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Era indispensável a essa nova sociedade uma relação de poder que torne-se possível a fixação do operário ao aparato de produção e para que o corpo, o tempo e a vida conjuga-se em forças produtivas. A esse respeito Christian Laval faz notar que:

Se Marx pôde escrever que a ‘condição do capital é o assalariado”, Foucault acrescenta que a “condição do capital é o corpo do trabalhador”. Em outras palavras, que o poder do capital produz o corpo produtivo e constitui a “classe operária” a partir de uma multiplicidade humana que é preciso submeter ao regime de trabalho291.

Nesse sentido, a constituição de uma mão de obra disciplinada que tinha sobretudo o corpo como lugar de investimento de técnicas disciplinares é colocado no centro dessa guerra civil com base na qual Foucault procura analisar a sociedade. A “invenção” das técnicas que assujeitam os corpos ao tempo da produção não devem, nos diz Foucault em Surveiller et

Punir292, ser entendidas como uma descoberta súbita. Ela tem sua origem em uma multiplicidade de processos e em localizações esparsas. É por isso que sua análise compreende observar as diversas fórmulas da disciplina nas escolas, nos quarteis, nas fábricas e até na prisão. Em todas essas instituições a organização do tempo é esquadrinhado para que não haja, em um só momento, um desperdício ou uma má utilização:

O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar293.

Essa multiplicidade de instituições, que teve seu recrudescimento no século XIX, fez com que, durante toda a vida as pessoas mantivessem um elo com essas instituições que não as representavam exatamente e que, muito menos, as constituíam como grupo. Foucault observa que:

percebe-se que naquele momento emergiram ‘corpos’ absolutamente novos no espaço social, corpos diferentes daqueles que vinham à mente outrora quando se falava de corporações e grêmios. Não eram corpos sociais, ou seja, corpos de pertencimento, que apareciam com instituições como creches, caixas econômicas ou previdenciárias e prisões. Tampouco eram corpos que funcionassem ao modo da máquina, ou seja, corpos produtores,

290 Subtítulo inspirado no texto de Bataille A noção de dispêndio.

291 Laval, C. La productivité du pouvoir. In: Laval, C (org). Marx & Foucault : lectures, usages, confrontations, p. 34.

292 OC II, Surveiller et punir, p. 134, p. 402. 293 OC II, Surveiller et punir, p. 145-146, p. 421.

ainda que houvesse elos entre o desenvolvimento do maquinismo e dos novos corpos. Eram corpos com função de multiplicadores de poder, zonas nas quais o poder estava mais concentrado, era mais intenso294.

Desse modo, fazer a história desses dispositivos disciplinares exige que se vá para além dos muros das fábricas. O capitalismo, nesse sentido, não pode ser a fonte ou a origem única das tecnologias de poder, pois, o que Foucault mostra é que elas são difundidas em numerosas instituições que nascem muito antes do progresso da revolução industrial em asilos, hospitais, exércitos, comunidades religiosas, etc. De modo que essas zonas de poder que não estão necessariamente integradas ao aparato de Estado produzem como que um excedente de poder.

A fixação dos indivíduos em um aparato de produção sofreu algumas mudanças no século XIX em relação ao que se viu formar no período clássico. As instituições de reclusão como fábricas-convento, colônias agrícolas e penitenciárias não mais procuravam marginalizar o indivíduo, elas passaram a fixar os indivíduos dentro de um sistema de transmissão do saber, de produção e normatização. Essa mudança nas instituições de reclusão clássica tornou possível o surgimento do que Foucault chamou de “instituições de sequestração”.

As instituições de sequestração têm como função primordial se apoderar do tempo, distribuí-lo e controla-lo plenamente. Isso significava que o pleno controle do tempo deveria levar em conta todos os momentos da vida do indivíduo. Esse controle também deveria poder comandar até as linhas de fuga do ritmo de trabalho:

No caso dos indivíduos pagos por dia, foi preciso agir de maneira que eles não se demitissem quando quisessem. Foi preciso acossar festas, faltas, jogos e especialmente loterias, como má relação com o tempo na maneira de esperar ganhar dinheiro não da continuidade do trabalho, mas da descontinuidade do acaso. Foi preciso levar o operário a dominar o acaso de sua existência: doença e desemprego. Foi preciso ensinar-lhe aquela qualidade a que se dava o nome de previdência, torna-lo responsável por si mesmo até a morte, oferecendo-lhe caixas de poupança295.

Como podemos ver, a sequestração corresponde na verdade muito mais a uma função do que a instituições com formas espacialmente isoladas de reclusão. Tal é o caso das cadernetas de poupança e da previdência que podem ser vistas como um superpoder que organiza a vida dos indivíduos do seu nascimento até sua morte. A sequestração temporal visava transformar o tempo da vida, ou seja, o tempo das festas, do lazer, do prazer, ao tempo

294 SP, p. 189, p. 211.

da produção. O que ocorreu nessa transformação foi a homogeneização296 do tempo da existência ao ciclo da produção.

Em todo esse movimento que vai da genealogia moral do proletariado a uma teoria dos ilegalismos Foucault dialoga com a tradição marxista. De acordo com esse diálogo, Étienne Balibar defende a hipótese de que no curso La société punitive parece haver uma “teoria da reprodução” do proletariado que rivaliza com a de Althusser. De acordo com tal hipótese, essa teoria não está centrada no assujeitamento à ideologia dominante como em Althusser, mas sobre a moralização institucional dos trabalhadores, o que daria ensejo aos ilegalismos e, em correlação a esse assujeitamento estariam a forma-salário e a forma-prisão como matriz de gestão do tempo de trabalho297. Já segundo Julien Pallotta, a crítica de Foucault a Althusser

concentra-se na última lição do curso de 1973 em que Foucault apresenta a teoria do poder de Althusser sob a forma de quatro esquemas teóricos.

Para Althusser a reprodução da força de trabalho é assegurada materialmente pelo salário. É também o salário que permite a criação e a educação das crianças por meio do qual o proletariado se reproduz. Isso quer dizer que a família tem uma função, para Althusser, de aparelho de transmissão dos hábitos populares e de um “savoir-faire” necessário à constituição e a reprodução da classe operária298. No entanto, será a escola que terá um papel fundamental na teoria althusseriana da reprodução.

O papel da escola na sociedade capitalista será bem demarcado na teoria althusseriana dos Aparelhos ideológicos de Estado (AIE). O sistema escolar tem, para Althusser, tal importância que o filósofo renomeia esse sistema como AIE escolar, tornando-o o aparelho ideológico número 1 da formação social capitalista. Dessa forma, o sistema escolar vem ocupar a função que era atribuída à igreja na formação social feudal. A escola, ou melhor, o sistema escolar capitalista, tem, portanto, papel decisivo, juntamente com o salário, na reprodução da força de trabalho.

Já em Foucault, a escola fará parte das instituições de sequestração que serão responsáveis não só por assujeitar o tempo da vida ao tempo da produção, como também a

296 O termo homogeneização faz alusão ao texto de Bataille “A noção de dispêndio” em que ele define a sociedade homogênea como a sociedade útil do ponto de vista da produção. “Sem dúvida a sociedade burguesa, que pretende se governar seguindo princípios racionais, que tende aliás por seu próprio movimento a realizar uma certa homogeneidade humana, não aceita sem protestar uma divisão que parece destrutiva ao próprio homem, mas é incapaz de levar a resistência mais longe do que a negação teórica”. Cf. Bataille, A noção de

dispêndio, p. 29.

297 Balibar, L’anti Marx de Michel Foucault. In: Laval, C (org). Marx & Foucault : lectures, usages,

confrontations, p. 91.

298 Pallotta, L’effet Althusser sur Foucault : de la société punitive à la théorie de la reproduction. In: Laval, C (org). Marx & Foucault : lectures, usages, confrontations. p. 131.

uma discursividade de moralização do proletariado. Althusser não descarta em sua teoria da reprodução que “regras de moral” fazem parte da educação escolar. A reprodução da força de trabalho depende da submissão dos proletários a essas regras, ou ainda, a submissão a ideologia dominante. No entanto, segundo Pallotta:

A questão colocada por Foucault, para destacar a questão decisiva da poupança operária no início do século XIX, é a dos mecanismos de garantia implementados para assegurar a reconstituição física dos corpos operários. A disciplinarização pela caderneta de poupança (como mecanismo parapénal) responde de fato a um outro aspecto desse problema que não aborda Althusser: aquele da luta contra as condutas irregulares dos trabalhadores que impede o que é uma necessidade para o capital, a saber, a fixação da

força de trabalho ao aparelho produtivo299

Julien Pallotta demonstra muito bem que a crítica de Foucault a Althusser coloca em evidencia como pensar as condições de reprodução materiais da força de trabalho como força produtiva não pode se limitar a consumação imediata do salário, isso porque, “pensar a reprodução material da força de trabalho, é pensar o fato de que o corpo que é o portador é um corpo vivo”300.