação. Por conseguinte, cada instituição, gestor ou entidade representativa possui assessoria de comunicação (Ascom) e o SUS, como foco principal, não. Ademais, a grandiosidade e a complexidade do maior sistema gratuito e universal de saúde pública do mundo exigem conhecimentos sobre saberes, práticas, processos e direitos que vão muito além que os de uma Ascom.

Ocorre que a relação saúde e comunicação no país ainda segue a lógica das experiências iniciadas nas duas primeiras décadas do século passado, quando o Departamento Nacional de Saúde Pública utilizou propagandas com explicações sobre o surgimento, a disseminação e combate às doenças para educação sanitária. Pessoni (2009) relembra que um marco institucional significativo dessas experiências foi a Reforma Carlos Chagas, ocorrida em 1920.

Essa tradição campanhista perduraria por muitos anos e quiçá exista hodiernamente. Dos anos 1930 a 1945, a dupla ‘educação e comunicação’ foi supervalorizada como ferramenta de apoio para melhorias da qualidade de vida dos brasileiros. A ideia era fazer oposição à velha oligarquia e instaurar uma nova nação, de pessoas saudáveis e educadas (MOURA, 2008; PESSONI, 2009). A institucionalização da saúde também se dá nesta época, conforme abordou-se na contextualização dos modelos de atenção à saúde, mas o Ministério da Saúde foi criado somente em 1953.

Nas décadas seguintes, a saúde realizava ações baseada em dados estatísticos para explicar adoecimentos e definir as normas de saúde. Conforme Moura (2008), em 1970, a relação dos serviços de saúde com a população era caracterizada por proposições de adesão às ações governamentais por meio de discursos de massa e ações de educação e comunicação. A epidemiologia direcionava o tema e as ciências sociais e a comunicação concebiam a linguagem a ser usada.

Assim, eram desenvolvidas estratégias de persuasão para diminuir a resistência social. “A comunicação era utilizada para responder à relutância das pessoas em cumprir essas prioridades epidemiológicas definidas pela administração sanitária”, (Costa-Oliveira, 2016, p. 25). Houve um ajuste na linguagem para que as

informações fossem transmitidas de maneira mais eficaz e mudassem o comportamento das pessoas para a promoção da saúde, além da aposta nas abordagens com foco nas relações interpessoais (COSTA-OLIVEIRA, 2016).

Há muito utilizada como instrumento no combate a endemias, a comunicação integrou-se ao Ministério da Saúde oficialmente em 1980, ligada diretamente ao Ministro da Saúde, com a missão de mobilizar a população a vacinar-se contra a poliomielite. A atividade tornou-se prática comum após os resultados positivos, mas já naquela época, a decisão de realizar grandes campanhas causava relutância.

“Esta decisão de realizar grandes campanhas, como forma de mobilização popular, provocou uma reação por parte daqueles que defendiam as ações de rotina, cujo objetivo era fazer com que as pessoas utilizassem sistematicamente o serviço de saúde. Para eles, ações pontuais deseducariam a população, pois representavam uma contraposição às ações de rotina”, (BRASIL, 1996, p. 12).

Naquele momento, além das atividades de assessoria de imprensa e a produção das campanhas, a Coordenação de Comunicação Social desenvolvia ações conjuntas com as extintas Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) e Fundação de Serviços de Saúde Pública, e ainda, a Secretaria Nacional de Ações Básicas de Saúde (BRASIL, 1996). Moura (2008) destaca que nesse período convivem tanto as práticas de comunicação institucionais do MS e das secretarias estaduais de saúde, quanto outras alternativas, a exemplo da comunicação comunitária.

Decerto que a atuação das assessorias de comunicação abriu caminhos para o que hoje entende-se como Comunicação em Saúde. Xavier (2006), por exemplo, afirma que “o âmbito da Comunicação em Saúde é institucional e diz respeito às diretrizes de comunicação pública a partir do Estado e de suas políticas e instrumentos” (idem, p. 43). Todavia, há que se convir que limitá-la dessa maneira não faz jus à transversalidade e à imensidão de aplicabilidades que a área tem e que, por isso mesmo, o SUS e seus conceitos e princípios não cheguem ao ideário social e, consequentemente não seja valorizado.

Seja nas relações interpessoais entre profissionais de saúde e usuários; na gestão em processos da própria gestão e na escuta e prestação de contas com a comunidade; nas denúncias e tentativas de fiscalização por parte da imprensa; na mídia em campanhas e tentativas de mobilização social ou de divulgação e popularização do conhecimento em saúde; nas tecnologias da informação e

comunicação (TICs); em eventos e materiais científicos; ou em práticas educacionais das comunidade para promoção da saúde, a Comunicação em Saúde vai muito além do âmbito institucional, assim como o SUS.

Todavia e por permanecerem restritas, com poucas exceções, aos seus próprios ambientes de produção – no caso, as instituições –, as assessorias de comunicação são um dos caminhos para compreender a Comunicação em Saúde no Brasil. Estruturadas de forma fragmentada, com equipes divididas por especialidades, as Ascom das instituições de saúde priorizam o atendimento à imprensa e estão ligadas diretamente aos gestores (FERREIRA e SARAIVA, 2008). Um modelo bem característico e tradicional do setor privado que acaba apresentando lacunas no que se refere à comunicação pública e em saúde a ser feita em prol do SUS.

Ademais, em estudo realizado com participantes de 122 municípios do país, Nardi et al (2018) revelam que cerca de 65% das Secretarias Municipais de Saúde não possuem assessoria de comunicação e as existentes funcionam em condições precárias, com falta de instrumentos para realização de procedimentos cotidianos de trabalho. A pesquisa também revelou que 83,7% dessas assessorias utilizam veículos que proporcionam comunicação direta e constante com população, mas não mencionaram quais e, 53,5% afirmaram realizar ações voltadas a dar visibilidade ao SUS.

O relatório de pesquisa sobre a Gestão da Comunicação Aplicada à Vigilância em Saúde elenca as principais abordagens da comunicação no âmbito da saúde pública (BRASIL, 2008). Apesar das diferentes abordagens, prevalecem formatos, estratégias e estruturas cuja utilização da comunicação ocorre como mero instrumental de transmissão da informação (CARDOSO, 2007; FERREIRA e SARAIVA, 2008).

Cardoso e Rocha (2018) refletem sobre essas abordagens e problematizam tensões, desafios e potencialidades relacionados à cultura digital, à cobertura jornalística e à comunicação pública nas instituições de saúde no Brasil. Os autores abordam a ampliação das questões que envolvem a comunicação – principalmente as relacionadas à participação social, à democratização do Estado e das políticas públicas – e acreditam que não ocorrerão avanços na comunicação do SUS enquanto não se ultrapassar e, simultaneamente, transformar as áreas técnicas.

Ainda de acordo com os autores, é preciso ir além do conjunto de serviços especializados e tecnologias e radicalizar o direito à comunicação. Com a mesma

importância, compreender as especificidades sem compartimentalizar espaços e tecnologias. “Pensá-los sob inspiração das múltiplas faces da integralidade e do cuidado frente aos desafios da midiatização, pode nos oferecer novos modos de fazer” (idem, p. 1878). Essa comunicação deve ser pensada e praticada segundo os princípios do próprio SUS.

Como sugere Mendonça (2014), a implantação de uma política de comunicação para o SUS pode tornar-se determinante para a qualificação dos processos, fortalecimento e profissionalismo das ações inerentes à área. No texto, a autora aponta a consolidação de uma rede integrada de informação e Comunicação em Saúde entre os munícipios como caminho para tal e afirma que a política estaria “assentada no diálogo qualitativo entre os sujeitos que integrama gestão municipal, profissionais da saúde e de comunicação social, partícipes e co-autores do movimento de conhecer para reconhecer e valorizar o SUS”, (idem, p. 722).

Na idealização de uma política de comunicação para o SUS, além do conceito de Comunicação em Saúde si, outro é essencial, o de Comunicação Pública. Duarte e Veras (2006) convidam para a compreensão a partir de definições de teóricos como Zémor (1995), Brandão (1998) e Matos (1999):

[...] “entender Comunicação Pública como a comunicação que ocorre na esfera pública, que é um espaço de discussão sobre diferentes temas, de manifestação de opiniões e onde também se manifesta a democracia [...] Outra visão é a da Comunicação Pública como a comunicação praticada pelo Terceiro Setor, quando este se relaciona com o Estado, com o mercado e com a sociedade. O Terceiro Setor passou a ser interpretado como um importante realizador da Comunicação Pública tendo em vista que participa da esfera pública, representa a sociedade civil e incentiva a participação da sociedade na vida social e política do país, o que descaracteriza o Estado como único representante legítimo da sociedade. A terceira abordagem é a da Comunicação Pública como a comunicação realizada por meio da radiodifusão pública. Ela é resultado do movimento de democratização ocorrido durante a década de 80 e surgiu com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que instituiu, mesmo que implicitamente, três sistemas complementares de serviços de radiodifusão, quais sejam o privado, o público e o estatal (art. 23 da CF/88). [...] Outra abordagem é a da Comunicação Pública como a comunicação realizada pelo setor público e legitimada pelo interesse geral e pela utilidade pública das mensagens [...] Pesquisadores brasileiros, ao adaptarem o entendimento francês sobre Comunicação Pública à realidade da estrutura democrática brasileira, formataram uma outra abordagem de Comunicação Pública, a quinta, a qual enfatiza o Governo como ator do processo”, (Duarte e Veras, 2006, p. 11-12).

A sistematização dos conceitos realizada pelos autores colabora para o entendimento dos mesmos, bem como quanto à caracterização da comunicação a partir das condições para ser praticada na esfera pública; pelo Terceiro Setor; por

meio da radiodifusão pública; e/ou pelo setor público e pelo próprio Governo. Por fim, os estudiosos da área ressaltam que na democracia brasileira, tanto o Estado quanto seus organismos e demais atores do espaço público – dentre eles inclui-se os envolvidos com saberes, práticas e processos da Comunicação em Saúde – devem se mostrar sensíveis às aproximações que concordam com as necessidades demandadas pela sociedade, que por sua vez e cada vez mais, apropria-se dos direitos e dos significados da democracia.

Os processos de Comunicação em Saúde envolvem ainda uma outra importante área de conhecimento que os estudiosos denominam Comunicação Científica ou Jornalismo Científico. Epstein (2011) afirma isso, conforme apontado no Quadro 1. Vale-Caribé (2015) explica que comunicação científica é “um campo semântico que inclui a comunicação da informação gerada a partir dos métodos das ciências, tanto para os pares quanto para o público leigo”, (idem, p. 89). As atividades desenvolvidas por diferentes pessoas e instituições com o objetivo de levar a informação científica aos grupos sociais normalmente são conhecidas como difusão, divulgação, popularização ou disseminação científica, na qual um ramo determinado da mídia atua e relaciona-se diretamente à saúde, ligada de forma inerente à ciência.